
Ao contrário das levas de imigrantes italianos, espanhóis e portugueses, tão ativamente buscadas pelos que tentavam mudar a composição social do Brasil, os sírios e libaneses vieram por conta própria, e sem alarde.
Desse modo, quando a elite brasileira “descobriu” os árabes em seu meio, a primeira reação foi entrar em contato com os diplomatas que serviam no Oriente Médio, pedindo informações. Esses cônsules e adidos não viam com agrado a ideia de árabes se estabelecendo em sua terra natal, e consideravam o Oriente Médio “inacreditavelmente atrasado, inculto, e desprovido tanto de administração quanto de forças de trabalho organizadas”.
Isso transformava as representações diplomáticas brasileiras em luzeiros de civilização entre povos irreparavelmente ateus, e foi exatamente essa visão grandiosa que levou muitos imigrantes potenciais a verem o Brasil como uma nação hospitaleira, onde eles poderiam se reinstalar. Quanto mais os diplomatas brasileiros insistiam na sua superioridade cultural e nacional, mais crescia o fluxo de emigrantes do Oriente Médio.
A surpresa dos brasileiros ante a crescente população originária do Oriente Médio transformou-se em choque, quando ficou claro que o primeiro grupo numeroso de imigrantes árabes a vir para o Brasil não era muçulmano nem cristão.
De fato, a comunidade norte-africana que começou a se estabelecer na foz do Amazonas, nas primeiras décadas do século XIX, era exclusivamente judia. Pouco se sabe sobre esses primeiros colonos que se fixaram em Belém do Pará, mas um velho, uma vez, contou-me uma história que remetia de volta aquele tempo.
“Quando os judeus chegaram, eles vieram sem mulheres nem rabinos. Muitos começaram a ter relações com as mulheres índias, e queriam se casar, mas não havia rabinos entre os imigrantes para realizar as cerimônias de conversão.
O líder dos imigrantes designou o integrante mais culto do grupo para ensinar judaísmo às noivas, enfatizando um único princípio – que Hashem [o termo tradicional usado pelo informante para substituir a palavra "Deus"] era o único Deus. No dia do casamento, a noiva era trazida para a sala de olhos vendados, e dizia-se a ela que uma colher de ouro fundido seria colocada em sua boca. Se ela realmente acreditasse que Hashem era o único Deus, o ouro teria um sabor doce como o mel. E todas as mulheres acreditaram, e o ouro sempre tinha gosto de mel”.
À medida que o século XIX progredia, a troca regular de correspondência e alguma migração de retorno fizeram com que centenas famílias judias de Marrocos (ou de Magrebe) se mudassem para o Brasil, onde elas se estabeleceram no Rio de Janeiro e em Belém. A guerra Hispano-Marroquina (1859-1860) pode ter sido o catalisador de sua fuga, mas havia também questões mais profundas impelindo os imigrantes.
Historicamente, os judeus haviam sempre trabalhado como agentes de negócios para o sultão, às vezes recebendo o título tujjar al-sultan (mercador do sultão). Mesmo assim, o fato de viver num mundo muçulmano dava aos judeus um sentimento profundo de pertencer a uma categoria minoritária, enquanto seu multilingüismo – usava-se o árabe e o espanhol nos negócios; o francês e o hebreu eram estudados nas escolas da Alliance Israelita Universelle (AIU) que fcrriam sido criadas em Tânger, Tetouan e em outras cidades de maior s; e o haquitia era falado em casa – dava-lhes uma perspectiva transnacional.
À medida que se reduziam as oportunidades econômicas em Marrocos, os comerciantes muçulmanos tornaram-se cada vez mais xenófobos e enciumados das relações econômicas que muitos dos negociantes judeus mantinham com os franceses. Os judeus, por essa razão, começaram a emigrar, alguns para o Egito e para a Argélia, enquanto muitos dos que haviam frequentado as escolas da AIU abandonaram de todo a região. Segundo informações prestadas por um dos diretores da AIU, por volta de 1880, 95% dos rapazes que se graduavam na Aliança haviam migrado para a América do Sul.
Em 1890, mais de mil judeus do Magreb haviam migrado para o Pará. A economia da borracha vinha apresentando um crescimento explosivo, e Belém encontrava-se repleta de mascates e de pequenos comerciantes. Muitos dos judeus estabeleceram-se em pequenas cidades ao longo do Rio Amazonas, onde eles trocavam produtos urbanos, como roupas, medicamentos, tabaco e cachaça, por peixe, castanha-do-pará, borracha e óleo de copaíba.
A prosperidade, entretanto, foi apenas um dos fatores que atraíam os judeus: eles não tardaram a descobrir que podiam facilmente obter documentos de naturalização brasileira. Isso colocava os judeus do Magreb numa categoria muito semelhante à dos proteges, os judeus ricos que usavam documentos estrangeiros como proteção econômica e social. O fato de eles se tornarem brasileiros emprestava novo significado à volta ao Magreb.
A partir de então, esse retorno significava tanto uma quantia significativa de dinheiro quanto o sentimento de segurança. Esse salto de posição econômica e nacional não passou despercebido, e temos relatos de que os homens judeus que não haviam migrado viam reduzidas as suas perspectivas matrimoniais.
Mimom Elbás, em muitos aspectos, era um caso típico. Ele emigrou para Belém em 1892 e, um ano depois, mudou-se para o Rio de Janeiro.
Seis meses mais tarde ele havia-se naturalizado, voltando para Marrocos como cidadão brasileiro. Elbás aprendeu pouco português, enfurecendo o cônsul em Tânger, José Daniel Colaço, que estava certo de que havia algo de errado com um brasileiro que “não sabe falar outra língua que não o árabe”. Colaço temia a introdução de um novo e potencialmente perigoso fluxo étnico no Brasil, mas ele pouco podia fazer a esse respeito. Os judeus do Marrocos não eram os europeus e norte-americanos desejáveis, mas tampouco eram proscritos como os africanos e asiáticos indesejáveis.
Os diplomatas pediram ao Ministério da Justiça que tivesse mais cuidado na concessão de certificados de naturalização, mas ninguém tomou as providências necessárias. Nos primeiros anos do século XX, havia mais de seiscentos brasileiros naturalizados vivendo em Marrocos, todos eles apelando para a proteção brasileira, especialmente em tempos de crise. Símão (ou Simon) Nahmias mudou-se para o Pará em 1879, quando tinha 23 anos de idade.
Três anos mais tarde, ele requereu a naturalidade brasileira, com base em sua “firme intenção de continuar residindo no Império, e adotá-lo como minha pátria”. O processo levou cerca de um mês. Alguns anos mais tarde, Nahmias voltou a Tânger para abrir uma firma de importação, munido de seus documentos brasileiros. Em 1901, ele envolveu-se num litígio sobre a posse de terras com um comerciante muçulmano da região, e viu-se defendendo seus interesses ante o Tribunal Shraa (a Suprema Corte Nativa).
Ele perdeu a causa e foi acusado de desacato à autoridade judicial, crime esse passível de ser punido com prisão. Quando a polícia chegou à casa de Nahmias, ele içou a bandeira brasileira, mas sem resultado.
Nahmias, imediatamente, entrou em contato com o cônsul brasileiro, A. Mauritz de Calinério, pedindo ajuda. Calinério não tinha o menor entusiasmo em ajudar o “hebreu”, mas temia que, se não o fizesse, ficaria a impressão de que o “semibárbaro” sistema político marroquino havia derrotado o “espírito de justiça” brasileiro.
Medidas drásticas faziam-se necessárias, e as ameaças do cônsul de romper s relações entre o Brasil e Marrocos, caso Nahmias não fosse solto, ganharam as manchetes em todo o mundo. Embora não haja provas que a publicidade tenha surtido efeito, a “representação particular” apresentada por Calinério, provavelmente sob a forma de numerário, levou à soltura de Nahmias. Esse episódio, entretanto, foi apenas um entre muitos. Vez por outra, os brasileiros naturalizados exigiam – e recebiam – a ajuda do consulado em Tânger.
Essa situação enfureceu a tal ponto o governo brasileiro que, em 1900, ficou estabelecido que apenas os marroquinos que se haviam naturalizado anteriormente a 1880 seriam considerados cidadãos brasileiros. O governo de Marrocos, que mantinha relações cordiais com o Brasil, “em tudo e para tudo que não estivesse relacionado aos hebreus marroquinos naturalizados brasileiros”, ficou igualmente preocupado.
Na verdade, as relações positivas “em tudo e para tudo” pouco significavam, uma vez que as relações diplomáticas entre o Brasil e Marrocos pareciam se centrar quase que exclusivamente em torno da questão de como tratar os judeus brasileiros nascidos em Marrocos. Em 4 de março de 1903, chegou-se a uma solução: o Brasil fechou seus escritórios diplomáticos, passando o problema para os portugueses.