© YOSSI        SARID
HAARETZ, 18/07/2005
Tradução: Davy        Bogomoletz
Nossos Gloriosos Irmãos[1]        de Gush Katif estão prestes a defrontar-se, infelizmente, com não apenas        um trauma, mas um trauma duplo. Sobre o primeiro  o trauma da sua        retirada do lugar onde vivem  já foram derramadas tinta e lágrimas como        água. Sobre o segundo, até aqui nada ainda foi escrito.
Depois da retirada, haverá para os retirados o        trauma de sua entrada em contato com a realidade de Israel. Por várias        décadas viveram eles num planeta bem diferente deste aqui, um planeta que        oferecia aos seus habitantes condições privilegiadas e até invejáveis. O        contato cara a cara com a realidade israelense será chocante para os que        retornam às suas fronteiras.[2]        É este o momento, então, de alertar para o choque do retorno, a fim de        atenuar o abalo, capaz de perturbar mesmo os mais gloriosos.
Estes que agora se desligam, e que por um tempo        longo demais viveram desligados, descobrirão rapidamente quantos, em        Israel, estão desempregados. Falta trabalho para muitos. Moradores do sul        do país que são, perceberão sem demora que justamente no sul os índices de        desemprego são particularmente altos, e que mesmo aqueles que trabalham        para gerar o próprio sustento (no campo) mal e mal conseguem encher a        barriga.
Não são assim as coisas nos assentamentos, cujo        perfil é diferente do restante do país. O ministro do interior, Ofir        Pines, comunicou recentemente que 60% dos colonos da faixa de Gaza        sentam-se à mesa do Estado. Este último os alimenta e sustenta com o que        sai de seus cofres, dos cofres públicos, fazendo com que ali não haja        quase desemprego. Em seus novos lares, os colonos ficarão sabendo que seu        país há muito não é mais um Estado de bem estar, mas um Estado do se dar        bem, e não é mais a justiça que norteia o seu funcionamento, mas a        esmola.
Mesmo os agricultores entre eles terão uma        surpresa: descobrirão muito depressa que os servos e servas dispostos a        beijar a sua mão por um prato de comida não moram mais em suas        vizinhanças. Cada vez menos palestinos recebem permissão para entrar em        Israel, e mesmo os que a recebem nem sempre conseguem chegar. É verdade        que os tailandeses e chineses e filipinos tomaram os seus lugares, mas        atualmente mesmo estes são cada vez mais raros, e nem sempre se pode        subornar alguém para obtê-los.[3]        Não foi à toa que a Faixa de Gaza se tornou o refúgio predileto deles nos        últimos tempos, porque em Gush Katif não são necessários passes e        permissões e não se paga o imposto por cabeça sobre trabalhadores        estrangeiros. Até a Polícia da Imigração reconheceu Gush Katif como uma        terra de ninguém.
O princípio da Terra de Ninguém  um terreno        baldio, uma terra devoluta , estenderam-se, ali, também para as áreas do        planejamento urbano e da construção. É importante que os retirados saibam        que em Israel ainda é obrigatório tirar licenças para construir. Até uma        simples varanda é difícil construir aqui, o que dirá um povoado inteiro.        Aqui não é comum que alguém acorde de manhã e levante um assentamento no        terreno do vizinho, e se o vizinho chama a polícia, ela de vez em quando        aparece, e nem sempre se coloca ao lado dos usurpadores: já houve casos em        que ela se colocou ao lado dos usurpados.
Aos que têm filhos será preciso informar, numa        espécie de Manual do Retirante, que, daqui em diante, a educação de seus        filhos será cobrada exclusivamente deles próprios. Não haverá mais        educação gratuita para todas as idades. A creche para crianças pequenas,        por exemplo, custa por aqui uma fortuna que não está ao alcance de todos.        Somente um pequeno grupo dentre as crianças israelenses recebem educação        em tempo integral digna desse nome, incluindo uma praça de alimentação. Os        retirados constatarão com seus próprios olhos, para seu enorme espanto,        que em Israel há sim crianças passando fome.
O Grande Israel[4]        é uma terra devorada por seus habitantes, enquanto Israel propriamente        dito é uma terra que devora seus habitantes.[5]        Os retirados, finalmente transformados em cidadãos iguais perante a lei,        não terão mais tanto leite e tanto mel para se deliciar.
O Governo e o Knesset já deixaram claro que não há        qualquer intenção de jogar os retirados na dura realidade de uma hora para        outra. Todos compreendem que o processo de desmame do leite e do mel é        demorado e doloroso. O caminho dos retirados será, portanto, atapetado de        maçãs, e enfeitado com jeitinhos. O olho da opinião pública não é        mesquinho: até ele compreende que as montanhas são mais altas na viagem de        volta.
Em seu programa da semana passada, o jornalista        Rino Tzror revelou um dado assustador: Em Israel são despejadas, todos os        dias, 20 famílias que não conseguiram pagar a prestação de suas casas. São        vinte famílias por dia, 100 por semana, 5000 por ano (descontados os        sábados e os feriados e os dias de pura preguiça). É um número bem maior        que o de todas as famílias de Gush Katif juntas. Quem jamais ouviu falar        dessas outras famílias? Quem jamais chorou por elas? Quem se preocupou com        seus traumas? Quem arranjou para elas psicólogos e        caravilas[6]?
Desde o dia em que nossos Gloriosos Irmãos        saíram para os territórios, este país mudou a ponto de tornar-se        irreconhecível. Eles se tornaram o sal da terra, enquanto a terra        cobria-se de feridas. Será, este, um encontro traumático para todos, o        encontro entre o sal e as feridas.
[1]        Referência sarcástica ao famoso livro Meus Gloriosos Irmãos, do escritor        judeu-americano-comunista Howard Fast, contando a história dos heróicos        Macabeus, que lideraram a heróica revolta dos judeus contra o jugo        helenístico do Império Selêucida.
[2]        Expressão bíblica famosa  E voltarão os filhos às suas fronteiras        (talvez de Isaías).
[3]        Referência ao fato de que muitas vezes é necessário molhar a mão de        alguém para conseguir trabalhadores estrangeiros temporários.
[4]        Que, para os judeus que nisso acreditam, engloba todo o território desde o        Mediterrâneo até os confins do Reino da Jordânia, território do Mandato        Britânico sobre a Palestina, antes de 1948.
[5]        Referência a uma expressão bíblica (dos espiões enviados por Moisés para        ver o que se passava no território a ser conquistado), segundo a qual        Canaã era uma terra que devora seus habitantes, talvez por suas secas,        ou por suas inundações, ou por doenças que ali grassavam.
[6]        Caravan é um tipo de casa-reboque usado em Israel para alojar,        temporariamente, imigrantes ou famílias que perderam suas casas.        Caravilas designa um modelo aperfeiçoado da Caravan, que deixou de ser        uma simples casa e tornou-se uma vila  que em hebraico indica uma        casa de luxo.