Os Cantonistas russos

Os Cantonistas russos

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Os Cantonistas russos


Russian Jewish soldiers in the czar's army

Em 1827, o czar Nicolau I da RĆŗssia publicou o duro “Decreto de Recrutamento” que exigia o recrutamento de jovens judeus, entre 12 e 25 anos, para um serviƧo militar de 25 anos. Estas crianƧas foram arrancadas de suas famĆ­lias e passaram a ser conhecidas como cantonistas, e durante os 29 anos que se seguiram, atĆ© o czar Alexandre II abolir a lei, em 1856, cerca de 50.000 crianƧas judias foram violentamente convocadas para o exĆ©rcito russo.

A lei foi ainda mais draconiana: o perĆ­odo de 25 anos de serviƧo comeƧava somente quando a crianƧa atingia os 18 anos. Assim, se um menino judeu era levado pelo exĆ©rcito em uma idade mais jovem, seu serviƧo era estendido. AtĆ© os 18 anos, os “recrutas” judeus viviam em internatos que combinavam treinamentos prĆ©-militar com uma educaĆ§Ć£o rudimentar.

O objetivo formal do programa cantonista era trazer judeus, que eram vistos como “estrangeiros”, para o exĆ©rcito, para entĆ£o se tornarem russos leais ao mesmo tempo que aprendessem o idioma russo, juntamente com algumas habilidades Ćŗteis e ofĆ­cios. Este objetivo podia ser visto na diferenƧa na idade de recrutamento entre judeus e nĆ£o-judeus, estes Ćŗltimo eram recrutados somente aos 18 anos. Segundo a EnciclopĆ©dia YIVO, pelo fato de exigir que os judeus sejam recrutados em uma idade mais tenra, o czar claramente dizia com isso que os judeus estavam “ainda mais suscetĆ­veis Ć  influĆŖncia externa.”

Enquanto que, de acordo com a opiniĆ£o de Nicholas I, o exĆ©rcito era a Ćŗnica “instituiĆ§Ć£o genuinamente educacional” aonde a verdadeira integraĆ§Ć£o social poderia ser imposta, a realidade para os soldados judeus foi bem diferente: as autoridades russas usaram o exĆ©rcito para alienar os jovens recrutas cantonistas tanto de seu povo, quanto de sua religiĆ£o. Foram, assim, transferidos de suas casas na Zona de Assentamento Judeu na RĆŗssia, aonde os judeus eram autorizados a viver, para as instituiƧƵes cantonistas em Kazan, Orenburg, Perm e SibĆ©ria, distantes por uma jornada de muitas semanas.

Uma vez lĆ”, sargentos e soldados russos eram instruĆ­dos a “influenciar” as crianƧas a abandonar o judaĆ­smo. O historiador Simon Dubnov escreve que, “os internatos eram para servir como uma escola, ou melhor, como uma fĆ”brica, que produziria uma nova geraĆ§Ć£o de judeus ‘nĆ£o judeizados’, completamente “russificados”.”

As crianƧas que traziam consigo Tzitzit (roupa de franjas) e Tefillin (filactĆ©rios) tinham estes itens removidos Ć  forƧa. Falar iĆ­diche era proibido, assim como oraƧƵes em hebraico. Comida Kosher, obviamente, nĆ£o estava disponĆ­vel. CrianƧas que desobedeciam estas regras eram privadas de sono, ou ameaƧadas pela fome, ou apanhavam. Na verdade, a tortura fĆ­sica era praticamente rotina. Algumas crianƧas cantonista foram enviadas para fazendas russas em vilarejos remotos onde foram forƧados a trabalhar exaustivamente.

Muitas das crianƧas cederam e foram obrigadas a se converter (estatĆ­sticas russas dizem que um terƧo dos cantonistas se converteram). Seus nomes foram alterados, mas os comandantes do exĆ©rcito nem sempre aceitavam as “conversƵes”, continuando, muitas vezes, a maltratĆ”-los. Ocasionalmente, um cantonisto judeu, ao atingir a idade de 18 anos, afirmava que desejava continuar fiel ao seu judaĆ­smo. PuniƧƵes, incluindo uma detenĆ§Ć£o de longo prazo, seriam aplicadas atĆ© o cantonista assinar uma retrataĆ§Ć£o. Alguns cantonistas corajosos retornaram ao judaĆ­smo apĆ³s a sua eventual libertaĆ§Ć£o do exĆ©rcito, mas se eram descobertos, corriam o perigo de perder seus benefĆ­cios de aposentadoria.

Em geral, cantonistas judeus, especialmente aqueles que serviram alĆ©m da Zona de Assentamento Judeu na RĆŗssia, nĆ£o eram nem judeus totalmente observantes, nem judeus totalmente assimilados. Dito isto, os judeus eram ocasionalmente alocados em grupos de oraĆ§Ć£o e realizavam serviƧos no sĆ”bado e festivais. Os militares ainda haviam prometido a lideranƧa judaica que forneceria um rabino para os regimentos com mais de 300 soldados, apesar de o exĆ©rcito nunca ter cumprido esta obrigaĆ§Ć£o.

Talvez o elemento mais horrĆ­vel na vida dos cantonistas eram os khapers – na maioria dos casos eram gangues de judeus que eram enviados para sequestrar meninos judeus de suas famĆ­lias para levĆ”-los para o exĆ©rcito. Os pais viviam em um estado de terror permanente, sem saber se seus filhos chegariam em casa depois da escola, no final do dia. Os khapers foram, na verdade, enviados por lĆ­deres judeus para resolver um dilema moral intratĆ”vel: como poderia a comunidade judaica completar o projeto de quota (que atingiu um clĆ­max de 30 mil homens durante os anos da Guerra da CrimĆ©ia de 1854-1855)? O nĆ£o cumprimento da quota colocaria toda a comunidade em risco (e, de qualquer modo, aumentaria a quota ainda mais).

Deveriam, jovens casados, responsĆ”veis jĆ” por uma esposa e filhos, serem recrutados? A soluĆ§Ć£o agonizante foi recrutar os mais jovens, uma vez que ainda nĆ£o tinham dependentes. Sendo que nenhuma famĆ­lia estaria disposta a oferecer sua prĆ³pria crianƧa, os khapers eram pagos por cada crianƧa raptada. Enquanto que eles deveriam levar crianƧas mais velhas que 12 anos, os khapers nĆ£o eram escrupulosos e levavam crianƧas a partir dos sete e oito anos de idade, agarrando-os contra suas vontades. Uma especial atenĆ§Ć£o foi dada aos mendigos, marginalizados e Ć³rfĆ£os.

Algumas crianƧas judias passaram dos limites – mas apenas aquelas que jĆ” haviam sido assimiladas pela sociedade russa. Jovens judeus que frequentaram as escolas estatais russas, ou os filhos de colonos judeus agrĆ­colas, por exemplo, estavam isentos de obrigaĆ§Ć£o militar. A legislaĆ§Ć£o cantonista tambĆ©m nĆ£o se aplicava Ć  PolĆ³nia e BessarĆ”bia (pelo menos atĆ© 1843 para a PolĆ³nia e 1852 para a BessarĆ”bia), o que levou a migraĆ§Ć£o judaica da UcrĆ¢nia, BielorrĆŗssia e LituĆ¢nia para essas Ć”reas.

Em 1856, o czar Alexandre II lanƧou um manifesto proibindo a tomada de crianƧas judias menores de idade, e logo ordenou que os meninos em batalhƵes cantonistas fossem liberados. Mas, as crianƧas judias que haviam sido convertidos Ć  forƧa nĆ£o poderiam retornar ao seu estado anterior, como judeus. Assim, na prĆ”tica, os cantonistas judeus permaneciam no exĆ©rcito.

Para compreender a escala do programa cantonista, considere que, em 1843, 6.753 crianƧas judias foram relatadas em 22 instituiƧƵes cantonista. Em 1854, no auge da campanha cantonista durante a Guerra da CrimƩia, 7.515 judeus menores de 18 anos, foram recrutados.

Soldados que serviram fora dos limites da Zona de Assentamento Judeu na RĆŗssia, foram autorizados a permanecer lĆ” permanentemente apĆ³s a sua transferĆŖncia para as reservas do exĆ©rcito e estabelecer comunidades judaicas. Deste modo foi que os judeus chegaram na FinlĆ¢ndia, onde tinham estacionados durante o serviƧo no exĆ©rcito russo.

Em 1809, a FinlĆ¢ndia tornou-se parte do ImpĆ©rio Russo, mas as leis de seu governante anterior, a SuĆ©cia, permaneceram no local. Estas leis proibiam os judeus de se estabelecer no territĆ³rio finlandĆŖs. No entanto, o ex-cantonistas judeus estavam isentos desta regra – um direito que foi vigorosamente, e ironicamente, defendido pelas autoridades militares russas. A FinlĆ¢ndia declarou sua independĆŖncia em 1917, quando foram concedidos plenos direitos como cidadĆ£os finlandeses aos judeus no paĆ­s.

Em 1855, centenas de cantonistas judeus que haviam se convertido sob coaĆ§Ć£o, publicamente procuraram abraƧar o JudaĆ­smo: recuperaram seus nomes e identidades judaicas e organizavam protestos coletivos. Escandalizavam os militares russos. No entanto, uma vez que, nesse momento, desviar-se da Ortodoxia Russa era considerado um grande crime, uma comissĆ£o do MinistĆ©rio da Guerra foi criada para investigar os protestos, nĆ£o permitindo, mais tarde, que os judeus cantonistas retornassem ao judaĆ­smo.

Um verdadeiro alĆ­vio e a aboliĆ§Ć£o do sistema cantonista, nĆ£o surgiria atĆ© 1874, quando o estatuto de Alexandre II, estabeleceu um serviƧo militar muito mais curto – de seis anos – e foi estendido a todos os grupos da mesma forma, com um sistema relativamente transparente de isenƧƵes.

Mas as boas notĆ­cias nĆ£o iriam durar muito. O Ministro russo da Guerra Petr Vannovskii introduziu uma sĆ©rie de regulamentaƧƵes discriminatĆ³rias contra os judeus militares, entre 1881-1897. Os judeus foram proibidos de vĆ”rios trabalhos do exĆ©rcito (como engenheiros, mĆ©dicos, guarniƧƵes da fortaleza) e encontraram-se segregados dos seus camaradas nĆ£o judeus. A partir de 1906, os ideĆ³logos da extrema-direita argumentavam que os judeus eram “traidores, covardes e soldados inĆŗteis que corromperam a RĆŗssia.” No entanto, 300.000 judeus serviu no exĆ©rcito russo durante a Primeira Guerra Mundial.

Em 1917, todos os regulamentos anti-judaicos no Ć¢mbito militar foram cancelados, permitindo que os judeus tivessem uma maior mobilidade e abrindo as portas das escolas de oficiais para eles. O legado do longo e brutal perĆ­odo cantonista, finalmente acabou.

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