Hannah Arendt,
de Margarethe von Trotta, estreou na quinta-feira – o filme retrata uma
das filósofas mais importantes do século XX, defensora da liberdade de
pensamento e que cunhou o conceito da banalidade do mal, a propósito de
Adolf Eichmann, oficial nazi julgado e executado em Israel.
A
cena poderia passar-se em qualquer redacção do mundo. Neste caso,
aconteceu na da célebre revista New Yorker. O director, William Shawn,
sabe que está perante um momento histórico, o julgamento de Adolf
Eichmann, oficial nazi célebre por ser um dos rostos da ‘solução final’
desenhada por Hitler, o do extermínio dos judeus. E tem à sua frente,
caída do céu, uma proposta para a cobertura desse julgamento – que, se
não foi o ‘do século’, na época, andou lá perto – por parte de Hannah
Arendt, filósofa judia alemã exilada nos EUA e ela própria com uma
passagem por um campo de concentração enquanto fugia do holocausto nazi.
A
chefe de redacção, céptica, pergunta-lhe: “É mais uma filósofa
europeia? Sabes que eles não têm limites para escrever e não são
conhecidos por cumprirem prazos”. Shawn defende Arendt e segue com a
aposta: “É um privilégio”.
O diálogo terá acontecido
assim naquela redacção, em 1961, ano do julgamento de Eichmann em
Jerusalém, onde estava detido depois de ser raptado pelos serviços
secretos israelitas na Argentina. E foi reproduzido no mais recente
filme de Margarethe von Trotta, estreado o ano passado na Europa e que
só agora (na próxima quinta-feira) chega às salas portuguesas. A
produção leva o nome da filósofa, uma das pensadoras mais marcantes do
século XX pela originalidade e independência, interpretada pela actriz e
cantora lírica Barbara Sukowa, outra referência do cinema alemão
contemporâneo, como von Trotta.
Mas, ao contrário do que
seria de esperar dos ditames da indústria cinematográfica, Margarethe
von Trotta não se perde a fazer um filme biográfico e encerrar em duas
horas estandardizadas uma vida tão complexa. O filme centra-se nos anos
entre a ida de Arendt a Israel para a cobertura do tal julgamento e a
polémica que se seguiu à publicação do seu artigo na New Yorker. É que a
‘filósofa europeia’ não só cumpriu os prazos de entrega, desfazendo o
medo dos responsáveis da redacção da revista, como partiu a loiça. Ao
contrário do que seria de esperar, Hannah Arendt não descreve um
monstro, nem sequer alguém mentalmente perturbado no julgamento. Ela tem
pela frente um homem de uma banalidade desconcertante.
Se
os actos praticados por Eichmann não encaixam na figura, então como foi
possível este homem, que alega em sua defesa limitar-se a cumprir
ordens, ser capaz de chefiar a temida Unidade IV D 4/4 e IV B 4 do
exército nazi e ser pessoalmente responsável pela organização geral da
deportação dos judeus da Alemanha e dos países europeus deportados?
Longe de o desculpar, Hannah Arendt quer compreender.
E é daí que lhe
surge o conceito da banalidade do mal, um dos mais conhecidos do seu
pensamento. Nesta altura, Arendt já tinha escrito duas obras de
referência para a compreensão da génese dos regimes autoritários que
floresceram na Europa no tempo da Segunda Guerra: As Origens do
Totalitarismo (1951), em que denuncia a origem do nazismo e do
estalinismo, e A Condição Humana (1958), na qual descreve a sua teoria
política.
Qualquer um pode ser Eichmann?
A
partir daí, entramos no clímax do filme. A dimensão humana de Arendt,
que von Trotta retrata, dizem os entendidos, fielmente, é posta à prova
logo após a publicação do artigo. A comunidade judia reprova-lhe a
classificação de um criminoso de guerra nazi como um homem banal, mas
não lhe perdoa de todo a denúncia que faz, no mesmo artigo, da inépcia
dos líderes judeus da época, que viram a catástrofe a acontecer quase
impavidamente.
A coragem custou-lhe até amizades de uma
vida. Mais uma vez, interessava-lhe não perdoar, mas compreender sem
crucificar previamente: “A banalidade do mal foi, no fundo, uma resposta
à questão: ‘como foi possível acontecer?”, diz Sofia Roque, que está a
trabalhar Numa tese de doutoramento sobre Arendt, na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa.
Se hoje aceitamos com alguma
facilidade que qualquer pessoa, em qualquer época, pode ser um Eichmann
ou um Hitler em potência, nos anos 60 isso não era assim. Quando Arendt
formula a ideia, os acontecimentos ainda eram analisados muito a
quente. No fundo, a ideia é coerente com o mais profundo dos pensamentos
da filósofa: “A compreensão é o modo da política, sem ela não nos
podemos situar no mundo”, acrescenta Sofia Roque, citando a autora.
Arendt nem sequer parece à vontade, no filme, com o facto de se estar a
fazer do nazi uma figura exemplar. Para ela, se uma pessoa abdicar,
devido a determinadas circunstâncias históricas, de fazer o que a torna
verdadeiramente humana – pensar – pode transformar-se num monstro.
Sofia,
que viu o filme na única apresentação que teve em Portugal, a 25 de
Maio no São Jorge (Lisboa), no âmbito da Judaica – 1.ª Mostra de Cinema e
Cultura, recorda ainda o humanismo da personagem construída por von
Trotta, que nem se esqueceu de pequenas conversas da filósofa com os
muitos amigos que cultivou ou até o modo como Arendt se deitava no sofá,
a fumar – era uma fumadora inveterada –, de olhos fechados, a organizar
pensamentos.
Mas recorda-se do modo como Barbara Sukowa
incarna a coragem da filósofa perante as críticas. Arendt chegou a
receber um bilhete de um vizinho do próprio prédio onde morava em Nova
Iorque, anónimo, que a chamava de ‘puta nazi’. Um dos seus amigos mais
próximas, Hans Jonas, também exilado em Nova Iorque, diz-lhe que ela se
tornou uma “intelectual arrogante alemã”. Mais tarde, seria convidada
pelo departamento da universidade onde leccionava a não dar mais aulas.
Resistiu sempre: “Ela procurou uma objectividade, distanciou-se da sua
condição de judia e de um modo absolutamente corajoso tenta encontrar
uma verdade num comportamento e enfrenta a comunidade judaica e os
leitores da New Yorker”.
Pelo filme passam também duas
histórias de amor. A relação de Arendt com o seu segundo marido,
Heinrich Blücher, um filósofo autodidacta alemão, que fugiu com ela da
França ocupada para os EUA através de Espanha e de Portugal, é
apresentada nos pequenos gestos. Blücher nunca deixa de estar do seu
lado.
Paixão impossível
Mas
há uma outra, dada em flashbacks, quando a jovem Arendt, ainda
estudante de filosofia na Alemanha, frequenta as aulas de Martin
Heidegger, um dos maiores filósofos do século XX.
O
fascínio da jovem Arendt transforma-se numa paixão ardente pelo
professor, vários anos mais velho. Mas a história não ficaria completa
sem polémica – Heidegger aderiu ao partido nazi em 1933 e estaria
implicado no afastamento de académicos judeus da sua universidade, como
se passou, de resto, em todas as áreas do conhecimento por toda a
Alemanha e a Áustria.
Os dois separaram-se, Arendt
conheceria Blücher já no exílio, e passaria pelo campo de concentração
de Gurs, em França, perto dos Pirinéus, antes do ‘salto’ definitivo para
os EUA. Mas a memória ficou. Hannah reataria a amizade entre ambos em
1950 e seria até responsável pela readmissão de Heidegger no meio
universitário. O filme aborda a questão de leve, sem revelar a
justificação do filósofo a Hannah, que lhe pede uma explicação.
Mistérios insondáveis da alma humana? A explicação é quase impossível,
mas Sofia Roque não vê aí mais do que algo privado, que a filósofa nunca
chegaria a partilhar por completo: “Heidegger não era um cidadão comum,
ele tinha os instrumentos suficientes para saber o que se estava a
passar. Será que Hannah Arendt o perdoou? Não nos diz respeito”.
E
qual será o lugar do pensamento de Hannah Arendt na actualidade? São
poucos hoje os que reclamam o modo como a filósofa pensa a tolerância, a
humanidade, e sobretudo a acção política. “Ela não define os objectivos
da acção política, nunca se assumiu em nenhum ‘ismo’ ou disse se era de
esquerda ou de direita”, esclarece Sofia Roque. Antes defende “a ideia
de um sistema de pequenos conselhos, de órgãos cuja dimensão permitisse a
participação directa” dos cidadãos nas decisões, um pouco como o espaço
público da polis na democracia ateniense da Antiguidade. Para Arendt, a
política é antes de tudo um espaço de liberdade entre plurais que podem
discutir, a partir do momento em que são cidadãos livres, “o sistema
social, de justiça e de igualdade”.
Se estivesse hoje
entre nós, Hannah Arendt ficaria por certo agradada com os movimentos
que saíram à rua um pouco por todo o mundo, a reclamar mais liberdade ou
melhores condições sociais, fosse contra ditaduras – como no mundo
árabe, num processo que ainda não acabou –, fosse contra políticas de
austeridade, na Europa e nos EUA.
A filósofa de figura
frágil e afável poderia ser uma indignada do século XXI? Arendt analisou
as revoluções, da americana à francesa, passando pela dos sovietes.
Hoje, talvez estaria preocupada em “ligar estes fenómenos aos movimentos
occupy”, aposta Sofia Roque.