No desenho ‘Caminhada dos prisioneiros para o auto de fé’, de A. Shoonebeck, um retrato da perseguição aos judeus
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Na Bahia do século XVII, o professor de um colégio jesuíta perguntou o
sobrenome de um de seus alunos. A resposta foi inusitada: “Qual deles, o
de dentro ou o de fora”? A história, contada pela historiadora da USP
Anita Novinsky em sua dissertação “O mito dos sobrenomes marranos”,
exemplifica o dilema dos cristãos-novos brasileiros, nos primeiros
séculos do país. Expor ou não o sobrenome da família fora de casa, sob
risco de ser identificado pela Inquisição e acusado do crime
inafiançável de “judaísmo”? O temor e a delicadeza do tema fizeram com
que a genealogia dos descendentes de judeus portugueses no Brasil fosse
envolta, por séculos, numa bruma de mitos e ignorância. Nos últimos
anos, no entanto, pesquisadores têm revelado surpresas sobre os
sobrenomes marranos no Brasil
No final do século XV, os judeus
compunham entre 10% e 15% da população de Portugal — somando os cerca de
50 mil locais e os quase 120 mil que cruzaram a fronteira em 1492,
quando os Reis Católicos Fernando e Isabela expulsaram toda a população
judaica da Espanha. Nos primeiros dois séculos depois do Descobrimento, o
Brasil recebeu boa parte dessa população, os chamados cristãos-novos
(ou “marranos”, pelo apelido pejorativo da época), convertidos ao
cristianismo à força, por decreto de Dom Manuel I, em 1497.
Historiadores concordam que um em cada três portugueses que imigraram
para a colônia era cristão-novo.
Até recentemente, acreditava-se
que esses judeus conversos abandonaram seus sobrenomes “infiéis” para
adotar novos “inventados” baseados exclusivamente em nomes de plantas,
árvores, frutas, animais e acidentes geográficos. Assim, seria fácil.
Todos os portugueses com os sobrenomes Pinheiro, Carvalho, Pereira,
Raposo, Serra, Monte ou Rios, entre outros, que imigraram para o Brasil
após 1500 devem ter sido marranos, certo? Errado.
— Em minhas
investigações, não encontrei prova documental de que nomes de árvores,
animais, plantas ou acidentes geográficos tenham pertencido apenas ou
quase sempre a marranos — afirma Anita Novisnky, uma das maiores
autoridades no assunto.
O que causa confusão, segundo Novinsky, é o
fato de que os sobrenomes adotados pelos cristãos-novos eram os mesmos
usados por cristãos-velhos, alguns por nostalgia, outros por medo de
perseguições. Afinal, no Brasil, os marranos foram perseguidos por 285
anos pela Inquisição portuguesa. Quem demonstrasse apego à antiga
religião poderia ser condenado à morte na fogueira dos “autos de fé”, as
cerimônias de penitência aos infiéis.
Como identificar, então,
quem era marrano? A mais importante pista está justamente nos arquivos
da Inquisição. Aproximadamente 40 mil julgamentos resistiram ao tempo,
95% deles referentes a crimes de judaísmo. Anita Novinsky encontrou
exatos 1.819 sobrenomes de cristãos-novos detidos, só no século XVIII,
no chamado “Livro dos Culpados”. Os sobrenomes mais comuns dos detidos
eram Rodrigues (citado 137 vezes), Nunes (120), Henriques (68), Mendes
(66), Correia (51), Lopes (51), Costa, (49), Cardoso (48), Silva (47) e
Fonseca (33).
— A Inquisição anotava todos os nomes dos detidos
cuidadosamente, como se fosse a Gestapo nazista e mantinha uma relação
de bens de cristãos-novos para confiscar — diz Anita.
Isso não
quer dizer, no entanto, que todas as famílias com esses sobrenomes eram
marranas. Nas investigações, sob tortura, os detidos diziam tudo o que
os inquisidores queriam ouvir, acusando vizinhos, empregados e parentes
“inocentes”. Fora isso, os sobrenomes eram realmente comuns.
— Não
havia nenhum sobrenome exclusivo de cristãos-novos. Até porque eles
mudavam sempre que podiam, além de adotarem nomes compostos. Muitos
irmãos e esposos adotavam até mesmo sobrenomes diferentes, só para
confundir — explica o historiador israelense Avi Gross.
O
historiador paulistano Paulo Valadares, autor do “Dicionário Sefaradi de
Sobrenomes”, no qual destaca 14 mil sobrenomes oriundos de judeus da
Península Ibérica, aponta para mais uma complicação: o da mestiçagem
brasileira. A grande maioria dos cristãos-novos se misturou depois de
uma ou duas gerações com outras culturas e raças.
— Poucos
conseguiram manter as tradições judaicas por muito tempo. Algumas
famílias tentaram, se isolando em algumas áreas do país, principalmente
no Sertão nordestino, e praticando a endogamia (casamentos dentro da
família).
Para os aficionados em genealogia, um novo site na
internet, o “Name your roots” (que tem versão em português), pode ajudar
a descobrir as raízes. No portal, criado há três meses por dois
religiosos israelenses, é possível obter explicações e bibliografia
gratuitamente sobre sobrenomes marranos comuns no Brasil.
Mas
Paulo Valadares alerta que é preciso ir além: identificar se há
antepassados portugueses que chegaram ao Brasil nos séculos XVI ou XVII
ou se foram citados nos anais da Inquisição até o século XVIII, se a
família se estabeleceu em alguma região específica e se guarda tradições
“estranhas”. O documentário “A estrela oculta do Sertão”, de Elaine
Eiger e Luize Valente, traz exemplos de algumas dessas tradições, que
ainda sobrevivem no Nordeste: olhar a primeira estrela no céu, não comer
certos alimentos como carne de porco, não misturar carne com leite,
vestir a melhor roupa na sexta-feira, enterrar corpos em “terra limpa”
(envolto apenas numa mortalha), rezar numa língua estranha e colocar
pedras em túmulos.
— Depois de conviver com comunidades do
interior do país, percebi como os descendentes de marranos praticam
tradições judaicas no dia a dia — conta Luize , que lança, em agosto, o
romance “O segredo do oratório” (Record), contando a saga de uma família
de cristãos-novos no Brasil.
O médico paraibano Luciano Canuto de
Oliveira, que voltou ao judaísmo depois de descobrir suas origens
marranas, define sua identidade de modo parecido com a resposta do aluno
do colégio jesuíta, há quatro séculos: “Ser marrano é ser judeu por
dentro e católico por fora”.