A pequena Venha-Ver, fundada em 1811 por cristãos-novos, guarda vestígios de sua origem judaica
Cidade no RN preserva tradição judaica
Uma pequena cidade perdida no interior do Rio Grande do Norte guarda
vestígios da origem judaica de sua população, cujos fundadores, em 1811,
eram descendentes de cristãos-novos (judeus) convertidos à fé cristã.
Mesmo cristãos, os habitantes de Venha-Ver (440 km a oeste de Natal)
revelam em hábitos cotidianos uma tradição particular, transmitida há
séculos de geração a geração.
A maioria dos habitantes, porém, não tem consciência da origem de
seus ancestrais. Os sinais mais evidentes da tradição judaica
encontrados na pequena cidade pela Agência Folha são a fixação de cruzes
em formato hexagonal na porta de entrada das casas, o enterro dos
corpos em mortalhas brancas e os sobrenomes típicos de cristãos-novos.
Os costumes de retirar totalmente o sangue da carne animal após o
abate e de colocar seixos sobre os túmulos também podem ser relacionados
à ascendência judaica dos habitantes.
Os judeus colocam seixos sobre as sepulturas com o significado de que
o morto não será esquecido. Em Venha-Ver, pôr um seixo sobre o túmulo
significa uma oração à pessoa ali enterrada.
O próprio nome da cidade é uma provável fusão da palavra “vem” (do
verbo vir, em português) com o termo hebraico “chaver” (pronuncia-se
ráver), que significa amigo, companheiro. Ou seja, Venha-Ver seria uma
corruptela de “Vem, Chaver”.
Esses foram parte dos indícios relatados pelo rabino Jacques
Cukierkorn em sua tese de rabinato (equivalente a mestrado) sobre a
ascendência judaica entre a população do Rio Grande do Norte. A
preservação de tradições centenárias entre a comunidade de Venha-Ver foi
facilitada pelo isolamento do município, situado no extremo oeste do
Rio Grande do Norte, nas fronteiras com Ceará e Paraíba. Só se chega ali
por uma sinuosa estrada de terra.
Batentes
Para o rabino Cukierkorn, as cruzes de Venha-Ver têm sua origem na
mezuzá -pequena caixinha com uma reza que os judeus fixam nos batentes
das portas.
Muitas delas têm formato hexagonal, como a Estrela de David, símbolo
da fé judaica. A população explica as cruzes nas portas de suas casas
como uma proteção contra o mal, o demônio, a ventania e os raios. Os
judeus fixam a mezuzá nos batentes para demarcar a proteção divina sobre
a casa.
Na pequena localidade, os cadáveres são envolvidos em mortalhas para
serem conduzidos até a sepultura. É o que determina a tradição judaica.
Esse costume é explicado pelos habitantes de Venha-Ver como algo passado
de pai para filho. Há um preconceito contra o uso de caixão –
recentemente introduzido nos funerais locais.
Cukierkorn vê, na forma de tratar a carne animal, a presença das
regras da culinária “kasher” -determinadas pelo judaísmo. Logo após o
abate de um animal em Venha-Ver, os pedaços de carne são dependurados
com uma corda sobre um tronco de árvore, para que todo o sangue escorra.
Depois disso, a carne é salgada – prática usual entre os judeus
ortodoxos.
Cristãos-novos
Os sobrenomes mais comuns da população branca de Venha-Ver (parte da
comunidade, de fixação mais recente, tem origem negra) são Carvalho,
Moreira, Nogueira, Oliveira e Pinheiro, notadamente de cristãos-novos,
conforme estudo do professor de antropologia José Nunes Cabral de
Carvalho (1913-1979), fundador da Comunidade Israelita do Rio Grande do
Norte.
A repressão religiosa desencadeada pela Inquisição, particularmente
nos séculos 15 e 16, fez com que uma ampla população judaica tenha sido
forçada a se converter ao cristianismo em Portugal, Espanha e também no
Brasil, alterando sua fé religiosa, sobrenome e comportamento social.
Grupo retomou características
Em Natal, cinquenta famílias – cerca de 200 pessoas – formam a
“comunidade marrana”. São famílias cujos ancestrais eram cristãos-novos e
que, nas últimas gerações, retornaram à fé judaica. As famílias se
reúnem uma vez por semana na sinagoga do Centro Israelita do Rio Grande
do Norte, que foi fundado, em 1929, pela família Palatnik e
reinaugurado, em 1979, pelo ex-pastor presbiteriano e líder espiritual
João Dias Medeiros.
Às sextas-feiras à noite, é celebrado o cabalat-shabat, a cerimônia religiosa que marca o início do dia sagrado para os judeus.
Não há rabino. Um orador entoa as orações cantadas e seguidas pelos
frequentadores por meio de um livro (sidur) doado pela Congregação
Israelita Paulista (CIP).
No início da cerimônia, velas são acesas e, no final, é feita a
bênção do vinho e a repartição da chalá (pronuncia-se ralá), o pão de
tranças.
Mulheres e homens cobrem as cabeças. A cerimônia é um rito judaico.
“Nós também celebramos as festas tradicionais, como o Yom Kipur (Dia do
Perdão), Rosh Hashaná (Ano Novo), Pessach (Páscoa), Purim e Shavuot”,
afirma Éder Barosh. Seu sobrenome original era Barros.
Os integrantes da comunidade natalense também seguem a dieta kasher,
que prevê a separação entre refeições de leite e carne. Uma ala
israelita no Cemitério do Alecrim demarca a presença judaica em Natal.
Práticas judaicas são sigilosas
O rabino Jacques Cukierkorn, 31, sustenta em sua tese de rabinato,
defendida há cinco anos no Hebrew Union College (HUC), em Cincinnatti
(Ohio, EUA), que a comunidade de Venha-Ver mantém vivos até hoje
vestígios de práticas judaicas.
A Agência Folha encontrou alguns dos indícios descritos pelo rabino,
mas não achou outros – como saquinhos de areia presos no batente das
portas e rituais de funerais (lavagem do corpo e a permanência da
família em casa durante sete dias após a morte).
O rabino afirmou que não encontrar na cidade parte dos indícios que
ele relata em sua tese deve-se ao fato de os marranos manterem as
práticas religiosas judaicas “em segredo”. “Não existem sinais
exteriores. Pelo medo, pela necessidade que lhes foi passada, desde a
Inquisição, de que era preciso manter em sigilo a condição ou qualquer
indício judaico, eles não externam evidências”, afirmou.
Segundo o rabino, pelo menos 10% da população brasileira (cerca de 16 milhões de pessoas) tem origem judaica remota.
Cukierkorn chama de “marrano” quem tenha judeus em sua ascendência. A
comunidade judaica no Brasil tem hoje cerca de 175 mil pessoas. Para
ele, a porcentagem de marranos no Nordeste é ainda maior.
“Creio que a origem judaica dos marranos, incluindo os que povoaram o Nordeste, é incontestável.”
(tradução: Adivo Paim Filho)