Angelo Adriano Faria de Assis
Doutorando-Universidade Federal Fluminense
Doutorando-Universidade Federal Fluminense
No judaísmo tradicional ¾ religião letrada calcada na leitura e discussão dos livros sagrados ¾,
as mulheres limitavam-se a ocupar posições inferiores aos homens,
como locais secundários no culto e papéis públicos limitados,
recebendo apenas uma educação mínima, a ponto de se crer que era
melhor queimar as sagradas palavras da Torá do que transmiti-las
e ensiná-las às mulheres.
A proibição da fé hebraica no Mundo Português e a nova importância dada à educação no lar, porém, levariam a uma transformação destes papéis, transformando o judaísmo numa espécie de "religião domiciliar", fruto da impossibilidade de sua divulgação pública, com nova ênfase para a divulgação oral dos ensinamentos devido às dificuldades e perigos de se possuir os textos hebraicos. Funções que antes eram exclusivas dos homens passariam à responsabilidade do sexo feminino ¾ sinal da ocorrência, no seio da religião mosaica, de um certo afrouxamento dos rigorismos, visando a garantir-lhe a sobrevivência em ambiente hostil.
A proibição da fé hebraica no Mundo Português e a nova importância dada à educação no lar, porém, levariam a uma transformação destes papéis, transformando o judaísmo numa espécie de "religião domiciliar", fruto da impossibilidade de sua divulgação pública, com nova ênfase para a divulgação oral dos ensinamentos devido às dificuldades e perigos de se possuir os textos hebraicos. Funções que antes eram exclusivas dos homens passariam à responsabilidade do sexo feminino ¾ sinal da ocorrência, no seio da religião mosaica, de um certo afrouxamento dos rigorismos, visando a garantir-lhe a sobrevivência em ambiente hostil.
Por razões óbvias, as residências passariam a
ocupar importância estratégica: seriam os lares locais de propagação
do judaísmo vivo, através da memória ensinada e das práticas
religiosas e cerimoniais. Impedida a existência da escola judaica,
explica Lina Gorenstein, "a cultura doméstica continuou, em parte,
com aquelas práticas e celebrações de 'portas a dentro'"12,
embora essas práticas sofressem certo esvaziamento e modificações
conforme necessidade e afastamento do período de judaísmo permitido.
A própria teologia judaica, cada vez menos profundamente conhecida
pelas novas gerações de judaizantes, enfrentava as conseqüências
destas limitações, agravadas pela inexistência de rabinos para
cumprir o papel que lhes caberia numa situação de normalidade
religiosa, como também pela proibição da bibliografia relativa à
religião mosaica: impossibilitados da leitura sagrada, a Torá, muitos
utilizavam a Bíblia católica como solução litúrgica, embora
renegando os textos do Novo Testamento, além do novo alento que seria
destinado à transmissão oral de seus ensinamentos.
Impedidos de denunciar suas preferências doutrinárias, e procurando
driblar as desconfianças da sociedade, os criptojudeus viam-se obrigados
a abandonar certas cerimônias marcantes da sua profissão de fé em
favor de práticas menos conhecidas ou delatoras de sua real entrega
religiosa: substituíram-se assim, as circuncisões pelas orações e
vigílias domiciliares; a guarda pública de certas datas e festas,
como o Ano Novo ou o Pentecostes, pelos jejuns. Com o mesmo intuito,
celebrações que no judaísmo tradicional ocupavam posição de menor
destaque passavam, por serem menos acusadoras, a tema central da
resistência marrana, como foi o caso do "Jejum de Ester" ¾ rainha judia que escondia suas origens ao próprio marido, vivendo, como os criptojudeus, da dissimulação ¾,
tornando-se a "Oração de Ester" a "prece marrana por excelência". É
bastante significativo o fato de ser uma mulher a heroína dos
cristãos-novos, e o exemplo de Ester se repetiria constantemente
devido às necessidades impostas aos criptojudeus. O judaísmo de
"portas a dentro" mostrar-se-ia, nos mais ínfimos detalhes,
influenciado pela figura da mulher13.
Anita Novinsky assim define o novo quadro da resistência judaica:
(...) proibida a sinagoga, a escola, o estudo, sem autoridades religiosas, sem mestres, sem livros, o peso da casa foi grande. A casa foi o lugar do culto, a casa tornou-se o próprio Templo. No Brasil Colonial, como em Portugal, somente em casa os homens podiam ser judeus. Eram cristãos para o mundo e judeus em casa. Isso teria sido impossível sem a participação da mulher14.
Aqui como lá, o núcleo familiar tornou-se locus privilegiado para a irradiação da lei mosaica, içando as mulheres ao status de grandes responsáveis por sua reprodução.
Apesar de não oferecer privacidade e discrição suficientes para seus
moradores, o lar colonial firmar-se-ia como ambiente propício para a
continuidade hebraica. As constantes necessidades de deslocamento numa
região onde as distâncias não eram facilmente vencidas causavam a
freqüente ausência do cabeça da família, redimensionando ainda mais o
papel da mulher, conferindo-lhe maior destaque na organização do
ambiente familiar, responsável pelo bom funcionamento da casa, atuando
na criação e educação dos descendentes, vivenciando tradições
impossíveis de serem realizadas em outro espaço, moldando a
orientação religiosa dos filhos, servindo de liame entre os
componentes do clã. Lar-escola-sinagoga: as residências incorporavam
em seu espaço o tripé da tradição judaica. Espaço multifuncional onde
a mulher exerceria conjuntamente as tarefas de provedora, mãe,
educadora, catequista e rabi.
Sustentáculos da religião
proibida, as "mulheres cristãs-novas apresentaram no Brasil uma
resistência passiva e deliberada ao catolicismo. Foram prosélitas,
recebiam e transmitiam as mensagens orais e influenciavam as gerações
mais novas"15,
cientes da necessidade de encobrir seus verdadeiros objetivos.
Transmitindo os ritos religiosos ao praticá-los nas residências,
realizavam o rabinato diminuto, feminino e oral que se tornara
possível e que, embora contrariasse o códice mosaico, garantiu-lhe a
sobrevivência. Conforme lembra Elias Lipiner, dizia-se à época das
mulheres neoconversas que, "devotas e rezadeiras, iam nos domingos e
dias santos ouvir missa", procurando evitar, perante a sociedade, as
desconfianças sobre sua real entrega ao catolicismo, "mas nos sábados
vestiam seus melhores vestidos"16,
preparando-se para o sagrado dia de descanso dos judeus, reunindo a
família para celebrar os costumes de seus antepassados.
A
nova importância destinada à mulher neoconversa não passaria em
branco para a Inquisição. Assim, desmascarar a fonte de disseminação
da heresia judaica e reprimir exemplarmente os seus responsáveis
fazia-se imprescindível. Na documentação produzida pelo Santo Ofício
português durante a visitação às capitanias açucareiras do Nordeste
brasílico entre 1591 e 1595, encontram-se indícios do judaísmo
vivenciado na colônia, mormente ligado a ritos, prática da "esnoga",
cultos funerários, interdições alimentares, formas de benzer
heterodoxas, negações à religião dominante em seus símbolos e dogmas,
onde, indiscutivelmente, a importância das mulheres salta aos olhos17.
É variado o desfile de relatos sobre mulheres que insistiam em
manter fidelidade ao judaísmo, praticando-o nos momentos de
privacidade, embora publicamente, imbuídas dos temores que oprimiam
os simpatizantes de Israel, dissimulassem, declarando-se verdadeiras
cristãs. Não foram poucas as denúncias a retratar a dubiedade vivida
pelas cristãs-novas na colônia, não só externamente ¾ suportando o peso das fronteiras sociais ¾,
mas também em seu interior, confundindo muitas vezes a tradição
cristã com os ensinamentos judaicos, divididas entre a fé imposta e a
do coração, desconhecendo ambas em seus detalhes, praticando-as de
forma igualmente equivocada ou, ao menos, descuidada.
Dentre aquelas mais insistentemente acusadas ao Santo Ofício como
judaizantes, a causarem escândalo nas duas principais capitanias
coloniais à época da primeira visitação, destacam-se os nomes das
cristãs-novas Branca Dias, em Pernambuco, e Ana Rodrigues, na Bahia,
exemplos definitivos do "rabinato feminino" exercido na colônia, não
só pelo alto número de acusações de que foram vítimas, mas pela
riqueza de detalhes sobre as práticas de judaísmo que mantinham em
seu cotidiano. Verdadeiras matriarcas do criptojudaísmo brasílico, as
duas senhoras teriam suas vidas vasculhadas e detalhes de seus
comportamentos revelados com insistência ao visitador.
Branca Dias deixara o reino depois de cumprir pena no Santo Ofício de
Lisboa, denunciada pela própria mãe e irmã de práticas judaicas,
ambas também presas pelo Tribunal Inquisitorial. Livre, viera para
Pernambuco, onde já se encontrava seu marido, o comerciante Diogo
Fernandes, e viveriam com os filhos, a quem eram transmitidos os valores
da antiga fé. Abriria com o esposo um internato para moças com boa
procura de alunas, dotando-as ainda mais para o disputado mercado
matrimonial. Em sua escola, algumas donzelas da colônia aprendiam a
lavar, costurar, cozinhar, trabalhos do lar e boas maneiras.
Era exemplo típico de criptojudaísmo. Corria a fama de que o casal
possuía uma sinagoga em seu engenho, a famosa "esnoga de Camaragibi",
uma das mais denunciadas durante a visitação de Heitor Furtado,
freqüentada por boa parte dos acusados de práticas judaicas em
Pernambuco, entre eles, alguns dos principais da capitania. A
sinagoga de Camaragibi era, dentre as citadas na documentação
referente à primeira visitação inquisitorial, a que mantinha seus
trabalhos por mais tempo: certas denúncias davam conta de suas
atividades há mais de quarenta anos. Fora erguida nas terras
pertencentes ao casal Diogo Fernandes e Branca Dias, ambos já
falecidos quando da chegada de Heitor Furtado e de seu séquito. Em
Camaragibi, era fama pública que existiam judeus e se adorava a toura ¾
metáfora bastante usada para dizer que se seguia a lei mosaica ou
dos judeus. Em denúncia ao visitador datada de 16 de novembro de
1593, Felipe Cavalcanti afirma que a "gente da Nação" olindense se
reunia na tal esnoga de Camaragibi, a quatro ou cinco léguas de
distância da vila, onde "faziam suas cerimônias e que nas ditas luas
novas de agosto iam", em seus carros enramados e com festas "ao dito
Camaragibi a celebrar a festa do jejum" do Iom Kipur, o dia mais
sagrado do calendário judaico18.
Nos dias de reunião, os judaizantes eram convocados de forma
singela: o cristão-novo Tomás Lopes, alfaiate aposentado conhecido
pela alcunha de O Maniquete, usando código previamente
combinado, desfilava pelas principais ruas de Olinda com um pano
branco amarrado a um pé descalço: era, por isso, denominado o
"campainha dos judeus".
De acordo com Elias Lipiner,
(...) a localização preferencial das sinagogas nos engenhos, se deve ao fato de que nos começos da colonização cabia aos engenhos, além de função própria de empresa particular agrícola, também a função religiosa, e especialmente a militar, destinada a torná-los baluartes armados para defender-se dos ataques dos índios ou outros inimigos.
O prestígio e a proteção de
que desfrutava o senhor-de-engenho era fator premente para a
escolha: "tais privilégios de autonomia, eram aproveitados pelos
senhores-de-engenho cristãos-novos, posto que discretamente, para, no
âmbito de sua hegemonia, erguerem ao lado das ermidas em homenagem à
crença dominante, também as esnogas ¾ em reverência ao culto de seu coração"19 ¾,
exemplo consistente do sincretismo religioso e da convivência
latente entre a crença católica e os resquícios de judaísmo.
A matriarca de Camaragibi, apesar das evidências, esforçar-se-ia no
esteriótipo de boa cristã, casando as filhas com cristãos-velhos
respeitados, aproveitando-se da colônia "faminta de mulher branca"20,
almejando melhoria social e diminuição das pressões públicas
sobre o sangue herético, embora não dispensasse a presença destas nas
celebrações da fé judaica que fazia em casa. Além de Branca, de sua
família sairiam quatro gerações de indivíduos aprisionados e julgados
pelo Santo Ofício: sua mãe, Violante Dias; sua irmã Isabel; Brites
Fernandes, a "Alcorcovada", e Andressa Jorge, suas filhas; Leonardo
Pereira, Jorge de Souza, Maria de Souza, Ana de Arruda e Catarina
Favela, seus netos.
Quando o inquisidor chegou a
Pernambuco, Branca já era falecida, o que não a impediria de estar no
rol das mais denunciadas. Algumas de suas antigas aprendizes e
conhecidas de longa data relembrariam o estranho comportamento e
costumes malvistos da professora de boas maneiras, alguns dos fatos
ocorridos há mais de trinta anos. Joana Fernandes fora uma delas:
"viu a dita Branca Dias nos sábados de todo o dito ano que em uma
casa aprendeu não fiar nunca. E viu que nos ditos sábados pela manhã
se vestia com camisa lavada e apertava a cabeça com seu toucado
lavado", vestindo aos filhos com "o melhor vestido que tinha". Nas
sextas-feiras à tarde, mandava lavar e esfregar o sobrado e, nos
sábados, jantava "mais cedo que nos outros dias, e (...) chamava
acima do sobrado as ditas suas filhas (...) e todos iam então acima
jantar com ela", quando "jantavam sempre uma iguaria que nunca
comiam"21.
A restrita privacidade existente no ambiente colonial encarregar-se-ia
de divulgar o que ocorria entre as paredes do sobrado dos Fernandes:
ouvidos e olhos estavam sempre atentos para saber novidades da vida
privada, tornada pública a todo instante. Antiga vizinha da dama
judaizante, Beatriz Luis mostraria em seu depoimento a confusão
existente entre os símbolos que representavam o judaísmo, alguns dos
quais, herdeiros de um imaginário que tendia, no limite, a demonizar
os judeus. Contava ao inquisidor ter ouvido do neto de Branca Dias,
então com cerca de cinco anos, que sua avó "tinha debaixo do chão uns
santinhos, assim como pacas, aos quais adorava, (...) as quais pacas
são uns animais do mato desta terra que pouco mais ou menos têm o
parecer de lebres". Para evitar maiores problemas e novas revelações,
o menino delator "se ausentou desta terra" a mando dos parentes22.
Outras ex-alunas procurariam o inquisidor para relatar o que
presenciaram: Maria Álvares, ressaltaria o descaso cristão da mestra:
ao trazer certa vez "no pescoço umas contas de rezar com uma cruz
pendurada nelas, correndo-lhe a cruz para diante dos peitos, tomou com
a mão a cruz e, dizendo para a cruz dou-te ao demo, a lançou para detrás das costas"23.
Ana Lins, que por três anos fora "doutrinada e ensinada a cozer e a
lavrar" afirmava que, aos domingos, estando nas missas, "quando
levantavam ao senhor na hóstia consagrada, olhando a dita Branca Dias
para a hóstia, dizia estas palavras: ah, cães encadeados!",
enquanto apontava para o altar. Reparara ainda que a antiga
professora possuía sobre a cama "uma cabeça de boi sem cornos", que
"se punha muitas vezes sobre a dita cama às sextas-feiras", onde
ficava até os domingos24. A cabeça de boi, ou "toura", era a corruptela a que foi submetido o livro sagrado dos judeus, a Torá. Para Lipiner,
... dada a clandestinidade que envolvia todos os atos da prática judaica, é de admitir-se que os próprios cristãos-novos adotassem o estratagema de confundir sua toura com a cabeça de boi, em linguagem cifrada, subtraindo, assim, o verdadeiro significado à compreensão dos espias do Santo Ofício"25.
O mais estarrecedor dos casos envolvendo mulheres acusadas de
práticas judaizantes na documentação referente às visitações
inquisitoriais ao Brasil, sem dúvida, seria o de Ana Rodrigues,
moradora em Matoim, no Recôncavo Baiano.
A cristã-nova Ana
Rodrigues viera do reino com Heitor Antunes, seu marido,
senhor-de-engenho e "cavaleiro da casa del-rei", que se orgulhava em
apontar sua descendência direta dos Macabeus ¾ célebre família de sacerdotes e militares judeus do século II a. C., cuja epopéia é narrada no Antigo Testamento.
Teve sete filhos e, como Branca Dias, conseguira genros de sangue
puro. Eram conhecidos como "a gente de Matoim". Morto o marido, Ana
Rodrigues o enterrara segundo a tradição, em terra virgem,
pranteando-o pelo modo judaico. Esperava o momento de poder se juntar
novamente ao esposo, também de acordo com a fé que seguia:
testemunhas afirmavam que guardava "as jóias de quando se casou para
se enterrar com elas quando morrer"26.
Segundo diziam, o "cavaleiro macabeu" possuíra sinagoga em suas terras
durante décadas. A esnoga de Matoim era a mais conhecida de toda a
Bahia. Localizava-se nas terras pertencentes aos Antunes. O templo
sagrado teria sido construído por Heitor em seu engenho, numa
"casinha separada", localizada ao lado da residência. Freqüentada por
importantes figuras da capitania, nela reuniam-se secretamente os
judaizantes em dias específicos, "deixando dito na cidade que iam
fazer peso" ¾ numa tentativa, sem muito sucesso, de despistar o verdadeiro destino dos que para lá se dirigiam.
O funcionamento da "esnoga dos Antunes" iria longe, ultrapassando em
muito a vida de seu próprio fundador, falecido mais de uma década
antes da chegada do visitador Furtado de Mendonça. Algumas das várias
denúncias que citam a "casinha" de Matoim ao inquisidor diziam ter
conhecimento da sua existência há cerca de trinta anos, o que a
transformava na mais antiga sinagoga em funcionamento de que se tinha
notícia na Bahia e uma das mais tradicionais de toda a região
colonial. Nem mesmo a presença da visitação inquisitorial na
capitania-sede do governo português na América, a espalhar o medo e o
aumento de intrigas por todos os lados, e a tornar os cristãos-novos
em geral mais comedidos em seus atos e palavras, teria sido motivo
suficiente, afirmavam alguns delatores, para que cessassem as
reuniões judaicas em Matoim, num claro sinal de desrespeito e
enfrentamento ao Santo Ofício e à religião dominante. No entanto,
desconhece-se que Furtado de Mendonça, apesar de haver prendido a
matriarca do clã e alguns de seus descendentes, tenha tomado qualquer
atitude mais efetiva para averiguar e desbaratar a sinagoga de
Heitor Antunes ou mesmo processar os seus freqüentadores, nomeados
pelos acusadores.
A presença da Inquisição acabaria com a
tranqüilidade da família, seguidamente acusada de criptojudaísmo e
de desrespeito à fé católica. Dentre os Antunes, seria Ana Rodrigues a
denunciada com maior gravidade e insistência. Prevendo as trágicas
conseqüências da visita do Tribunal, alguns membros do clã
aproveitariam o período da graça para confessar os erros,
adiantando-se à avalanche de acusadores do clã, procurando, assim,
mostrar boa vontade com o Santo Ofício e amenizar as culpas que lhes
eram imputadas.
Judaizante ao extremo e de idade bastante
avançada, era conhecida pelas blasfêmias que pronunciava. O
inacreditável parentesco bíblico de que outrora se orgulhara o marido
passara a símbolo do escárnio público de que era vítima ao lado das
filhas, chamadas pejorativamente de "Macabéias". Suas histórias
geravam escândalo. No batismo de uma bisneta, teria Ana afirmado:
"olhai que negro batismo"! Quando de um dos partos de suas filhas,
clamando-se por Nossa Senhora, dissera, "não me faleis nisso que não
no posso dizer"27!
Uma parenta cristã velha contaria sobre a octogenária matriarca
que, adoecida certa vez, "suas filhas lhe mostravam um crucifixo e que
ela o não queria ver, dizendo: tirai-o lá", recebendo o
auxílio de um filho para livrar-se da incômoda presença. O receio de
ter a crença proibida desvendada e da rejeição social daí
decorrente levaria uma de suas filhas a retrucar: "mãe, não nos
desonreis porque somos casadas com homens cristãos velhos e nobres".
Quando em lucidez, tentava, assim como as filhas, manter as aparências,
"sendo devotas de Nossa Senhora e fazendo romarias, indo às igrejas,
dando esmolas e fazendo outras boas obras de boas cristãs"28.
Apesar do esforço, aos olhos populares sua residência era transformada
em verdadeiro templo judaico, onde ensinava as tradições da antiga
lei aos filhos. Não foram poucas as denúncias a retratar minuciosamente
os costumes da matriarca e de sua família, como as práticas e
interdições alimentares, as bênçãos e o luto ao modo judaico, as
orações com guaias, o respeito aos jejuns e dias santos para os
hebreus ¾ cerimônias que, pelo exemplo vivo da matriarca macabéia, eram transmitidas aos descendentes.
A velha senhora seria acusada de judaísmo, e seus denunciantes
desfilariam o rol de suas culpas repetidas vezes. Com mais veemência,
seria delatada por guardar o dia sagrado dos judeus; não comer
certos tipos de alimento; jurar pelo mundo que tem a alma do marido e
guardar-lhe luto ao modo dos judeus; lançar a água de casa fora em
caso de falecimento; fazer jejuns e orações judaicas, movimentando o
corpo à maneira dos judeus; recusar um crucifixo quando doente, e
benzer filhos e netos escorregando-lhes a mão pelo rosto. Outros
parentes próximos da anciã ¾ principalmente filhos e netos ¾
confessariam ou seriam acusados de algumas destas práticas, embora
em nenhum caso tenha-se repetido o mesmo número de acusações que
pesavam sobre a matriarca da família. O envolvimento de filhos, netos
e sobrinhos nas acusações de judaísmo permite-nos vislumbrar o grau
de complexidade do fenômeno criptojudaico entre os Antunes através
da preservação de várias tradições do judaísmo de "portas a dentro",
reproduzidas no ambiente doméstico e transmitidas às novas gerações,
embora estes costumes sofressem uma espécie de "filtragem" na
recepção, com o abandono crescente de algumas destas práticas pelos
descendentes na tentativa de ocultar a fé proibida (sem contar, como
já foi aqui abordado, o próprio processo de aculturação a que os
cristãos-novos estavam submetidos).
Tamanha dedicação à
tradição judaica não passaria incólume aos olhares atentos do
visitador do Santo Ofício. Ciente disto, e temendo as acusações que
pudessem recair sobre toda a família, assim como as conseqüências
que um processo inquisitorial poderia trazer, inclusive à parcela cristã
velha do clã, alguns membros, entre eles a própria Ana Rodrigues,
tentariam amenizar as denúncias, procurando justificativas para
explicar os comportamentos heréticos da família ao inquisidor.
Em seu primeiro depoimento a Heitor Furtado, a matriarca daria início
a um procedimento que se tornaria freqüente durante todo o tempo em
que procurou fazer sua defesa das acusações de que era vítima:
usou da dissimulação, procurando confundir o inquisidor na apuração
das culpas. Idas e vindas seriam comuns nos seus depoimentos, mudando
versões, negando afirmações anteriores, escondendo dados importantes e
citando informações falsas ou desconexas. É assim que afirma
primeiramente possuir 80 anos aproximados, depois mudando a idade para
86 e para 110 anos, fato de extrema importância no processo, visto
que o fator idade poderia significar prova cabal de judaísmo contra a
velha senhora: apresentando-se como octogenária, teria nascido na
primeira ou segunda década do século XVI, o que a tornava filha de
pais conversos, dos quais teria herdado os ensinamentos hebraicos,
tendo conhecido e convivido com antigos judeus, mas educada dentro
das normas cristãs. Se realmente possuísse 110 anos como consta em
determinada altura de seu processo, teria nascido por volta de 1483,
em berço judaico, seguindo abertamente o judaísmo e aprendendo-o até
os quatorze anos, quando dos decretos de conversão de 1497. Até para a
provável idade de cerca de oitenta anos, a idade dos filhos (alguns
afirmando terem menos de quarenta anos) apresenta sensíveis
problemas, o que aponta para as imprecisões comuns à época em relação
à idade, tanto de Ana quanto dos filhos. O certo é que a velha
matriarca aproveitava-se da idade de todo modo avançada para alegar
falta de memória e de sanidade ¾ o que não deixa de ser uma possibilidade real ¾ beneficiando-se com possíveis alterações na datação de acontecimentos importantes de sua biografia.
O teatro armado pela anciã ¾ e também alimentado por seus familiares, a insistirem em sua inocência ¾
não convenceria o visitador do Santo Ofício. Ana Rodrigues seria
presa e enviada para Lisboa, em uma câmara comprada para ela,
enjaulada e incomunicável, (digo:) acompanhada de uma escrava negra
de nome Brisida, para agasalhá-la e servi-la durante a viagem, "por a
dita Ana Roiz ser velha, entrevada, costumada a ser agasalhada com a
dita escrava" (?!), possivelmente a última oportunidade da velha
prisioneira confiar aos filhos, por intermédio da escrava ¾ caso esta voltasse à colônia ¾,
uma derradeira mensagem, lembretes sobre como manter a dissimulação
ou mesmo o conhecimento de algumas informações prestadas perante a
Santa Mesa da Inquisição, exemplo de resistência ou ensinamento
judaico. Infelizmente para o trabalho do historiador, o paradeiro da
escrava perde-se a partir do início da travessia para a outra margem
do Atlântico.
Idosa e doente, vingar-se-ia da prisão
morrendo no cárcere, o que não a livraria de ser processada pela
Inquisição, condenada ao "braço secular" e relaxada em efígie, tendo
sua memória amaldiçoada e os ossos desenterrados, "queimados e feitos
em pó em detestação de tão grande crime". Para evitar que seu
exemplo fosse repetido, um quadro retratando-a entre labaredas e seres
demoníacos ficaria exposto na igreja de Matoim, onde morara, a mando
do Santo Ofício. Além da matriarca macabéia, outras gerações de
familiares sofreriam acusações, e alguns deles seriam processados
pela Inquisição: Heitor Antunes, seu falecido marido; Beatriz,
Violante e Leonor, suas filhas, e a neta, Ana Alcoforado. Como os
Macabeus bíblicos que lhe emprestaram o nome, seria, ela e os
familiares, vítimas da intolerância religiosa de uma sociedade que
não os compreendia nem aceitava em suas especificidades, passando
ambos à História como heróis na defesa de seus ideais e direito de
escolha de seu povo e familiares.
Sua condenação traria,
afora as complicações sociais para os membros da família, afamados
como judaizantes e/ou coniventes e acobertadores de práticas
criptojudaicas, um outro agravante para seus descendentes: os bens em
nome da velha senhora seriam confiscados pela Inquisição, o que
levaria os seus genros anos depois, em 1600, a apresentarem,
pessoalmente, diversas petições em Lisboa para revisão da pena,
novamente alegando idade avançada e insanidade da velha matriarca,
procurando não só limpar o nome da família, mas recuperar os bens
tomados pelos inquisidores para continuar os negócios do clã na
Bahia. Como define Elias Lipiner,
(...) a jurisdição do Tribunal da fé não se extinguia com as labaredas da fogueira em que eram sacrificadas suas vítimas. Não parava em quem fora por ele condenado, mas estendia-se aos descendentes vivos para serem diretamente atingidos, proibindo-se-lhes o exercício de ofícios públicos e certas profissões liberais, e expondo-os, particularmente, à malevolência pública29.
Mais uma vez, o quadro de sociabilidades e troca de interesses entre
cristãos velhos e novos no ambiente brasílico faria com que a velha
dama judaizante recebesse defesas de seu sincero catolicismo de ambos
os grupos: sinal de que o término da visitação inquisitorial havia
adormecido ¾ ou ao menos, amortizado ¾
a teia de intrigas e acusações entre os cristãos separados pelo
sangue e alimentada pelo Santo Ofício, novamente unidos contra uma
ameaça mais imediata: os ataques dos piratas pelo mar e do gentio
pelo sertão, além das múltiplas carências do 'viver em colônia'.
Durante a segunda visitação inquisitorial ao Brasil,
iniciada em 1618, ouvir-se-iam ainda ecos do irregrado comportamento dos
Antunes, novamente apontados ao visitador como grupo judaizante. As
histórias sobre Ana Rodrigues e seus descendentes ainda permaneceriam
vivas na memória e eram repetidas, ocasionando o roubo da tal imagem
que representava a velha Macabéia queimando no inferno da porta da
Igreja de Matoim, por mando direto de um seu genro cristão-velho,
interessado não apenas em evitar qualquer ligação de sua imagem de
homem honrado com uma condenada à chama da Justiça e Misericórdia,
mas igualmente na tentativa desesperada de preservar-lhe a memória e
aos seus familiares, poupando-lhes, segundo as palavras de Bartolomé
Bennassar, de "prolongar la memoria de su infamia"30.
Baluartes da resistência judaica, Branca Dias e Ana Rodrigues foram
talvez as representantes máximas do criptojudaísmo brasílico no
século XVI. Como elas, outras mulheres viveriam ambiguamente, divididas
entre o catolicismo que repudiavam e o hebraísmo que lhes era vedado,
praticando ora um, ora outro, de acordo com o local e as
conveniências, desconhecendo ambos. Mártires da religião proibida,
assim como a rainha Ester, a quem dirigiam suas súplicas por dias
melhores, sofreriam pressões, ofensas, calúnias e discriminações por
lutarem pelo resgate e continuidade da identidade de seu povo. Não
seriam vencidas, contudo ¾ nem pelo Santo Ofício nem pela segregação social que as perseguia ¾, ensinando a tradição de Israel aos filhos e contribuindo para manter vivos os ideais da religião que abraçavam.
12 SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. Heréticos e Impuros: a Inquisição e os cristãos-novos no Rio de Janeiro ¾
século XVIII. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1995, p.
121. [ Links ]
13 POLIAKOV, Leon. De Maomé aos Marranos. Tradução: Ana M. Goldberger Coelho e J. Guinsburg. 2a ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, pp. 198-199. [ Links ]
14 NOVINSKY, Anita W. "O papel da mulher no cripto-judaísmo português". In Comissão
para a igualdade e para os direitos das mulheres. O rosto feminino
da expansão portuguesa. Congresso Internacional. Lisboa, 1994. Lisboa, 1995, pp. 549-555. [ Links ]
15 Idem.
16 LIPINER, Elias. Os judaizantes nas capitanias de cima (estudos sobre os cristãos-novos do Brasil nos séculos XVI e XVII). São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 46. [ Links ]
17 Cf. VAINFAS, Ronaldo. "Criptojudaísmo no Brasil Colonial: uma 'esnoga luso-baiana' no século XVI". In Revista Brasileira de História, 1999. ASSIS, Angelo A. F. Um 'Rabi' escatológico na Nova Lusitânia: Sociedade colonial e Inquisição no Nordeste quinhentista ¾ o caso João Nunes. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1988. [ Links ]
18
"Felippe Cavalcanti contra Anrique Mendes e sua mulher Violante
Rodrigues, Antonio Dias e seu cunhado por alcunha Alma de Burzeguins,
Diogo Fernandes e sua mulher Branca Dias, Diogo Lopes da Rosa,
Francisco Vaz Soares, o vigário Corticado, Antonio Leitão, o Velho, e
Antonio Dias, o Felpudo", em 16/11/1593. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil ¾ Denunciações e Confissões de Pernambuco. Recife: FUNDARPE, 1984, pp. 75-77.
19 LIPINER, Elias. Op. cit., 1969, pp. 95-96. A grafia foi atualizada.
20 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit., 1989, p. 105.
21 "Joanna Fernandes contra Branca Dias", em 3/11/1593. Denunciações e Confissões de Pernambuco. Recife: FUNDARPE, 1984, pp. 30-32. [ Links ]
22 "Beatriz Luis contra Branca Dias", em 3/11/1593. Idem, pp. 32-33.
23 "Maria Alvares contra Pedralvares Madeira e Branca Dias", em 5/2/1594. Idem, pp. 200-203.
24
"Ana Lins contra Diogo Fernandes, sua mulher Branca Dias e suas
filhas, Violante Fernandes e Bento Teixeira", em 10/11/1593. Idem, pp. 54-58.
25 LIPINER, Elias. Op. cit., 1969, p. 88.
26 "[Antonio Dias, da Companhia de Jesus] contra Anna Roiz, Anrique Mendez, Phelipe de Guillem", em 16/08/1591. Primeira
Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado
Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do
seu desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciações da Bahia
1591-593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, pp. 337-338.
27 "[Antonio da Fonseca] contra Ana Roiz e Fernão Cabral", em 06/08/1591. Idem, pp. 275-276.
28 "[Pero de Aguiar d'Altero] contra Ana Rodrigues, cristã-nova de Matoim", em 30/7/1591. Idem, pp. 250-251.
29 LIPINER, Elias. Op. cit., 1969, p. 137.
30
BENNASSAR, Bartolomé. "Modelos de la mentalidad inquisitorial:
métodos de su 'pedagogía del miedo'". In ALCALÁ, Ángel y otros. Inquisición española y mentalidad inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984, pp. 174-182. [ Links ]