“Às vezes, o meu lado médico estranha o
meu lado escritor...” (Moacyr Scliar)
Por Sheila Sacks
Um
dos mais importantes escritores brasileiros de origem judaica, Moacyr Scliar
faleceu no ano passado, em 27 de fevereiro, para tristeza de milhares de
leitores que o admiravam. Paralelamente aos seus escritos, Scliar manteve-se
fiel a sua profissão de médico, atuando na área da saúde pública como médico
sanitarista e exercendo o magistério como professor universitário na
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
Em
2007, repercutindo as pesquisas do Ibope realizadas em anos anteriores que indicavam
o alto grau de credibilidade da classe médica entre os brasileiros, entrevistei
o escritor e médico gaúcho, então com 70 anos e irradiando vitalidade. Ele não
se mostrou surpreso com o resultado que apontava um índice de confiabilidade de
81% para a categoria dos médicos, à frente de instituições como as Forças
Armadas, a Igreja Católica, jornais e TV (em 2011, esse índice ficou em 76%). Para
o escritor, um componente influente nessa avaliação estaria relacionado com a
própria imagem da profissão médica que arrola qualidades
altruístas admiradas e reconhecidas pela população, como a dedicação e o
sacrifício pessoal.
Livros sobre Oswaldo Cruz e Noel
Nutels
Autor de mais de 70 obras, várias delas premiadas no Brasil e no
exterior, Moacyr Scliar (1937-2011) iniciou-se na literatura em 1962, com o
livro “Histórias de um Médico em Formação”. Em 2005 lançou “O Olhar Médico:
crônicas de medicina e saúde”, que também enfocava a área médica, reunindo 55
crônicas publicadas no jornal gaúcho Zero
Hora. Com obras traduzidas em 12 idiomas e eleito membro da Academia
Brasileira de Letras em 2003, o “imortal” Scliar também escreveu sobre as vidas
dos médicos sanitaristas Oswaldo Cruz (Sonhos
Tropicais) e Noel Nutels (A Majestade
do Xingu), este último um indigenista judeu que realizou trabalho pioneiro
com os índios da Amazônia, nas décadas de 1940 e 1950.
Filho de imigrantes russos, Scliar formou-se pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (fez curso de pós-graduação em Medicina em Israel,
em 1970) e atuou como professor visitante na Brown University (Rhode Island) e na Universidade do Texas
(Austin), nos Estados Unidos. Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde
Pública (Rio de Janeiro), sua tese de doutorado, apresentada em 1999 sob o
título “Da Bíblia à Psicanálise: saúde, doença e medicina na cultura judaica”,
obteve nota máxima, com louvor. Em um trecho do trabalho, Scliar destaca que
entre 1899, data da introdução do Prêmio Nobel de Medicina, até 1989, foram
laureados trinta e nove médicos judeus.
Em Porto Alegre, sua idade natal, Scliar coordenou o Programa de
Educação em Saúde na Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, trabalhou na
Fundação Nacional de Saúde e foi consultor do Ministério da Saúde. Também
chefiou o Departamento de Saúde Coletiva da Fundação Faculdade Federal de Ciências
Médicas de Porto Alegre.
Entre os 100 melhores
livros
Em 2007 publicou “O Texto ou a Vida”, uma coletânea de crônicas,
contos, trechos de romances, ensaios e comentários do autor sobre o processo
criativo de cada um deles. Vale lembrar que a sua obra "O Centauro no Jardim",
publicada em 1980, foi selecionada entre os 100 melhores livros de temática
judaica dos últimos 200 anos de acordo com o National Ydish Book Center, dos Estados Unidos. Scliar assim
resumiu o tema do livro: “É a história de uma criatura com dupla identidade,
assim como os filhos de imigrantes judeus. O ambiente familiar e da escola
israelita é diferente do ambiente universitário e do trabalho. Ter várias
identidades não é problema nenhum, ao menos que a pessoa tenha alguma
dificuldade emocional para lidar com essas identidades. O meu personagem, o
centauro, tinha. E é por isso que deu um romance”. Figura da mitologia grega, o
centauro é um ser metade homem, metade cavalo.
Abaixo, Moacyr Scliar responde as nossas perguntas:
Qual
é a sua leitura sobre o resultado da pesquisa do Ibope, em 2005, que apontou a
categoria dos médicos como a instituição de maior credibilidade do país?
MS- Um resultado mais ou menos esperado. Em outras pesquisas os
médicos também estavam nos primeiros lugares. Isto corresponde à imagem da
profissão, que envolve desprendimento, dedicação e até sacrifício pessoal, mas
corresponde também à experiência pessoal de cada um. Não há ninguém que não
seja grato a, pelo menos, um médico.
Muitos
médicos são também filósofos, escritores, artistas, políticos e até presidentes
da República como foi Juscelino Kubitschek. A que o senhor atribui essa
dualidade presente na carreira de tantos médicos?
MS- Ao lado humanista da profissão. Ser médico é interessar-se pela
condição humana, em geral na doença, mas também na vida cotidiana. Este
interesse, junto com a disposição especial que a pessoa eventualmente tenha,
acaba se estendendo a outras áreas.
Na
sua tese de doutorado o senhor relata a enorme quantidade de médicos judeus na
Espanha e Portugal, à época da Inquisição. A fuga desses profissionais para o
Brasil permite afirmar que os primeiros médicos do país foram judeus?
MS- Certamente. Muitos historiadores médicos em nosso país apontam
para este fato. Depois da Inquisição, outros períodos de perseguições
provocaram a fuga de médicos judeus para o Brasil.
O
trabalho desses doutores de alguma forma contribuiu para a evolução da medicina
brasileira?
MS- De novo, a resposta é afirmativa. Para ficarmos num único
exemplo, podemos citar o Hospital Albert Einstein (São Paulo), que é um
verdadeiro centro de referência.
A
percentagem de médicos judeus no Brasil e no mundo é extraordinariamente alta
em comparação com a proporção de judeus na população em geral. A religião ou a
tradição judaica é um fator de peso nesta escolha?
MS- Sim. Saúde e doença são mencionadas abundantemente no Tanach e no Talmud. Na Antiguidade, o médico era basicamente alguém que dava
conselhos, e isto de novo está dentro da tradição do Judaísmo, que sempre
respeitou a figura do "chacham", do sábio. Mas havia também um motivo
prático e penoso. A medicina é uma profissão "portátil", resulta de
um conhecimento que está na cabeça do médico e em sua habilidade. Para um grupo
humano que não raro era expulso de países, isto era uma coisa importante, tanto
mais que a medicina dava status. Não foram poucos os judeus que trabalharam como
médicos de reis, de sultões e de nobres. Maimônides, que atendia o sultão
Saladino, é um exemplo.
Nota: Tanach (os 24 livros que compõem o chamado Antigo
Testamento); Talmud (Leis judaicas e Comentários); Maimônides (médico e
filósofo nascido na Espanha, no século XII).