“E o Eterno falou a Moshé no deserto do Sinai... no 1o dia do mês 2 do ano 2 da sua saída da terra do Egito...”. Já faz mais de um ano que deixamos o Egito. Agora, “sendo bom ou sendo ruim, não tem mais como voltar”, diz a canção de Yoram Taharlev. À primeira vista a coisa é complicada: à nossa frente só montanhas de areia e vales secos. Tudo parece igual a tudo. Na falta de referências, é preciso criá-las, organizar-se para enfretnarmos as condições que recebemos. Deus chama Moisés para uma conversa a portas fechadas. Em resumo: não é possível mudar o mundo lá fora, mas é possível mudar o modo como nos relacionamos com ele. É disso que estamos falando.
Para superar o caos do deserto, a ordem é... criar ordem. São contados mais de 600 mil homens, que formam divisões militares, cada uma com sua bandeira. Mas quando parece que estamos prontos, a Torá vem e recorda um fato trágico do passado: a morte de Nadav e Avihu. Esta é a terceira de quatro vezes que a Torá volta à história dos filhos mais velhos de Aharon, que foram mortos depois de resolveram aproximar um “fogo estranho” perante Deus.
Por que a Torá volta tantas vezes ao mesmo tema? Por que as mortes de Nadav e Avihu incomodam tanto? Para que lembrarmos disso antes de seguirmos em frente?
Eitan Finkelstein, doutor formado pela Universidade Bar Ilan, em Israel, sugere que o pecado de Nadav e Avihu foi que eles tentaram estabelecer a renovação espiritual de Israel sem serem ordenados por Deus para isso. Segundo o acadêmico, mais tarde o rei de Israel Ierovam deu a seus filhos justamente os nomes de Nadav e Avihu porque, “assim como outros reformadores de outras épocas”, ao se inspirar nos filhos mais velhos de Aharon bem como instituir o culto a bezerros de ouro ele não estava criando uma nova religião, mas apenas restituindo Israel às suas raízes. Para Finkelstein, todo cuidado é pouco com qualquer tentativa de renovação religiosa, para não transformarmos o fogo divino num fogo alheio.
Mas ao considerar o “fogo estranho” de Nadav e Avihu uma renovação comum a “reformadores” da religião, a quem Deus responde com a imediata pena de morte pelo fogo, trilhamos o perigoso caminho daqueles entre nós que afirmam ser o Holocausto uma punição divina ao povo de Israel graças ao “fogo estranho” dos “reformadores” judeus durante os séculos 19 e 20. Esta visão me parece tão revoltante e sem sentido quanto a de considerar que Nadav e Avihu pretendiam renovar as tradições de Israel e por isso teriam sido mortos. O silêncio de Aharon após a morte de seus filhos só pode ser o nosso silêncio após a morte de 6 milhões de judeus - aliás, seja qual seja o motivo, se é que há algum.
Portanto, se não é para alertar sobre o perigo de renovação, por que a Torá precisa nos lembrar como morreram Nadav e Avihu antes de seguirmos viagem? Eles não eram apenas mais dois membros de Israel. Eles eram filhos do primeiro sumo sacerdote de Israel, Aharon. A expectativa era que um dia viessem a dirigir espiritualmente o nosso povo, mas eles falharam antes mesmo de começar. Minha sugestão é que o pecado mortal deles foi tomarem para si prematuramente a tocha da liderança. Primeiro porque ocuparam a direção sacerdotal de Aharon como se ele já estivesse morto – mas não estava, em nenhum aspecto. E segundo que Nadav e Avihu não sabiam, mas eles eram mais estranhos ao fogo do que o fogo era estranho a Deus. Em outras palavras, Nadav e Avihu ainda não estavam prontos para serem líderes espirituais, mas acharam que estavam − e se queimaram.
Àqueles que pretendem ocupar posições de liderança, uma lição básica é ter paciência: não tomar a tocha para si nem empunhá-la antes da hora. Como lemos no livro de Eclesiastes, atribuído ao rei Salomão: “Para cada acontecimento há um tempo apropriado sob os céus”.
Shabat shalom
Uri Lam, de Jerusalém