Uma húngara conta sua história de sobrevivente de Auschwitz e da ocupação russa.
Desde que retornei de Auschwitz, em maio de 1945, senti que tinha que escrever o que aconteceu com minha família e comigo – todas as minhas experiências. Só a lembrança daquilo traz-me dores e lágrimas. Tentando permanecer sã, fui adiando isto. Hoje, se passaram mais de 50 anos desde o genocídio planejado por Hitler contra nosso povo. Sinto-me forçada a registrar da forma que me lembro. O tempo está acabando. Tenho 67 anos. Meus filhos, a quem tentei educar da forma mais normal possível, e com quem tentei não falar sobre o passado, hoje são homens crescidos. E têm o direito de conhecer a história de sua família. Portanto, dedico minhas memórias a meus maravilhosos filhos e netos.
Veronika Schwartz, Montreal, 1994
Nasci em seis de junho de 1927, na Hungria, em uma pequena cidade chamada Kisvárda, no condado de Szabolcs. A população total em 1941 era por volta de 15.000. A população judia era de cerca de 4.000. Naqueles tempos, os bebes nasciam em casa, com o auxílio de uma parteira e, provavelmente, de alguns membros da família. O meu tio Mikós Ösztreicher me disse que minha mãe tinha ficado grávida sete vezes; quatro permaneciam vivos.
O nome de meu pai era Schwartz Mór. O nome de minha mãe era Ösztreicher Irén. Meu irmão, Zoltán, era o mais velho, nascido em 19 de novembro de 1923. Minha irmã, Klára, era dois anos mais velha do que eu. Minha irmã, Éva, era dois anos mais jovem que eu.
Meus pais tinham um armazém em Fö utza, que significa a rua principal. Vendiam móveis, material de jardinagem, sapatos e roupas prontas. Trabalhavam muito duro. A vida não era fácil. Tanto quanto posso me lembrar, senti pena de minha mãe. Ambos os seus joelhos eram machucados, mas nunca desejou falar sobre uma operação, temendo que não fosse bem sucedida e que pudesse terminar pior do que antes. Só continuava a colocar bandagens nos pés o dia todo, tentando fazer o melhor para atender os fregueses e, naturalmente, sua família. Ela cozinhava antes de ir para a loja. (...)
Não me lembro de ter tido brinquedos, como uma bicicleta ou bonecas, mas não me lembro de ter sentido falta deles também. Éramos uma família. A alegria era ver minha mãe segurando as mãos de meu pai, sorrindo. Nunca estávamos entediados. Sempre havia coisas a fazer: regar flores, limpar o jardim, jogar bola ou a escola (eu era a “professora” e reunia as crianças mais jovens e brincava de escola com elas), trazer lenha para a casa, alimentar o cão, conversar com meus amigos na rua ou com nossos inquilinos ou vizinhos. Gostavam muito de nós. Estávamos em casa. Apesar de modesta, era nosso castelo. Como jovens crianças, tudo que precisávamos era de um monte de areia para ficarmos ocupados e felizes. Amávamos também nosso país. Lembro-me que quando soldados Húngaros a cavalo passavam pela rua próxima, corria para juntar um buquê de flores de nosso quintal e corria toda distância para dar-lhes flores. (...)
Tudo mudou no ginásio. Senti o anti-semitismo. Não me lembro do nome de minha professora, mas chamava as garotas gentias pelos seus nomes e as garotas judias pelo nome de suas famílias. Não podia me concentrar, isso me preocupava muito. Comecei a sentir o ódio. Isto foi em 1939 e tinha somente doze anos. Minha avó costumava dizer como era horrível para o povo judeu. Como, durante uma rebelião ou revolução, sempre colocavam a culpa nos judeus. Eu só sentia pena por terem sofrido tanto.
O ódio somente aumentava, as coisas não melhoravam. Um dia, minha avó veio a nossa casa gritando que um dos seus vizinhos tinha ameaçado matar meu tio Miklós. Eu sabia onde meu tio estava, corri todo o caminho, cinco ou seis quilômetros, para achá-lo em uma vila próxima, chamada Ajak. Ele se escondeu, mas para o Grande Feriado foi à sinagoga. Os gendarmes (a polícia de elite) estavam procurando por ele e entraram na sinagoga. Meu tio escapou por uma janela, e a Sra. Rooz, que era uma parente distante, escondeu-o em sua casa. Quando as coisas acalmaram, conseguiu embarcar em um navio e escondeu-se no carvão. Chegou ao Canada em 1939 como um clandestino, quase morto. Nunca soube porque os gendarmes queriam prendê-lo ou porque o homem (seu nome era Orgován), que supostamente era seu amigo, queria matá-lo. Tudo que sabia era que meu tio vendia terras naquele tempo. Talvez algum negócio de terras não o tenha agradado. Toda nossa família ficou contente quando recebemos uma carta do Canadá de nosso tio.
Parecia que, para a população judia, a vida estava ficando bem apavorante. Meu pai tinha que fazer trabalhos forçados. Por sorte, foi desqualificado devido a uma hérnia. Meus pais decidiram que deveríamos aprender uma profissão ao invés de continuarmos nossa educação. Pagaram a um relojoeiro bem conhecido para ensinar meu irmão a consertar relógios. Minha irmã mais velha estudou para ser cabeleireira, também de forma privada, o que era bem caro. Meu irmão e irmã terminaram seus estudos. Meus pais compraram uma bicicleta para minha irmã. Tinha fregueses particulares e pedalava para suas casas. Era muito popular, algumas pessoas gostavam muito dela. Encontraram uma costureira para me ensinar a costurar. Tentei, mas além de aprender uns poucos pontos diferentes, nunca consegui terminar um vestido.
Enquanto isso, meus pais sabiam que a vida para nós estava piorando. O anti-semitismo era muito pavoroso. Sabendo que, acontecesse o que acontecesse, precisaríamos de comida, compraram várias vacas, um cavalo, cabras, gansos, patos e galinhas. Neste ponto não fazia muitas costuras, ajudava muito com os animais. Adorava andar a cavalo. Ordenhava as vacas e alimentava o resto dos animais. Meu avô, Lajos, vinha todos os dias para ajudar e tínhamos alguns empregados.
A situação política estava piorando, especialmente para nós, o povo judeu. Minha mãe fazia visitas mais freqüentes ao Rabino, para rezar por nossa segurança e bem-estar e para termos paz. O Rabino nos abençoava, dizia-nos para rezar, e para ter fé em D-us [nota: judeus ortodoxos não escrevem o nome do Senhor de forma alguma, usando este tipo de recurso]. Sempre a acompanhava nessas visitas.
Manter o negócio aberto não era uma tarefa fácil. Mas era difícil conseguir mercadorias têxteis como seda, linho, algodão e flanela. Minha mãe nunca desistiu. Viajava para Budapeste para encontrar seus fornecedores e tinha confiança que não voltaria de mãos abanando. O nome da firma de negócios ao atacado era Mandel Gustav e Sandor. Ela não podia deixar de falar dessas pessoas, como tinham sido boas com ela. Por ter os joelhos doentes, desejavam ajudá-la de forma especial. Vendiam-lhe mercadorias têxteis. Foi convidada para a casa deles. Um dia nos disse, “vi um belo banheiro de azulejos, isto é o que teremos um dia. Vamos instalar encanamento em nossa casa”. Nunca abandonamos a esperança. De fato, tínhamos eletricidade instalada e um novo piso de cerâmica na cozinha.
A despeito de nossas esperanças e preces, o ódio parecia piorar. Acender velas nas noites de sexta-feira era arriscado. Nossas janelas foram quebradas. Pedras foram atiradas na casa de nossos avôs. Meu pai entaipou algumas de suas janelas. Os bandidos das cruzes flechadas ficavam nos insultando. Um homem jovem veio a nossa loja como um animal selvagem, xingando, pegando caixas de sapatos e jogando-as na rua. Minha mãe implorou-lhe para que levasse o que queria, mas o ódio era muito profundo. Tremíamos de medo.
Meu irmão foi convocado para o Exército. Meus pais não puderam vê-lo ir. Minha mãe fez uma jarra de café muito forte e ele bebeu tudo, então chamaram o doutor da família e disseram que ele não estava bem. O doutor ouviu o seu coração e escreveu uma carta dizendo que era incapaz de ir para o serviço, devido a uma doença cardíaca. (...)
Leis e regras cruéis foram-nos impostas dia após dia. Era muito doloroso perceber que tínhamos sido extremamente otimistas por muito tempo. Era chocante quando visitava um dos nossos inquilinos, a família Posner, de origem russa. Tinham uma empregada, uma jovem cigana. Gostava de falar com ela, era sempre alegre e feliz. Perguntei, “Onde está ela?”. Disseram-me que tinha sido levada embora a força e afogada com muitos outros. “Como é possível matar pessoas inocentes. Devem ter sido enviados para trabalhar em outro local”, disse à Sra. Posner. Ela me disse suavemente, “queria que você estivesse certa”.
Não havia mais razão para ser otimista. Éramos proibidos de ouvir o rádio. Quando caminhava pela rua e tentava ouvir as notícias, fui apedrejada. Minha mãe adorava ir ao banho ritual (mikvah). Era um dos prazeres da vida dela, mas foi proibido.
Ouvia um monte de sussurros. Ouvi que falavam de uma rota de fuga, mas que não seríamos capazes de usá-la. Era muito tarde. Os judeus não podiam viajar. Minha mãe nunca concordaria com uma rota de fuga, a menos que toda a família pudesse escapar junta. Isto era impossível. Levamos para casa um monte de mercadorias (móveis, tecidos) de nossa loja. Cavamos buracos nos telheiros e enterramos os tecidos e roupas em caixas de madeira.
Sempre que meu pai ia a sinagoga, voltava para casa com péssimas notícias. Ouviu que um eminente doutor e toda a sua família tinham cometido suicídio. Em 19 de março de 1944, passou a ser compulsório usar uma estrela de David amarela. No mesmo dia, o exército alemão invadiu a Hungria. Além das expectativas dos alemães, os húngaros cooperaram integralmente e os receberam de braços abertos. Sentíamo-nos em uma armadilha.
Lembro-me do Sr. Fekete, que vinha a nossa casa ler o medidor de eletricidade. Quando entrou, olhou para todos nós. Começou a caminhar em direção de meus pais. Ele gostaria de falar-lhes, mas foi sobrepujado pelas emoções e começou a chorar. Só ficou chorando e saiu. Sabia que algo terrível iria acontecer. Certo como um relógio, poucos dias depois, um jovem veio a nossa casa e a casa de meus avós. Este jovem vivia em nossa rua. Minha avó e a avó dele eram amigas uma da outra. Seu nome era Bajor e tinha sido autorizado a inventariar nossos pertences. Não levou muito tempo para descobrir que teríamos que deixar nossas casas e ir viver juntos em um gueto, em Kisvárda. Todos tentamos nos consolar o melhor possível. Meus pais acharam que meu irmão deveria se alistar em um campo de trabalho. Talvez tivesse uma chance maior de ficar vivo. Aceitou a sugestão e partiu para se alistar. Foi de quebrar o coração vê-lo partir.
Meus pais deram nosso gado em confiança para as pessoas que usavam nossa propriedade como caminho para chegar à cidade. Mesmo que tivessem prometido tomar cuidado de todos os animais, era duro deixá-los para trás – os filhotes de cabrito que amava; o belo cavalo que adorava cavalgar; as vacas, gansos, patos e galinhas. Minha mãe trabalhou freneticamente preparando uma base de sopa, uma mistura de farinha e óleo ou gordura de galinha. Disse que enquanto pudéssemos conseguir um pouco de água, pelo menos poderíamos fazer uma sopa. Vi quando ela quebrou e começou a chorar. Implorei para que não chorasse. Ela disse: “não choro por mim, choro por todos vocês. Eu os amo muito”. Tentei dizer a que a nossa partida era só temporária. Era ingênua. Sabiam quão irracionais as pessoas ficavam com o ódio, inveja, vingança e poder, e ficaram com muito medo.
Meus pais trabalharam muito duro. Nunca fumaram ou beberam e economizavam cada centavo. O costume era dar a uma filha um dote quando se casava. Eles compravam pedras preciosas, diamantes e outro para nós três, para que quando nos cassássemos tivéssemos condições de começar uma vida nova sozinhas. Meu pai chamou-nos e todos descemos ao porão. Ali removeu alguns tijolos da parede, escondeu as jóias em uma garrafa e consertou a parede. Assim todos sabíamos onde estavam. Escondeu algumas jóias no sótão. Mesmo nossos vizinhos, os Fishers, do outro lado da rua, esconderam algumas jóias em nosso sótão.
Em meados de abril de 1944, fomos levados e aprisionados no gueto em Kisvárda. Fomos levados sob as condições mais cruéis pela gendarmerie Húngara. Todos estávamos apertados em um só quarto – minha avó, meus pais, minha tia Margit, tio Ernö e minhas duas irmãs, Klára e Éva. Abaixo de nosso quarto ficava um porão. Levavam para lá as pessoas para serem interrogadas, para descobrir onde tinham escondido o seu dinheiro e posses. Era sempre o chefe da família. Inicialmente torturaram os muito ricos e, mais tarde, a classe média. Era horrível ouvir os gritos.
Também nos preocupávamos com nosso pai. A comida era muito pouca e meu pai costumava sair escondido às 5 da manhã, antes do nascer do sol. Eu não sabia, mas uma família gentílica dava-lhe ovos, leite e pão. Ele corria um imenso risco para melhorar a qualidade de vida para sua família. As pessoas que lhe davam comida também eram muito especiais, desprendidas, gentis e desejosas de ajudar os necessitados. Era um ato corajoso, podiam entrar em grandes problemas ao ajudar judeus. Boas pessoas como elas nos davam incentivos para continuar tentando o máximo e prosseguir com nossas vidas. Era um esforço conjunto fazer o melhor que podíamos. Ajudávamos uns aos outros, compartilhando as tarefas domésticas. Éramos livres para ir para qualquer lugar dentro do gueto. Andava muito com minhas irmãs e todo mundo na família, conversando com nossos amigos e vizinhos, tentando descobrir novidades políticas. (...)
Mais uma vez, as novas eram pavorosas. Mais uma vez estraçalharam nossas esperanças que a guerra logo terminaria e que voltaríamos para nossos lares e negócios, recomeçando nossas vidas. As pessoas estavam dizendo que os alemães levariam todos para campos de trabalho. O gueto ficou como uma capela funerária. As pessoas choravam abertamente. Todos estavam apavorados. Não fazia sentido que a Alemanha quisesse avós, grávidas, bebês, pessoas doentes e crianças para trabalhar para eles. Na mente de todos havia a pergunta: “o que acontecerá a nós?” Da minha parte, fui educada no respeito a todos, seja qual for a sua religião. Assim era difícil entender a complexidade do ódio humano. Não acreditava que nos levariam para trabalhar. Minha avó, preocupada, perguntou-me: “que tipo de trabalho posso fazer para eles? Sou velha demais para trabalhar”. “Bem”, eu disse, “você pode ajudar na cozinha, descascando batatas, por exemplo ou no hospital, preparando ataduras. Todos podemos trabalhar”. (...)
Minha família e eu fomos levados em 31 de maio de 1944. Oitenta pessoas foram arrebanhadas em cada vagão. Não nos permitiram levar nada, somente as roupas que vestíamos. Havia um balde d’água, as portas fechadas e a jornada em direção a um destino desconhecido começou. Meu pai, minha mãe, minha avó, minhas irmãs, Klára e Éva, a tia Margit, tio Ernö – todos estavam muito quietos, tristes e sem palavras. Tentei muito alegrá-los. Encontrei um pequeno local de onde era possível olhar para fora e ver a paisagem. Pedi a todos para vir e ver. Não importa o quanto tentasse, ninguém se interessou. Minha avó ficava repetindo, “sou velha demais para trabalhar”. Se soubesse o que aconteceria com eles, eu teria passado cada minuto beijando e abraçando-os e fazendo o máximo para não ser separada deles.
Finalmente, o trem chegou em Birkenau, Polônia. As portas abriram. De alguma forma, fui empurrada para fora, de tal forma que me encontrei em pé sozinha e uma longa fila estava se formando atrás de mim. Olhei tudo em volta e podia ver que não havia ninguém de minha amada família. O medo e o pânico me atingiram. Chorei e me atirei ao chão, pensando que não levantaria, a menos que fosse colocada junto com minha família. Não me importava se me fuzilassem. Atrás de mim estavam as duas garotas Freed, de nossa rua, Vár utza. Estavam chorando, mas praticamente me levantaram e imploraram para que ficasse de pé ou seria fuzilada. Disseram que sua mãe estava grávida e não a podiam ver em lugar algum.
A longa fila foi formada e tivemos que começar a marchar. Era cerca de três quilômetros até Auschwitz. No caminho, vimos o arame farpado com a cerca de segurança de alta voltagem. Vimos um monte de pessoas dentro. Era um local medonho. Algumas pessoas caminhavam com longos paus e estavam batendo em outros. As roupas dessas pessoas eram trapos. Não podíamos imaginar o que este local poderia ser. Algumas pessoas diziam que deveria ser um asilo mental. Mas como podiam tratar doentes mentais de forma tão má?
Logo nossa marcha terminou e nos achamos no mesmo lugar – o Campo de concentração de Auschwitz. Este foi o pior dia de toda minha vida. A dor no coração de não saber o que aconteceria com minha família. Onde estavam? Sempre procurava com meus olhos tão longe quanto podia ver, em todas as direções, chegando a imaginar que podia ver meu pai.
As pessoas estavam exaustas mental e fisicamente. Começou a chover e estava frio. Durante todo o dia não recebemos comida, mas tínhamos que ficar na fila e esperar. Finalmente, um oficial SS veio e disse-nos que tentaria conseguir um pouco de chá. Isto não era um conforto para mim. Eu era uma alma perdida.
Mais tarde tivemos que ser desinfetados. Neste lugar, aparavam nossas cabeças. Tínhamos que nos despir. Faziam-nos passar por torturas humilhantes. Nossas roupas foram levadas e tínhamos que nos vestir de uma pilha de trapos. Enquanto andava por aquela área de desinfeção, como um milagre, observei minha prima em primeiro grau do lado paterno, Klein Magda. Ela reparou em mim ao mesmo tempo. Me disse que não tinha ninguém da sua família e que deveríamos tentar ficar juntas. Esperava que pudéssemos fazer isso.
Mais tarde fomos levadas para o C Lager (campo C). Permanecemos fora. Uma Kapo (isto é, uma prisioneira feitora, designada para supervisionar um determinado grupo de trabalho de prisioneiras) veio falar conosco. Nos disse o seu nome, Toska. Acredito que fosse uma garota polonesa. Parecia ser muito honesta. Perguntou se tínhamos alguma pergunta. Muitas pessoas fizeram a mesma pergunta, “quando nos reuniremos com os membros de nossas famílias?” Com lágrimas nos olhos, apontou para o crematório. Passou um momento difícil ao falar. Depois de recuperar a compostura, continuou: “como vocês, fui trazida aqui com minha família, mas agora, estou sozinha”. Nos alertou para ficarmos alertas; não seria fácil ficar vivas. Depois disso, fomos arrebanhadas para dentro do barracão. Ali estava outra Kapo; seu nome era Éva. Era malvada. Uma garota judia bem apessoada, se comportava de forma desavergonhada, usando um pau para controlar as pessoas.
Fomos espremidos em uma posição sentada muito apertada para a noite. Em minha miséria, decidi seguir o conselho do Rabino: ter esperança e rezar. A cada noite, recitava preces em hebreu. Sabia-as bem e incluía cada membro de minha família e, naturalmente, Aisnley [o namorado de Vera]. De alguma forma, meu passado religioso deu-me forças. Mas também tinha um sentimento de culpa, “por que eu? Por que estou viva e minha família não?”. Me atormentava.
Antes do alvorecer, fomos acordadas por um alto som de apito. Tínhamos que correr e nos alinhar para inspeção. Duas vezes por semana, tínhamos que marchar nuas para dentro de um barracão, em frente a médicos, Mengele e alguns outros, para a seleção. Se alguém fosse removido da fila, isto significava a morte. Assim, tentávamos parecer o melhor possível.
Recebíamos uma fatia de pão e cerca de uma colher de chá de marmelada na manhã. À tarde, fazíamos um turno para pegar uma panela de comida, que não tinha sabor, muito pouco. Não havia pratos nem talheres. Desta forma, fazíamos uma fila e uma depois da outra bebíamos do mesmo copo. Muitas pessoas, inclusive eu, estavam pegando a doença das gengivas [escorbuto]. À tarde, novamente, tínhamos que ficar em fila por duas horas para sermos contadas. Algumas vezes vi corpos queimados, como carvão, contra a cerca. Era uma visão horrível.
Uma manhã, depois da contagem, deitei no chão. Um soldado SS pisou no meu estômago. A sobrevivência por mais um dia era uma conquista.
Fonte deste artigo: Montreal Institute for Genocide and Human Rights Studies - Holocaust Survivors Memoirs
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