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Segredo e sagrado


Rachel Sztajnberg 
 
Pode-se tomar como certo que a maior parte das culturas, pelo menos a partir de um dado momento do qual se tem registro, organizou-se reservando ao Homem o privilégio do sagrado, sua regulação, assim como sua transmissão. À Mulher cabia o cumprimento dos rituais, no âmbito doméstico, supondo-se sua subserviência aos dogmas formulados pelos homens. Eles falavam e elas, caladas, as mulheres de Atenas, ou de qualquer outro lugar do mundo, obedeciam. Seus desejos oprimidos, suas dores sufocadas eram compartilhadas entre si, no espaço íntimo, não suscitando um interesse “maior” da comunidade. Representavam tão somente a expressão da fragilidade de sua natureza, anatomicamente mais delicada.
No entanto, apesar de não ser a porta-voz da Verdade última, um segredo, um poder essa figura feminina contém no seu próprio corpo: a potencialidade milagrosa de perpetuar a vida, de se desdobrar, como Adélia Prado (porque a poesia é feminina, independente do sexo de quem a enuncia) sabiamente preconiza. A fêmea porta um sagrado, e talvez por isso mesmo tenha sido necessário interditá-la, frear o perigo e a ameaça que ela representa. Sim, porque ao ser a transmissora da vida, ela anuncia, inevitavelmente, o destino mortífero embutido em todo sujeito. O mágico e o seu deslumbramento coincidem, paradoxalmente, com o horror e o feitiço que a fêmea suscita por seus atributos. Assim, na qualidade de objeto de desejo e dotada desse poder fantástico, a Mulher gera fantasias ao mesmo tempo eróticas e aterrorizadoras e a conseqüente necessidade de ser mantida à distância. Mesmo se enaltecida como uma deusa em sua versão sublimada, ela não fica livre de, no outro pólo de sua representação, ser identificada com o pecado e a transgressão. Sob determinadas condições, ela é fatalmente nomeada como impura, seus fluidos orgânicos fazem dela uma intocável, a suja que deve ser evitada. 
   
Sensível a essa predestinação feminina, que, felizmente, com as transformações contemporâneas, sofreu mudanças consideráveis, um cineasta israelense aborda este tema com muita contundência, escancarando todos os dilemas nele envolvidos. Avi Nesher, no seu premiado filme Segredos íntimos, não se inibiu diante da complexidade e das sutilezas implicadas nos avatares da condição feminina na comunidade humana. Cada uma das intérpretes personifica uma faceta da trajetória existencial das mulheres. Numa delas, o sofrimento mudo e aquiescente, não podendo ser endereçado e acolhido, escoa perigosamente pelo corpo, podendo levar à morte. Em outra, o pesado custo de ter sustentado seu desejo desafiando as convenções é ter de suportar o desprezo e a exclusão social como castigo. Mas a saída libertadora fica também indicada na teimosa determinação através da qual as mulheres se impõem e ganham acesso à palavra que liberta as aspirações recalcadas e promove um novo lugar feminino a ser ocupado.
   
Não foi barato, todavia, o preço que as mulheres tiveram que pagar pela afirmação de sua identidade, e isso também o cineasta ilustra magnificamente. Através da saga das diferentes protagonistas, denuncia a audácia das pioneiras de contestar o destino que lhes foi reservado. Utilizando-se do próprio corpo e alma como escudos, desafiaram as estruturas convencionais, em nome da fidelidade aos seus desejos e escolhas singulares, mesmo que essa rebeldia as expusesse ao feroz ataque dos representantes das alas fundamentalistas dos códigos sociais e religiosos de suas culturas. 
Transgredir os preceitos vigentes tem um custo, e, mesmo quando pautadas por uma convicção, as atitudes carregam em seu bojo o desconforto de se ter cometido um delito. Um premente apelo interno clama pelo perdão que necessita ser alcançado para que o sujeito se reconcilie consigo mesmo. A esperança depositada no perdão é a de um auto-resgate ético, muito mais do que uma redenção moral. Mas, como bem se sabe, o ato de contrição requer testemunhos, o sujeito não se absolve sozinho. É a presença do outro na sua confissão que valida o seu gesto. Na obra em questão, num cenário carregado de fascinante intensidade estética, as mulheres, num arroubo inédito, reinventam as leis, até então monopólio dos homens, e tomam em suas mãos a tarefa de invocar o divino. Encenam uma cerimônia de expiação e purificação onde elas se autorizam como sacerdotisas para oficializar o ritual, findo o qual a “pecadora” atormentada pode, enfim, morrer pacificada. Depreende-se que as outras moças, através desse ato solene, igualmente sacralizaram sua própria liberdade de ser e, uma vez destituídas de sua função circunstancial de delegadas do sagrado, seguem seus diferentes destinos de acordo com suas tendências particulares. O que antes era pautado num único modelo imposto torna-se múltiplo, garantindo a cada sujeito, independentemente do gênero, tomar para si a responsabilidade pessoal sobre sua direção existencial. 
  
 
Rachel Sztajnberg é psicanalista.

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