Busca de acesso a Gaza inclui burocracia, barreiras, beduínos e palco de atentado
Com território palestino isolado por Israel há meses, restrições aumentam e jornada vira microcosmo do Oriente Médio atual
MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL AO CAIRO
Seis dias entre Tel Aviv e o Cairo podem revelar muito sobre a teia de interesses e dramas que envolvem a crise na faixa de Gaza, além de lições sobre poder e leis de mercado. No caso desta reportagem, expõem nuances tragicômicas do triângulo político formado por Israel, Egito e palestinos, que lembram uma peça do teatro do absurdo.
A missão parecia relativamente simples para alguém que já tinha feito mais de uma cobertura em Gaza: entrar no território para acompanhar o último capítulo do conflito e como ele afetaria a população local e a dinâmica explosiva das relações entre Israel e o grupo fundamentalista Hamas. Um dia antes, militantes apoiados pelo Hamas haviam derrubado, à base de explosivos, parte do muro que separa Gaza do Egito. Uma multidão de palestinos em busca de suprimentos e novos ares logo cruzou a fronteira e ganhou manchetes mundiais.
Barrado em Erez
Quinta-feira, 24 de janeiro, fim da tarde, véspera de fim de semana no Oriente Médio. Sob a fiscalização de um dirigível do Exército israelense que acompanha cada movimento na fronteira, a reportagem da Folha é barrada no posto de Erez, a única porta para Gaza. Falta uma permissão do Escritório de Imprensa do Governo (EIG). O credenciamento apresentado, apesar do aval da ONU, é insuficiente.
O pior: supostamente por contenção de gastos, o EIG deixou há anos de manter plantões para credenciamento de urgência nos fins de semana, apesar de as urgências jornalísticas serem tão comuns em Israel quanto camelos no deserto. "Volte domingo", diz a fiscal de fronteira, recém-saída da adolescência, com ar de enfado.
Enquanto isso, o palestino Wael Alqarra, escalado para trabalhar com a reportagem em Gaza, dispara telefonemas ansiosos. "El Arish está uma festa", conta, ao descrever o clima na maior cidade egípcia na fronteira com Gaza. "As pessoas estão voltando carregadas de mercadorias. Compram tudo o que podem, como se o mundo fosse acabar."
Sem chance de entrar em Gaza por Erez pelos próximos dois dias, o jeito é fazer uma escala em Tel Aviv para preparar o plano B: uma incursão pela "porta dos fundos" -pelo Egito. Um desvio longo, custoso e imprevisível, já que ninguém sabe por quanto tempo os egípcios permitirão que a passagem de Rafah, a que teve o muro explodido, siga como corredor livre para os palestinos.
Tel Aviv, a apenas 1h30 de viagem de Erez, parece outro planeta. A mais cosmopolita das cidades israelenses faz questão de ignorar o que acontece em Gaza. Não é à toa que a cidade ficou conhecida em Israel como a "bolha", título de um filme recente que fez sucesso internacional ao retratar a vida de jovens que poderiam estar em Amsterdã, São Paulo ou Los Angeles. Até que um palestino entra em cena para estourar a bolha. Literalmente.
"Precisamos nos afastar do conflito para manter a lucidez", defende-se a assessora de imprensa Hila Efrati, 34, típica moradora de Tel Aviv. "Somos nós que mantemos a sanidade mental deste país."
O plano B logo vira fumaça. Em meio às notícias sobre a iminente divulgação do relatório da comissão de inquérito sobre o comportamento do governo na guerra do Líbano, em 2006, é anunciado o fechamento temporário da única fronteira terrestre entre Israel e Egito. Sem vôos à vista, resta esperar até domingo, obter a permissão em Jerusalém e voltar a Erez. E torcer para que a fronteira de Rafah continue aberta.
Mais um telefonema de Wael, que conta com uma felicidade quase infantil: "Está cheio de carros egípcios em Gaza!" Para um território acostumado ao isolamento, que só recebeu visitantes estrangeiros nos últimos anos durante as incursões de tanques israelenses, a animação é compreensível.
A presença egípcia em Gaza não é nova. Até a Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando foi conquistado por Israel, o território era controlado pelo Egito. Ironicamente, em 1979, quando Israel e Egito assinaram o acordo de paz, o premiê israelense, Menachem Begin, considerou um trunfo conseguir manter o controle de Gaza.
Identidade antiga
De volta à fronteira de Erez, com a permissão exigida pelo Exército, novo contratempo. No controle de passaportes, o policial detecta que o repórter já tivera um número de identidade local, quando vivera no país, 12 anos antes, trabalhando como correspondente e fazendo mestrado na Universidade de Jerusalém. Entrada vetada.
Na interpretação do governo, esse número de residente temporário equivalia ao de um cidadão israelense, cuja entrada em Gaza estava proibida, por motivos de segurança. Não é uma discussão simples, tanto que recentemente chegou à Suprema Corte do país -quando jornalistas israelenses impedidos de entrar em Gaza para cobrir a crise recorreram à instância máxima, sem sucesso.
O advogado da embaixada brasileira em Tel Aviv foi acionado, o Exército e os órgãos do governo envolvidos receberam protestos, mas a proibição não se reverteu. De volta ao plano B, ou melhor, plano E: Egito.
A essa altura, depois da euforia consumista que os palestinos haviam vivido nos primeiros dias, Wael parece se aproximar da ressaca. "Os egípcios já começaram a fechar as brechas na fronteira", contou, em tom bem menos entusiasmado. "É melhor você chegar logo."
Palco de atentado
Um vôo de 40 minutos de Tel Aviv até Eilat, no extremo sul de Israel, parece a solução mais viável. De lá é preciso cruzar a fronteira e convencer um taxista egípcio a ir até Rafah. A passagem pelo lado israelense da fronteira ocorre sem sobressaltos, após a advertência de uma policial gorducha de que o deserto do Sinai está "cheio de terroristas" fugidos de Gaza. Três turistas, apesar do aviso, seguem rumo ao Sinai.
No lado egípcio surge um novo e imprevisto obstáculo: devido às ameaças terroristas, o governo passara a exigir visto para o norte do Sinai, onde fica a fronteira com Gaza, embora para o resto da península a entrada esteja liberada. Tarde demais para voltar ao consulado egípcio em Eilat, resta a alternativa de passar a noite em Taba, cidade egípcia a poucos metros da fronteira.
Ao entrar no Hilton Taba, o visitante é tomado pelo cheiro inconfundível de carpete novo. "Mudamos tudo recentemente para combinar com o que havia sido trocado após o atentado", diz Mohamad, recepcionista e sobrevivente da explosão de um carro-bomba que, em 2004, deixou 33 mortos e destruiu boa parte do resort debruçado sobre o mar Vermelho.
Se o espetacular cenário natural foi mantido, o mesmo não ocorreu com a paisagem humana. De lá para cá os israelenses, que eram os principais clientes do hotel, desapareceram, sendo substituídos por novos-ricos russos e ucranianos. "Pagamos US$ 700 por uma semana com duas refeições por dia", diz Olya, estudante de arquitetura que convenceu os pais a trocar as temperaturas negativas de Moscou pela ensolarada Taba.
No dia seguinte, de posse do visto, é hora de partir rumo a Rafah. Em linha reta o percurso não tem mais que 250 km. Mas, dentro das medidas de segurança da ditadura egípcia, há estradas em que estrangeiro não entra. O resultado é um desvio monumental, que obriga o motorista a ir até o canal de Suez e voltar em direção a Gaza, entre inúmeras barreiras policiais, tempestades de areia e um fluxo permanente de caminhões na mesma direção.
Corrida do ouro
A abertura momentânea de Gaza e a avidez dos palestinos em encher a despensa deflagrou uma verdadeira "corrida do ouro" no Egito. Centenas de fazendeiros e pequenos comerciantes viram uma chance de faturar muito em pouco tempo. Os preços dispararam.
"Alguns fizeram pequenas fortunas em poucos dias", contou Abdel Fatah, enquanto esperava a polícia liberar seu caminhão, repleto de bezerros. "Eu mesmo já estou na terceira viagem. Compro cada cabeça a 2.500 libras egípcias (US$ 500) e vendo pelo dobro." Um maço de Marlboro, que custa 7,5 libras egípcias, passou a valer 35 na fronteira com Rafah. Um litro de gasolina pulou de 1,5 para 10 libras egípcias.
Alarmado com a súbita inflação e o desabastecimento, que começaram a atingir a população pobre das proximidades de Gaza, o governo egípcio passou a restringir o fluxo de mercadorias. Com as restrições aos bens, veio também o veto à circulação de pessoas. No posto policial de El Qantara, a pouco menos de 200 km de Rafah, depois de passar por seis barreiras militares, a reportagem da Folha foi barrada.
"Permissão para jornalistas só no Ministério da Informação, no Cairo", disse um jovem e truculento policial, depois de consultar seus superiores usando o celular de um beduíno que esperava permissão para passar com um caminhão abarrotado de alface. Ao esgotar os créditos do telefone, joga o aparelho no peito do dono e arranca um novo de outro fazendeiro, sem pedir permissão.
"É melhor me dar o telefone, se não quiser passar a noite no frio", diz o policial, sem nenhum pudor, diante da resistência do fazendeiro.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0302200807.htm