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As Guerreiras da Terra Santa




Reportagem publicada em novembro de 1992

Ser mulher hoje em Israel significa viver em uma sociedade machista, em um país de várias raças e religiões em choque, em permanente alerta de guerra. Mas, militando na política e combatendo os preconceitos, o sexo feminino luta por um futuro melhor para toda a nação judaica. 

Por Eduardo Alves dos Santos 

Místicas e lutadoras, ortodoxas e modernas, as mulheres de Israel estão em guerra. Uma guerra sem sangue, mortos ou feridos. Mas com muito suor. De um lado está a imagem da perfeita mãe judia carregando os filhos em um braço e uma pistola apontada para os árabes no outro. Uma personagem prestes a morrer. Isto porque no front oposto estão as israelenses modernas. Mulheres que vêm tomando a dianteira da sociedade, criando os filhos de maneira mais livre, envolvendo-se de forma pacífica em questões-chaves do Estado e se aprontando para a igualdade com os homens. Tudo com a determinação de influenciar de fato os destinos da pátria construída na Terra Prometida. 

Enquanto o país se mantém em um alerta de guerra que já dura mais de 40 anos, provocado pela ameaça dos vizinhos hostis e pela voracidade do expansionismo sionista, as mulheres de Israel lutam por um lugar na mesa de decisões. Formada por imigrantes de todas as partes do mundo, a sociedade israelense é a mais heterogênea que vive hoje sobre a face da Terra: uma mistura de origens tão complicada que, comparada com nosso país, faz o povo brasileiro parecer uma raça pura. Entre seus habitantes, Israel abriga 700 mil árabes, 1 milhão de russos recém-chegados, centenas de argentinos, outros milhões de europeus, muitos etíopes e milhares de judeus marroquinos. Iraquianos, poloneses, iranianos, filipinos, tunisianos, sírios, egípcios e indianos. Negros, brancos e amarelos. Uma mistura de culturas em constante ebulição. 

Todos os dias, mais um grupo de imigrantes chega a Israel com a mala cheia de sonhos e o coração impregnado de tradições nativas. Para as mulheres progressistas, cada novo cidadão representa uma batalha a mais na defesa dos moldes ocidentais de igualdade entre os sexos. Uma luta que vem encontrando seus obstáculos mais difíceis na parte nova de Jerusalém, no sinistro bairro do Mea Shearin: um típico gueto judeu como os que existiam na Europa antes do Holocausto, onde vive a ala ultra-ortodoxa do judaísmo. Para as mulheres de Mea Shearin – facilmente identificadas pela cabeça raspada, coberta por um lenço em sinal de humildade –, a vida se resume a cumprir as tarefas de casa e ter muitos filhos para aumentar a população judia. Isto, é claro, com o corpo sempre coberto, até mesmo na hora de transar com o marido. 

Para elas, igualdade de direitos é uma expressão proibida. Apesar do ambiente opressivo, os turistas que se conformam com as austeras normas de comportamento e aceitam usar roupas bem sóbrias, vêem nas ruas de Mea Shearin um divertido passeio. Ótimo para descobrir pechinchas nos mercados de rua. Para as mulheres israelenses, no entanto, o lugar é um símbolo vivo de que a luta pela igualdade terá de enfrentar não só as barreiras impostas pelos homens mas também as leis religiosas. 

Sustentados por doações vindas de judeus ortodoxos de todo o mundo, grande parte dos habitantes de Mea Shearin não trabalha, são dispensados do serviço militar – obrigatório para o resto da população – e dividem o tempo entre as atividades religiosas e um intenso lobby junto ao governo. Mesmo pequena em números, a população ortodoxa influencia profundamente as decisões políticas em Israel, lutando para fazer as leis chauvinistas do Torah serem seguidas por todos os judeus. "Não temos vergonha de passar o dia inteiro dentro do Knesset – o parlamento israelense – defendendo nosso ideal de manter Israel uma nação religiosa", afirma Daniella Weiss, uma das líderes do Gush Emonin, o partido da direita ultra-ortodoxa. 

Enquanto isso, as tradições machistas proliferam também entre a população árabe. Quase todos os dias, os noticiários das rádios populares de Jerusalém anunciam a prisão de homens muçulmanos acusados de matar as esposas. Segundo a justiça religiosa do Corão, mulheres adúlteras devem ser condenadas à morte. E, em muitos casos, se o marido não comete o assassinato, a função é delegada ao pai ou ao irmão da vítima. 


Contra o machismo e a ordem medieval

Um dos grandes responsáveis pela manutenção deste ambiente arcaico, impregnado de regras medievais, tem sido a instabilidade social e política. Apesar da aparência moderna dos arranha-céus em Haifa e Tel Aviv, a população de Israel ainda caminha nas trilhas abertas pelos primeiros imigrantes. Desde o início do movimento sionista, que visava trazer os judeus de volta para a Palestina, pouco foi feito para integrar a população local às mudanças trazidas pelos novos habitantes. A idéia era fazer de Israel um país exclusivamente judaico. Uma idéia que está viva hoje somente na cabeça dos judeus mais radicais. No entanto, grande parte da população árabe vive ainda em acampamentos beduínos ou em bairros pobres nas periferias. 

Graças à segregação religiosa e à ameaça nas fronteiras, o governo de Israel tem gasto milhões de dólares em armamentos e no treinamento do exército. Quase todos os cidadãos são chamados ao serviço militar – as mulheres têm de servir entre os 18 e 20 anos. Isto significa passar um longo período morando longe da família, acordando antes de o sol raiar e, mais importante, projetando no exterior a imagem de que as israelenses são tratadas em igualdade com os homens. Uma imagem que ainda não corresponde à realidade. 

Poucas pessoas sabem que, apesar de aprenderem a atirar e carregarem pistolas tipo UZI 24 horas por dia, a maioria das meninas israelenses entra no exército para trabalhar como secretárias, cuidar dos uniformes, da limpeza e para dirigir carros. Apenas uma minoria é considerada hábil a desempenhar funções militares. Esse é um grupo pequeno, mas que vem crescendo. Como as normas do exército impedem que mulheres sejam mandadas para os campos de combate, a luta pela igualdade nas forças armadas teve que começar mesmo pelos quartéis. As israelenses de uniforme brigaram por mais espaço e conseguiram. Quase todas as atividades de treinamento dos novos soldados já são comandadas por mulheres, enquanto o serviço de inteligência está cada dia mais concentrado nas mãos das oficiais. 

A mesma revolução acontece dentro dos kibbutzins. Desde o início do século, quando a primeira destas fazendas foi estabelecida, a estrutura do trabalho coletivo mostrou que, em Israel, as mulheres poderiam dividir funções, mas raramente sairiam do triângulo cozinha, lavanderia, creche. Com o passar dos anos, este modelo caiu junto com o sonho da vida em comunidade. 

Hoje, os kibbutzins praticamente faliram e apenas 3% da população do país ainda vivem nessas fazendas socialistas. Para manterem-se abertos, os kibbutzins tiveram de evoluir e hoje a maioria tenta obter recursos atraindo turistas ou desenvolvendo centros agro-industriais avançados. Nessa luta, mais uma vez, as mulheres têm mostrado que os modelos de discriminação do passado não têm mais lugar na Israel moderna: nos dois mais prósperos kibbutzins do país – Gínnosar, nas margens do Mar da Galiléia, e Ein Ged, no Mar Morto – o controle das atividades mais importantes foi passado para as mãos das esposas dos moradores. 

No entanto, mesmo participando das forças armadas, dividindo o trabalho no campo e tendo a imagem da primeira-ministra Golda Meir ainda pairando sobre a cena política, as diferenças de oportunidades e valores entre homens e mulheres ainda permanecem gritantes. Nos ônibus que passam por Mea Shearin, mulheres só podem entrar pela porta de trás. Quando vão rezar aos pés do Muro das Lamentações, na velha Jerusalém, as judias são obrigadas a ficar em uma parte separada por grades de ferro, bem menor do que a área reservada aos homens. E, na cena política, a situação não é diferente. Igualitarismo? Apenas ideológico. Só 8% dos cargos no governo são ocupados por mulheres, e há muito não aparece uma candidata aos cargos-chaves do Estado. 

Cansadas de testemunhar esse machismo institucionalizado, as israelenses modernas vêm intensificando a luta para transformar as dificuldades sociais em vantagens políticas. Colocadas de fora do governo, as israelenses abriram novos fronts através de centenas de organizações extraparlamentares que atuam no país. 

Hoje, quase todos os movimentos não-oficiais de Israel são liderados por representantes do "sexo frágil". Um bom exemplo pode ser visto todas as sextas-feiras, entre as 13h e as 14h, no mais movimentado cruzamento de Jerusalém. De um lado da rua, um grupo de mulheres vestidas de preto faz uma demonstração pacífica e silenciosa. O objetivo delas é forçar a devolução das regiões da Judéia e Samaria, das Colinas de Golan e da faixa de Gaza aos árabes – territórios ocupados por Israel desde a Guerra dos Seis Dias. Segundo as "Women in Black", esse passo é decisivo para que Israel viva em paz. 

No mesmo horário, do outro lado da rua, outro grupo vestido de branco, liderado pela imigrante americana Shifra Hoffman, apresenta outra versão da história e exerce uma pressão oposta. Para elas, as negociações de paz devem começar pelos árabes que, desde 1986, vêm liderando uma série de atentados contra a população civil judia. 


Abrindo fronts de participação política 

A verdade nesta questão é que a devolução dos territórios ocupados, principalmente na margem oeste do Mar Morto, significa ter os inimigos ainda mais próximos das regiões estratégicas do país. No momento, a fronteira da Jordânia fica a cerca de uma hora de carro de Tel Aviv. Se Israel devolver as terras da Samaria, os tanques árabes poderão ficar estacionados praticamente nos subúrbios de Jerusalém, a poucos quilômetros da sede do governo judeu. 

Durante os 19 anos que se seguiram à invasão dos exércitos jordanianos em 1948, as terras sagradas de Jerusalém ficaram divididas em dois territórios. Por quase duas décadas, a cidade foi transformada no mais violento campo da longa batalha entre árabes e judeus. Até hoje a região continua sendo palco de atentados terroristas e de um estado de tensão que às vezes passa despercebido aos turistas. Mas que vive na mente dos habitantes na cidade. Para os judeus religiosos, manter o controle sobre Jerusalém é uma questão vital. Segundo as palavras do Talmud – um dos livros sagrados do judaísmo –, quando o profeta voltar à Terra ele entrará pelos muros da cidade velha e começará a salvar o mundo. Para o Estado israelense, Jerusalém é um importante pólo turístico que atrai visitantes – e dólares – de todo o mundo. 

Mas, apesar de fascinante para os turistas, Jerusalém vinha se tornando cada dia mais um lugar hostil para os moradores. Ao final da guerra de unificação, em 1967, a cidade ficou coberta de escombros e as casas cravejadas de balas. 


Recentes marcas de um passado de guerra 

Mesmo com a falta de recursos, no entanto, estas marcas estão sendo apagadas e a área urbana está ganhando parques, teatros ao ar livre, cinematecas, jardins zoológicos e centros culturais, como Mishkenot Sha'anannin, erguido sobre os escombros das casas judias destruídas pela artilharia inimiga. Grande parte destas obras de recuperação da cidade não é conquista dos políticos locais e sim da Fundação Jerusalém, comandada por Ruth Chechim e por uma equipe formada em 90% por mulheres. Nos últimos 25 anos, Ruth coordenou a captação de 240 milhões de dólares em doações vindas de fortunas judias em todo o mundo. "Esta é a nossa contribuição a Israel", afirma Ruth, apontando para um grupo de mães árabes e judias que observam os filhos brincando juntos em um belo gramado, enfeitado pelo domo dourado da Mesquita de Omar ao fundo. No mesmo local, há um ano, havia apenas um terreno abandonado. Hoje, esta mesma área, onde se deu a primeira batalha da Guerra dos Seis Dias em 1967, é palco de um importante passo na lenta aproximação entre os dois povos que lutam pela posse da Terra Santa. 

Embelezar a cidade, no entanto, dificilmente ajudará a diminuir os problemas do país. Em Tel Aviv, a maior cidade de Israel, a falta de empregos é o principal assunto. Guerra não é o que os israelenses querem, mas sim prosperidade. Desde os tempos em que Jerusalém foi invadida pelos romanos, por volta do ano 63 a.C., até a declaração de independência do Estado de Israel em 1948, os judeus se mantiveram longe de conflitos armados. Só depois da ameaça de extinção e do horror dos campos de concentração nazistas é que o Povo de David se tornou o centro da grande parte das guerras que explodiram durante os últimos 40 anos. 

Mesmo assim, a pátria judia continua atraindo imigrantes que, nos últimos dois anos, desembarcaram na Terra Prometida em números jamais vistos. Muitos ainda vivem em Centros de Absorção, criados pelo governo para integrar os recém-chegados à vida em Israel. O que não falta são descontentes, a maioria homens. Enquanto os imigrantes do sexo masculino encontram dificuldades para continuar a vida na nova terra, as mulheres provaram ser capazes de operar verdadeiras metamorfoses e se adaptar à nova realidade. Um caso típico é a história da pianista Jana, que veio da Georgia – antigo Estado da ex-União Soviética. Duas semanas depois de chegar a Israel, Jana tinha uma nova profissão, bem diferente das aulas de piano em Tibilisi: ela trabalha hoje com uma pá e uma enxada, ajudando arqueólogos ingleses nas escavações do Porto de Herodes, ao norte de Haifa. 

O mesmo aconteceu com a bailarina Hoffra Kartz, que aprendeu o hebraico em pouco mais de seis meses e hoje trabalha como modelo para Lea Gotlied, uma judia polonesa que chegou a Tel Aviv com 18 anos de idade e pouco mais de 80 dólares no bolso. Atualmente, aos 74 anos, Lea dirige o império Gottex, produzindo cerca de um milhão e meio de maiôs por ano, exportados para mais de 60 países. "Gosto de dar exemplo para as jovens empresárias em Israel, pois sei o que é enfrentar o machismo da sociedade judia e como é difícil ser mulher em um país em guerra", conta a empresária. 

Apesar de imerso em um mar de problemas internos e externos, a situação política local não assusta os 120 mil turistas que visitam Israel a cada ano. A maioria aprende que o país já deu muitos pulos em direção à modernidade. Em pouco mais de 40 anos, a pátria judaica deixou de ser um árido deserto habitado por beduínos, cortado por uma dezena de fazendas coletivas, onde homens e mulheres dividem o trabalho. As fronteiras se alargaram, milhões de novos imigrantes chegaram, meninas passeiam sozinhas pelas ruas e casamentos arranjados são praticamente coisa do passado. Israel é uma potência econômica que exporta desde diamantes lapidados até sofisticados computadores. 


Uma nação antiga e jovem ao mesmo tempo 

Tal qual nas eras passadas, no entanto, o Oriente Próximo é um centro nervoso onde uma erupção violenta pode mudar os destinos do planeta. Uma verdade que só é realmente entendida por quem pisa o chão da Terra Santa, onde uma nação jovem e ao mesmo tempo antiga luta diariamente pela sua existência. Cada habitante traz em si a convicção e a vontade de servir ao país. Ao mesmo tempo, todos, árabes e judeus, carregam no coração as marcas e o medo da destruição. E é nesse ambiente de credos e ânsias, tensões e paixões violentas que as mulheres de Israel vivem hoje sua luta. Apesar de lentas, as vitórias são claras. Pairam muitas dúvidas sobre a nação judaica, mas os princípios machistas que ainda vivem não estarão presentes na Israel do futuro. Isto as mulheres garantem.


 
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