Sinagogas da floresta

Sinagogas da floresta

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Sinagogas da floresta

PerseguiĆ§Ć£o e massacres fizeram 4 mil judeus migrarem, no sĆ©culo 19, da Ɓfrica para a misteriosa AmazĆ“nia - que os chamava com a promessa de liberdade de culto e enriquecimento com a borracha


Henrique Veltman*

"Paz" em hebraico e a famĆ­lia de Max Diniz Fima, de Alenquer, ParĆ”, que lĆŖ a TorĆ” e tem


Tudo comeƧou em 1808. NĆ£o, esta nĆ£o Ć© mais uma histĆ³ria sobre a famĆ­lia real. Enquanto dom JoĆ£o, Carlota Joaquina e companhia vinham ao Brasil para escapar das tropas de NapoleĆ£o, outra fuga com destino ao paĆ­s se delineava perto de Portugal. 
Os protagonistas da histĆ³ria eram judeus que moravam principalmente em Tetuan e em TĆ¢nger, cidades no norte do Marrocos, Ɓfrica, e que foram parar em pleno coraĆ§Ć£o da floresta amazĆ“nica.


Obrigados a viver fechados em pequenos guetos, passando fome e sofrendo perseguiƧƵes, os judeus marroquinos viram na misteriosa AmazĆ“nia uma chance de escapar da insuportĆ”vel discriminaĆ§Ć£o que enfrentavam. E comeƧaram a migrar em massa logo no comeƧo do sĆ©culo 19. O ĆŖxodo continuou por quase todo o sĆ©culo e formou na AmazĆ“nia uma comunidade que contava, no fim da dĆ©cada de 80, com mais de 50 mil descendentes.



Caminho aberto
Os judeus que saƭram do Marrocos e vieram para o Brasil tinham origem ibƩrica. Haviam sido expulsos da Espanha em 1492 e de Portugal quatro anos mais tarde. Banidos do local onde tinham vivido por sƩculos, espalharam-se por vƔrios cantos do mundo. Um dos lugares escolhidos para a nova morada foi o norte da Ɓfrica.


No Marrocos, eram conhecidos como megorachim - espanhĆ³is exilados sem pĆ”tria. Apesar de tudo, alguns conseguiram prosperar, especialmente em cidades como TĆ¢nger, Tetuan, Marrakesh, Fez, Agadir e Casablanca.
Mesmo assim, os judeus continuavam a sofrer constrangimentos, humilhaƧƵes e confisco de seus bens - fora os jĆ” rotineiros massacres. Doze geraƧƵes, durante mais de 300 anos, viveram assim no Marrocos. A situaĆ§Ć£o de extremo desconforto por lĆ” teve papel decisivo na migraĆ§Ć£o metĆ³dica e racional dos judeus de Tetuan e de TĆ¢nger para o longĆ­nquo, misterioso e perigoso Amazonas, no Brasil.

Outro atrativo foi a Carta RĆ©gia de 1808, que abria os portos Ć s naƧƵes amigas e acabara de inserir o Brasil no comĆ©rcio internacional, com reflexos imediatos na Europa. O livre comĆ©rcio criou boas perspectivas para os guetos marroquinos, especialmente em Tetuan e TĆ¢nger, cidades portuĆ”rias, onde os judeus jĆ” estavam envolvidos no comĆ©rcio de importaĆ§Ć£o e exportaĆ§Ć£o. AlĆ©m disso, eles falavam espanhol, o que facilitava a comunicaĆ§Ć£o.

Mais ainda: em 1810, foi assinado o Tratado de AlianƧa e Amizade entre o Reino Unido e o Brasil. Ele autorizava a prĆ”tica de outras religiƵes que nĆ£o a catĆ³lica, "contanto que as capelas sejam construĆ­das de tal maneira que exteriormente se assemelhem a casa de habitaƧƵes e tambĆ©m que o uso de sinos nĆ£o lhes seja permitido".
O tratado assumia o compromisso de que, no futuro, nĆ£o haveria InquisiĆ§Ć£o no Brasil. Em 26 de abril de 1821, dom JoĆ£o VI extinguiu finalmente a Santa InquisiĆ§Ć£o e os Tribunais do Santo OfĆ­cio de todo o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Como escreveu Samuel Benchimol, que foi professor da Universidade do Amazonas e pesquisador da floresta, no livro Eretz Israel ("Terra de Israel"): "Estava finalmente aberto o caminho para que os judeus do Marrocos apressassem sua partida do exĆ­lio marroquino, que durou mais de 300 anos". Verdadeira carta de alforria principalmente para os judeus marroquinos de origem ibĆ©rica, que viveram durante sĆ©culos sob o peso da InquisiĆ§Ć£o.

Proclamada a RepĆŗblica no Brasil, em 1889, o decreto 119 do governo provisĆ³rio de Deodoro da Fonseca aboliu a uniĆ£o legal da Igreja com o Estado e instituiu o princĆ­pio da plena liberdade de culto. Nessa Ć©poca, os judeus oriundos do Marrocos viviam, na AmazĆ“nia, o pleno apogeu do ciclo da borracha - o que serviu para incentivar ainda mais a jĆ” contĆ­nua migraĆ§Ć£o.


Dos mitos Ć  borracha

A AmazĆ“nia era, por excelĆŖncia, o territĆ³rio dos mitos e das lendas. Em FormaĆ§Ć£o EconĆ“mica do Brasil, o intelectual Celso Furtado diz que a economia da regiĆ£o entrara em decadĆŖncia no fim do sĆ©culo 18: "Desorganizado o engenhoso sistema de exploraĆ§Ć£o da mĆ£o-de-obra indĆ­gena estruturado pelos jesuĆ­tas, a imensa regiĆ£o reverte a um estado de letargia econĆ“mica". O algodĆ£o e o arroz tiveram sua etapa de prosperidade durante as guerras napoleĆ“nicas, "sem contudo alcanƧar cifras de significaĆ§Ć£o para o conjunto do paĆ­s".

A base da economia da AmazĆ“nia era, em 1808, a exploraĆ§Ć£o de especiarias e a extraĆ§Ć£o de cacau. Logo em seguida, comeƧou a da borracha. O aproveitamento dos produtos da floresta deparava sempre com a mesma dificuldade: a quase inexistĆŖncia de populaĆ§Ć£o e a dificuldade de organizar a produĆ§Ć£o baseada no escasso elemento indĆ­gena.
Com o chamado surto da borracha, as fantasias e sonhos de enriquecimento rĆ”pido deram lugar a uma nova sociedade - opulenta para os padrƵes da Ć©poca nos principais centros urbanos e ativa, organizada, expansionista nas imensas Ć”reas dos seringais que avanƧavam do territĆ³rio paraense aos altos rios.

ƀ nova sociedade, adicionou-se uma geografia diferente, com a consolidaĆ§Ć£o da criaĆ§Ć£o da provĆ­ncia do Amazonas (em lei sancionada pelo imperador Pedro II em 1850) e do norte mato-grossense, incluindo RondĆ“nia, alĆ©m da anexaĆ§Ć£o de novos territĆ³rios, como o Acre (comprado da BolĆ­via em 1903). Tudo conseqĆ¼ĆŖncia inevitĆ”vel do chamado surto da borracha.

ƀ sombra disso tudo, porĆ©m, havia uma questĆ£o social original. As centenas de milhares de imigrantes, em sua maioria compostas de nordestinos, viviam em condiƧƵes semicompulsĆ³rias de trabalho e subsistĆŖncia. A economia extrativista estabeleceu relaƧƵes de dependĆŖncia econĆ“mica, social, cultural e psicolĆ³gica entre as populaƧƵes caboclas e os imigrantes com comerciantes, seringalistas e proprietĆ”rios em geral.

Esse era o desafio que se oferecia aos judeus de TĆ¢nger e Tetuan. Nas sinagogas de suas cidades norte-africanas, alguns deles antecipavam seu bar mitzvĆ”, cerimĆ“nia de confirmaĆ§Ć£o da maioridade, feita aos 13 anos, e, dez ou 15 dias mais tarde, embarcavam nos vapores da Mala Real Inglesa - quase 4 mil jovens, ao todo, fizeram a viagem.
Muitos deles eram imberbes, mas recƩm-casados. Outros, solteiros, vinham apenas com a roupa do corpo. Muitos dos recƩm-casados deixaram as jovens esposas entregues aos cuidados de suas famƭlias, por absoluta falta de recursos para levƔ-las imediatamente.
Dezenas dessas moƧas foram esquecidas, quando seus esposos, na AmazƓnia, morreram vƭtimas de enfermidades desconhecidas. Outras simplesmente foram trocadas pelas caboclas. A grande maioria, porƩm, foi chamada por seus noivos e esposos.


Vida dura
A primeira parada dos judeus marroquinos costumava ser BelĆ©m, no ParĆ”, onde eram recebidos por famĆ­lias como os Nahon, Serfatty, Israel e RoffĆ©, que jĆ” estavam aqui porque tinham negĆ³cios com empresas inglesas e francesas. Eles providenciavam roupas para os recĆ©m-chegados e os alojavam numa hospedaria. LĆ”, os rapazes recebiam rĆ”pidas e singelas informaƧƵes sobre como deviam secomportar nos sĆ­tios ao longo dos rios onde iriam viver nos prĆ³ximos anos.


NĆ£o havia muita dificuldade quanto ao idioma, jĆ” que todos falavam espanhol e hakitia (uma mistura de espanhol, portuguĆŖs, hebraico e Ć”rabe desenvolvida no Marrocos). Nos dias que se seguiam, devidamente escalados pelas casas aviadoras Ć s quais se filiavam, embarcavam num vaporzinho (no melhor dos casos) ou num simples regatĆ£o (grande barco, na Ć©poca, a vapor).


JĆ” iam com sua mercadoria a bordo e um barracĆ£o como destino. A casa aviadora era a organizaĆ§Ć£o comercial, em BelĆ©m, Ć  qual o sujeito ficaria ligado para a compra e a venda de mercadorias, e que supriria tambĆ©m suas demais necessidades - seria uma espĆ©cie de "consulado" na capital.

O ciclo da borracha era baseado numa estrutura organizada. O nĆŗcleo econĆ“mico e social do seringal era o barracĆ£o: misto de residĆŖncia do comerciante, de armazĆ©m que avia (o fornecedor de mercadorias ao seringueiro caboclo) e de depĆ³sito de borracha.
PrĆ³ximo a ele ficava o centro, onde se concentravam as atividades de extraĆ§Ć£o e coleta de castanha, onde estavam os tapiris (palhoƧa) para a moradia e para a defumaĆ§Ć£o, alĆ©m das bocas ou estradas de seringa (um caminho ou picada que ligava Ć s seringueiras de onde se extraĆ­a o lĆ”tex).
NĆ£o existiam vĆ­nculos empregatĆ­cios entre os seringueiros caboclos e os seringalistas. AlĆ©m deles e da casa aviadora, faziam parte da corrente do extrativismo a casa exportadora e a casa importadora - ou seja, as conexƵes nacional e internacional do comĆ©rcio da borracha.
De um ponto de vista secundĆ”rio, estavam o regatĆ£o e os aviadores, que intermediavam o negĆ³cio, ora entre o seringalista e o seringueiro, ora entre o seringalista e a casa aviadora.
A estrutura econĆ“mica da AmazĆ“nia, pelo menos atĆ© o fim dos anos 50, caracterizava-se pelo sistema de crĆ©dito. O aviador era a pessoa que efetuava o aviamento, isto Ć©, fornecia os bens de consumo e de produĆ§Ć£o, enquanto o aviado era o que recebia.
O judeu, e depois seu descendente caboclo, chamado de hebraico, era normalmente o seringalista. Muitas vezes era ligado Ơs casas aviadoras e, em raros casos, Ơs empresas exportadoras, dominadas pelos ingleses, portugueses e "coronƩis" nordestinos.
Foram os judeus tambĆ©m os primeiros regatƵes (caixeiros-viajantes) da AmazĆ“nia. Suas embarcaƧƵes levavam as mercadorias para serem trocadas nos seringais mais distantes por borracha, castanha, copaĆ­ba (cujo bĆ”lsamo era, entĆ£o, a medicaĆ§Ć£o por excelĆŖncia das doenƧas venĆ©reas na Europa), peles e couros de animais silvestres.
No inĆ­cio, o jovem judeu vivia sozinho, regateando. Depois, formada a famĆ­lia, ia comercializar no interior mais afastado, comprando e vendendo mercadorias. Quando sua situaĆ§Ć£o se consolidava, tratava de transferir esposa e filhos para cidades maiores, onde a crianƧada nascia a cada dois anos.


Segundo Benchimol em seu livro Eretz AmazĆ“nia, eles eram "gerados em cada visita do pai Ć  esposa, durante as pĆ”scoas e celebraƧƵes religiosas de Rosh HashanĆ” [ano novo judaico], Iom Kipur [dia do perdĆ£o], Pessach [quando se celebra o ĆŖxodo do povo de Israel], Purim [comemoraĆ§Ć£o da sobrevivĆŖncia judaica sob domĆ­nio persa], ChanukĆ” [festa das luzes] ou para as cerimĆ“nias de brit-milĆ” [circuncisĆ£o] de seus filhos, ou para o bar mitzvĆ”".  E observa: as esposas parideiras tinham uma mĆ©dia de 6 a 8 filhos antes de completar 40 anos de idade.

Na AmazƓnia, os judeus marroquinos ergueram sinagogas, construƭram cemitƩriose mantiveram suas tradiƧƵes, como o bar mitzvƔ e as circuncisƵes, e comemoraƧƵes das datas festivas religiosas. Por causa de fatores como o clima, algumas adaptaƧƵes foram necessƔrias.
Em Manaus, por exemplo, atĆ© os anos 80, os sepultamentos judaicos eram feitos conforme a tradiĆ§Ć£o, com o corpo indo direto ao chĆ£o envolto apenas na mortalha. Mas, em um dia chuvoso, um corpo escorregou e caiu. Depois disso, os rabinos locais "reinterpretaram" a lei judaica e hoje enterra-se lĆ” com caixĆ£o de fundo falso - ele tem uma fina lĆ¢mina de compensado que se rompe quando o caixĆ£o desce Ć  sepultura.
Hoje, os hebraicos da floresta nĆ£o sĆ£o ricos - mas tambĆ©m estĆ£o distantes deserem miserĆ”veis. MantĆŖm determinados preceitos do judaĆ­smo, mas incorporaram outros, numa espĆ©cie de sincretismo que os brasileiros conhecem bem.
HĆ” pesquisadores, como o prĆ³prio Samuel Benchimol, que acreditam que eles sejam mais de 300 mil. Todos completamente adaptados Ć  regiĆ£o.
Bem diferente da histĆ³ria de uma judia marroquina que se mudou para a AmazĆ“nia junto com as primeiras levas de emigrantes, no sĆ©culo 19. A jovem Suzanne Cohen Serruya, recĆ©m-transformada na condiĆ§Ć£o de mĆ£e, amamentava seu bebĆŖ quando adormeceu perto do rio em CametĆ”, no baixo Tocantins.
De repente, percebeu que seu outro seio estava sendo sugado e acordou. Era uma serpente. Apavorada, ela pediu a separaĆ§Ć£o e regressou ao Marrocos.


___________
Saiba mais sobre os judeus da AmazĆ“nia na ediĆ§Ć£o 55 de HistĆ³ria, nas bancas



* O jornalista HENRIQUE VELTMAN e o fotĆ³grafo SERGIO ZALIS, redator-chefe de Contigo e autor da foto que abre esta matĆ©ria, viajaram para a AmazĆ“nia e fizeram uma reportagem que virou o livro Os Hebraicos da AmazĆ“nia e uma exposiĆ§Ć£o patrocinada pelo Museu da DiĆ”spora, de Israel, e que viajou o mundo a partir de 1987.




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