O anti-semitismo na era Vargas e o Habeas Corpus

O anti-semitismo na era Vargas e o Habeas Corpus

magal53
".....Maria Luiza, questionava os papĆ©is de Oswaldo Aranha, de algumas figuras do Itamaraty (que se pronunciavam sobre a nocividade da emigraĆ§Ć£o judaica), ....." Direito e HistĆ³ria: Genny Gleiser, o anti-semitismo na era Vargas e o Habeas Corpus nĀŗ 25906/1935.

Um estudo de caso

Elaborado em 09.2007.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
pĆ³s-doutor pela Universidade de Boston, doutor e mestre em Direito pela PUC/SP, procurador da Fazenda Nacional
SumĆ”rio: 1) IntroduĆ§Ć£o. 2) A Inicial do Habeas Corpus 25906/1935. 3) A Imprensa e as Primeiras RepercussƵes. 4) O ReforƧo do Pedido Inicial. 5) O Papel de Assis Chateaubriand. 6) As InformaƧƵes do Ministro da JustiƧa. 7) O Julgamento no Supremo Tribunal Federal.8) ConclusƵes. Bibliografia


1) IntroduĆ§Ć£o

O presente ensaio pretende resgatar e polemizar habeas corpus impetrado em favor de Genny Gleiser, judia de origem romena, acusada de ligaƧƵes com o comunismo, fatos que se desdobraram em meados da dĆ©cada de 1930. A histĆ³ria de Genny Gleiser me instigou quando eu lia um daqueles livros que marcam, e que parecem que foram escritos para mudar a vida das pessoas. Eu lia Maria Luiza Tucci Carneiro, O Anti-Semitismo na Era Vargas, e me impressionava com revelaƧƵes impressionantes, fartamente documentadas, relativas ao anti-semitismo durante a ditadura de GetĆŗlio Vargas. Eu pesquisava documentos e textos de Francisco Campos, eminĆŖncia parda do Estado Novo, jurista oficial do regime, e tudo que se relacionava com aquele momento nĆ£o me parecia estranho. AlĆ©m disso, Maria Luiza desconstruĆ­a mitos dos bastidores do Estado Novo, alguns ligados ao integralismo, outros nĆ£o, o que para um professor de direito propiciava manancial interessante para a problematizaĆ§Ć£o de nossas verdades normativas.
Maria Luiza, questionava os papĆ©is de Oswaldo Aranha, de algumas figuras do Itamaraty (que se pronunciavam sobre a nocividade da emigraĆ§Ć£o judaica), bem como denunciava a funĆ§Ć£o do jornal AcĆ§Ć£o, dirigido pelos integralistas, e que veiculava mensagens anti-semitas. O que, por outro lado, nĆ£o era novidade, dada tradiĆ§Ć£o que revela certo eugenismo em autores como Oliveira Vianna, Alberto Torres, SĆ­lvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, todos pranteados pela historiografia clĆ”ssica que se tem entre nĆ³s. AlĆ©m disso, Genny Gleiser havia sido formalmente acusada de ligaƧƵes com o partido comunista, o que convergia para a pesquisa que eu desenvolvia.
Genny Gleiser, judia, romena e comunista, jovem de 17 anos, havia sido presa, mal tratada e deportada pela ditadura Vargas, com aval das autoridades judiciĆ”rias, em 1935. Segundo Maria Luiza Tucci Carneiro, "(...) Gleiser teve seu trajeto interrompido ao ser resgatada na FranƧa, numa aĆ§Ć£o fantĆ”stica, pelos membros do Partido Comunista FrancĆŖs" (CARNEIRO, 2001, p. 72). Os fatos remetiam a Olga BenĆ”rio, entĆ£o companheira de Prestes, tambĆ©m judia e comunista, alemĆ£, que perdeu a vida em campo de concentraĆ§Ć£o, tema de outro ensaio que redigi. O assunto me instigava. Que fazer?
Tentei repassar literatura sobre a prisĆ£o de Genny, mas, ao que me consta, e atĆ© onde pude alcanƧar, nĆ£o havia nada especĆ­fico. PorĆ©m, o nome Gleiser me levava a Berta, antropĆ³loga que fora casada com Darcy Ribeiro [01], misto de antropĆ³logo, literato, polĆ­tico, filĆ³sofo e sociĆ³logo que sempre admirei, e que sempre li. Nas ConfissƵes de Darcy hĆ” apenas duas referĆŖncias a Genny, sua cunhada, que ele grafou com J, escrevendo Jenny. A primeira das passagens Ć© lacĆ“nica, porĆ©m expressiva, e tem como foco Berta, e nĆ£o Genny:

"Na verdade das coisas, eu me apaixonara por uma menina comunista que tinha uma histĆ³ria herĆ³ica. Conheci Berta num comĆ­cio, quando pedi um cigarro a um companheiro que sustentava outra vara da faixa que abrĆ­amos. Ela veio trazer. Nunca mais me deixou. Soube depois o segredo dos mistĆ©rios dela, complicadĆ­ssima para namorar. Ela era a irmĆ£ menor que ficara escondida no Brasil, quando Jenny, a mais velha, jovem ativista, foi banida junto com Olga BenĆ”rio, a mulher de Prestes, para ser mandada para um campo de concentraĆ§Ć£o na Alemanha. Olga cumpriu seu destino e foi morta lĆ”. Jenny escapou porque portuĆ”rios franceses, advertidos de sua presenƧa no navio, a tiraram de lĆ”"
(RIBEIRO, 2002, p. 138).
A segunda passagem tambĆ©m Ć© esfĆ­ngica; Darcy Ribeiro apenas lembrou que Berta vivia preocupadĆ­ssima que descobrissem que "(...) era a irmĆ£ viva e escondida da cĆ©lebre Jenny Gleiser" (RIBEIRO, cit., p. 198). Fernando Morais, biĆ³grafo de Olga, ocupou-se de Genny Gleiser, em passagem muito informativa, quando descreve a percepĆ§Ć£o que o Estado Novo tinha de sua biografada, Olga, como estrangeira nociva. Genny Ć© indicada como precedente perigosĆ­ssimo:

"(...) De todos os casos de expulsĆ£o de estrangeiros 'indesejĆ”veis' de que tivera notĆ­cia- e eram centenas e centenas- um, particularmente, Olga acompanhara de perto, ainda em liberdade, pelo noticiĆ”rio dos jornais, e ficara estarrecida com seu desfecho. Depois de manter presa durante quatro meses, sob a vaga acusaĆ§Ć£o de 'subversĆ£o', o governo de Vargas decidira deportar uma garota de 17 anos, Genny Gleizer, judia romena, apesar da manifestaĆ§Ć£o de centenas de sindicatos e associaƧƵes de estudantes e intelectuais, tanto do Brasil como do Exterior. Durante o processo de expulsĆ£o de Genny, a opiniĆ£o pĆŗblica testemunhara alguns gestos comoventes de solidariedade. Quando se anunciou, por exemplo, que se ela casasse com um brasileiro as leis a protegeriam da deportaĆ§Ć£o, vĆ”rios escritores e intelectuais se ofereceram como voluntĆ”rios. Num comĆ­cio pela libertaĆ§Ć£o de Genny, no centro de SĆ£o Paulo- onde tinha sido presa- o estudante Paulo EmĆ­lio Salles Gomes anunciou que sairia do palanque diretamente para o cartĆ³rio, em busca de um juiz que oficializasse seu casamento com a garota. Chegou tarde. O jornalista Artur Piccinini, que acompanhava o 'caso Genny' para o diĆ”rio A PlatĆ©ia, tomara-lhe a frente e havia solicitado ao JuĆ­zo de Paz do bairro da SĆ©, na capital paulista, a publicaĆ§Ć£o dos proclamas para seu matrimĆ“nio. InsensĆ­vel a tudo isto, em outubro de 1935 o governo deportou Genny Gleizer para a Europa"
(MORAIS, 1988, p. 188).
Os fatos reportavam-se ao anticomunismo que o governo Vargas protagonizava. PorĆ©m, havia algo mais. ƀ Ć©poca dos fatos, Genny era moƧa, bem nova, ainda nĆ£o tinha 17 anos. Vinha da RomĆŖnia. Era judia. E o livro de Maria Luiza Tucci Carneiro tratava justamente do modo como o governo Vargas sistematicamente hostilizou judeus, que desesperados na fuga do nazismo nĆ£o conseguiam vistos para desembarque no Brasil. SĆ£o fantasmas de uma geraĆ§Ć£o (e a expressĆ£o Ć© complemento ao titulo do livro). Francisco Campos, Gustavo Capanema, Filinto MĆ¼ller, todos pareciam envolvidos na trama. Com honrosas exceƧƵes, a exemplo do embaixador Souza Dantas, que tanto lutou pela causa judaica, tem-se a impressĆ£o de que o anti-semitismo fora caracterĆ­stica muito importante de Ć©poca que se quer esquecer, nĆ£o obstante apelo populista prenhe de miopia, e que vĆŖ algum progresso em um tempo de tanta violĆŖncia. A referĆŖncia Ć  CLT Ć© o exemplo mais recorrente. Ɖ que hĆ” quem ainda acredite que o avanƧo do trabalhismo fora conquista do proletariado. Pelo contrĆ”rio, concessƵes Ć© que marcaram a normatividade laboral. Ainda, a legislaĆ§Ć£o trabalhista propiciou a GetĆŗlio amplo campo de manobra, explorado atĆ© o inĆ­cio da dĆ©cada de 1960, e refiro-me a JoĆ£o Goulart.
O puzzle referente ao anti-semitismo na Ć©poca de Vargas torna-se ainda mais intrigante, quando se lĆŖ, por exemplo, o estudo de Stanley Hilton sobre Oswaldo Aranha. EntĆ£o chanceler brasileiro junto Ć  ONU, segundo Hilton, "o papel de Aranha nas deliberaƧƵes [sobre a criaĆ§Ć£o de Israel] seria de apoio discreto, mas intenso, Ć s reivindicaƧƵes sionistas" (HILTON, 1994, p. 555). Historiografia tradicional vinculou fortemente Oswaldo Aranha Ć  criaĆ§Ć£o do Estado de Israel. Mas nĆ£o Ć© bem isso que entendi lendo Maria Luiza Tucci Carneiro; Ć© que Oswaldo Aranha simboliza duas faces de um mito, e no entender de Maria Luiza:

"Oswaldo Aranha Ć© considerado uma das maiores personalidades do governo Vargas. Como um dos principais mentores da RevoluĆ§Ć£o de 30, marcou este momento crĆ­tico da HistĆ³ria do Brasil com uma presenƧa de grande diplomata e mediador polĆ­tico. Analisando o seu desempenho polĆ­tico no perĆ­odo de 1930-1945, rastreamos uma personalidade atuante e persistente ao lado de GetĆŗlio Vargas de quem era amigo Ć­ntimo e de confianƧa (...) Da releitura das biografias escritas sobre Oswaldo Aranha emerge a existĆŖncia de uma lacuna no que diz respeito a sua atuaĆ§Ć£o como ministro das RelaƧƵes Exteriores durante o Estado Novo. Foi justamente nessa fase de sua carreira que colocou em prĆ”tica no Brasil uma polĆ­tica imigratĆ³ria eminentemente restritiva aos judeus, visto tramitar pelos bastidores do Itamaraty um dos maiores 'pacotes de correspondĆŖncia anti-semita´"
(CARNEIRO, cit., p. 193).
Essa suposta dubiedade de Oswaldo Aranha poderia ser estendida para mais gente do cĆ­rculo prĆ³ximo a Vargas. Os fatos que marcaram o processo e a expulsĆ£o de Genny Gleiser poderiam fomentar pesquisa nesse sentido. Esse anti-semitismo me aborrecia hĆ” muito tempo. E foi na biografia de Stefan Zweig, esplendidamente escrita por Alberto Dines, que o caso de Genny reaparecia:

"Fato que produz muitas manchetes no Rio de Janeiro e em SĆ£o Paulo, desde outubro do ano anterior, sĆ£o as incursƵes da polĆ­cia contra centros operĆ”rios judeus no Rio de Janeiro. Na praƧa Onze, foram invadidos o centro cultural dos trabalhadores onde funcionava a redaĆ§Ć£o do semanĆ”rio judeu comunista Unhoid, 'O ComeƧo", assim como a cozinha popular e uma escolinha para os filhos dos operĆ”rios. Prenderam 23 militantes, dos quais 15, por estarem com papĆ©is irregulares, foram deportados para a Alemanha e jamais encontrados. Entre eles, Motel Gleizer, redator do semanĆ”rio. A polĆ­cia chegou atĆ© ele porque sua filha Jenny (ou Schendla) foi presa sob a acusaĆ§Ć£o de organizar o primeiro Congresso da Juventude ProletĆ”ria e Estudantil em SĆ£o Paulo"
(DINES, 2004, p. 50).
Em seguida, Alberto Dines apresentou mais um parĆ”grafo, sumariando a histĆ³ria da judia romena, presa e violentada por integrantes do Estado Novo:

"HistĆ³ria dramĆ”tica: um repĆ³rter localizou a moƧa numa prisĆ£o paulista, enquanto armou-se a grita na imprensa para libertĆ”-la. Um aluno da Universidade de SĆ£o Paulo: Paulo EmĆ­lio Salles Gomes, mais tarde preso e torturado, foi um dos que se empenharam na cruzada. Em outubro de 1935, junto com outros militantes judeus, Jenny Ć© deportada secretamente atravĆ©s de Santos, no cargueiro francĆŖs Aurigny, para ser entregue ao governo fascista da RomĆŖnia. Na FranƧa, em conluio com o capitĆ£o do barco, estivadores e operĆ”rios do porto a libertam. Jenny escapa dos nazistas, alguns dos companheiros foram lutar na Espanha, o pai desapareceu. ImprovĆ”vel que o editor Koogan nĆ£o tivesse tomado conhecimento do caso de Jenny, que foi manchete do vespertino A Noite ao longo de outubro de 1935 e comoveu muita gente, judeus e nĆ£o judeus"
(DINES, cit., loc.cit.).
Em nota de rodapĆ©, Alberto Dines ampliou as informaƧƵes e explicitou o desfecho da histĆ³ria. Observou que depois da guerra Genny Gleizer teria conseguido entrar nos Estados Unidos, onde teve uma filha. Genny formou-se em psicologia. Em 1982 Genny teria contado sua histĆ³ria para Eva Blay, em Nova Iorque. Foi lĆ” que Genny teria vivido atĆ© 1995 (cf. DINES, cit., loc.cit.). Ao que consta, Genny Gleizer nunca voltou ao Brasil. Como havia processo judicial, relativo Ć  expulsĆ£o de Genny, o caso tambĆ©m propiciava estudo de histĆ³ria do direito, com base em fonte primĆ”ria, e que poderia metodologicamente questionar essa histĆ³ria do direito bufa e inocente, apologĆ©tica e inconseqĆ¼ente, que hoje se faz no Brasil, com algumas honrosas exceƧƵes.
Explico-me melhor. Agora que a histĆ³ria do direito foi incorporada aos currĆ­culos dos cursos de direito percebe-se a proliferaĆ§Ć£o de livros-texto, que apresentam uma histĆ³ria do direito singela, baseada em fontes secundĆ”rias, sem nenhum nĆ­vel de problematizaĆ§Ć£o, manipuladas, e que se prestam para justificar o que jĆ” existe. NĆ£o se avanƧa. Transita-se do CĆ³digo de HamurĆ”bi para o direito romano, da idade mĆ©dia para a revoluĆ§Ć£o francesa (sempre elogiada), da criaĆ§Ć£o dos cursos jurĆ­dicos no Brasil para a constituiĆ§Ć£o de 1988. NĆ£o hĆ” pesquisa especĆ­fica, com base em fonte primĆ”ria, e que possibilite investigaĆ§Ć£o criativa e prospectiva da histĆ³ria. Apanha-se um fato do passado e apresenta-se a circunstĆ¢ncia como passo indicativo da evoluĆ§Ć£o do direito.
Ɖ bem aĆ­ que me lembro de outro refugiado, Walter Benjamin, tambĆ©m judeu e tambĆ©m perseguido. Walter Benjamin fugia da FranƧa, dominada pelos nazistas. Surpreendido na fronteira com a Espanha, suicidou-se; nĆ£o conseguiu chegar atĆ© os Estados Unidos, onde estavam pesquisadores da escola de Frankfurt, a exemplo de Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Erich Fromm. A propĆ³sito, hĆ” notĆ­cias de uma carta de Erich Auerbach, escrita a Walter Benjamin, e datada de 23 de setembro de 1935, que insinuava eventual possibilidade do filĆ³sofo alemĆ£o lecionar no Brasil, na Universidade de SĆ£o Paulo (cf. LƖWY, 2005, p. 9).
Walter Benjamin concebeu a imagem do salto do tigre, em sua XIV tese sobre a histĆ³ria. Segundo Benjamin, o filĆ³sofo da melancolia, o historiador avanƧa para o passado, e como um predador apanha o que lhe interessa; usa o que apanhou como quer, faz do pretĆ©rito objeto da justificaĆ§Ć£o do presente (cf. BENJAMIN, 1985, p. 261). E Ć© um pouco disso que se vĆŖ em alguns livros de histĆ³ria do direito, bem como nas introduƧƵes histĆ³ricas que os vĆ”rios manuais apresentam. Tem-se relaĆ§Ć£o equivocada entre direito e histĆ³ria, em Ć¢mbito de historiografia jurĆ­dica tradicional. Ɖ essa relaĆ§Ć£o incestuosa que pretendo menosprezar, na medida em que fontes primĆ”rias qualificam o nĆŗcleo das pesquisas e das conclusƵes que seguem. Tenho notĆ­cias do uso dessa metodologia, em estudo sobre processos sociais, escravidĆ£o e justiƧa em Santos na dĆ©cada de 1880, tema do livro de AndrĆ© Rosemberg, Ordem e Bula (2006).
Foi com esse objetivo que no Supremo Tribunal Federal, junto ao arquivo, fiz carga dos autos do processo de habeas corpus nĀŗ 25.906, relativo ao caso de Genny Gleiser. Ɖ o estudo desse processo que se tem pela frente, com o objetivo de se vincular direito e histĆ³ria, com base em fonte primĆ”ria.


2) A Inicial do Habeas Corpus 25906/1935

No dia 13 de setembro de 1935 o bacharel Sylvio de Fontoura Rangel protocolou na Corte Suprema (como entĆ£o se denominava o Supremo Tribunal Federal) uma petiĆ§Ć£o de habeas corpus em favor de Genny Gleiser, natural da RomĆŖnia, menor de idade, e que se encontrava detida pela polĆ­cia do regime de GetĆŗlio Vargas, em local desconhecido. EndereƧada ao Ministro-Presidente daquela Corte, a peƧa Ć© manuscrita, consta de duas laudas, e dĆ” inĆ­cio ao pedido de habeas corpus que levou o nĆŗmero 25.906. O Ministro Olympio de SĆ” foi indicado relator.
Segue a petiĆ§Ć£o inicial, apenas alterando-se os modelos ortogrĆ”ficos, facilitando-se a compreensĆ£o do leitor contemporĆ¢neo:

"Exmo. Sr. Presidente e demais Ministros da EgrƩgia Corte Suprema.
O bacharel Sylvio de Fontoura Rangel, cidadĆ£o brasileiro, no gozo de seus direitos civis e polĆ­ticos, casado, advogado com escritĆ³rio a rua Evaristo da Veiga nĀŗ 16, 2Āŗ andar, nesta cidade
[o Rio de Janeiro] , com fundamento no art. 113 nĀŗs. 21, 23 e 24 combinado com o art. 76, letra h, da ConstituiĆ§Ć£o Federal, vem perante esta EgrĆ©gia Corte Suprema impetrar uma ordem de habeas corpus em favor da menor Genny Gleiser, natural da RomĆŖnia, e, que pelo fato de haver, apenas, comparecido a uma reuniĆ£o de socialistas, como mera assistente, foi seqĆ¼estrada pelo PolĆ­cia de SĆ£o Paulo e se acho hoje a disposiĆ§Ć£o do Sr. Ministro da JustiƧa, em lugar ignorado em infraĆ§Ć£o flagrante e clamorosa das liberdades e direitos consagrados no citado art. 113 da nossa lei magna, sem que ao menos lhe seja lĆ­cito qualquer recurso de defesa ou assistĆŖncia previstos no citado nĀŗ 24 do art. 113. De resto, a competĆŖncia desta EgrĆ©gio Tribunal Ć© evidente tendo-se em consideraĆ§Ć£o nĆ£o sĆ³ o fato de achar a paciente, a disposiĆ§Ć£o do Sr. Ministro da JustiƧa, como ainda em face dos termos contidos na (...) citada disposiĆ§Ć£o do art. (...) da lei constitucional em sua parte final. Nesta conformidade, o impetrante afirmando a verdade do alegado requer que tomado conhecimento do remĆ©dio ora impetrado e depois de ouvido o Sr. Ministro da JustiƧa, seja o pedido deferido na forma da lei e dos mais elementares princĆ­pios de solidariedade humana. E. deferimento ".
ApĆ³s datar e assinar, o impetrante estampou os selos indicadores do recolhimento de custas, bem como ainda adicionou mais um parĆ”grafo:
"O impetrante declara que o presente pedido foi inspirado pelo programa a que estĆ” sujeito o Departamento de AssistĆŖncia JudiciĆ”ria do vespertino 'A Nota', do qual se louva de fazer parte o advogado que toma a responsabilidade desta medida".
O pedido impetrado pelo advogado Sylvio de Fontoura Rangel Ć© de simplicidade marcante, e o fecho, que invoca os mais elementares princĆ­pios de solidariedade humana Ć© argumento retĆ³rico de muita forƧa. Nos termos da peƧa de habeas corpus, Genny Gleiser, que seria menor de idade (fato que as forƧas constituĆ­das posteriormente negaram), apenas participara de uma reuniĆ£o de socialistas, sem maior dedicaĆ§Ć£o ao movimento, o que lhe valeu a prisĆ£o, o fato de estar incomunicĆ”vel, e o desconhecimento de seu paradeiro, circunstĆ¢ncias que o Dr. Rangel imputou Ć  responsabilidade do Sr. Ministro da JustiƧa, o que justificou o protocolo do habeas corpus junto ao Supremo Tribunal Federal.
O pedido foi instruĆ­do por excertos de jornal, e quase todos do vespertino A Nota, circunstanciando o problema. AlĆ©m de menor de idade e acusada de vĆ­nculo com os comunistas, Genny Gleiser era judia. Este fato pode ser um dos mais importantes que desencadearam os episĆ³dios que serĆ£o aqui narrados, como jĆ” insinuei na sessĆ£o introdutĆ³ria.


3) A Imprensa e as Primeiras RepercussƵes

O jornal A Nota tomou a frente da defesa de Genny Gleiser, e o fez tambĆ©m mediante a publicaĆ§Ć£o de notĆ­cias alusivas Ć  sorte da moƧa, seqĆ¼estrada pela polĆ­cia polĆ­tica. O primeiro dos excertos de jornal, do vespertino A Nota, que instruĆ­a a petiĆ§Ć£o inicial do habeas corpus, dĆ” conta da seguinte manchete: "Genny Gleiser era uma crianƧa ignorante quando chegou ao Brasil". E em seguida, lĆŖ-se: "HistĆ³ria de fome e misĆ©ria- estudando e trabalhando em SĆ£o Paulo a jovem romena teria se tornado comunista". A pĆ”gina do referido jornal exibe foto de Genny Gleiser, que parece muito jovem. Ela estava com cabelos curtos, parcialmente cobertos por um chapĆ©u delicado. O olhar Ć© muito expressivo. HĆ” tambĆ©m foto de seu pai, Sr. Motel Gleiser. Ele aparentava ser de meia idade, cerca de 50 anos, usava Ć³culos de aros redondos e possuĆ­a duas entradas acima da testa, o que lhe emprestava perfil intelectual. Reproduziu-se trecho de carta de Genny para seu pai. O jornal ainda publicou foto de pequeno excerto da missiva, na qual se via a caligrafia firme da moƧa. Reproduzo em seguida a notĆ­cia do jornal, literalmente:
"A histĆ³ria triste de Genny Gleiser que vem se arrastando por ai, sem que se tenha tomado atĆ© agora uma providĆŖncia sĆ©ria, parece ter chegado a seu Ćŗltimo capĆ­tulo com as declaraƧƵes do chefe de seguranƧa de SĆ£o Paulo, de que a infeliz romena continuava presa, aguardando, apenas, o decreto que a expulse do territĆ³rio brasileiro. Falando ao Globo o Sr. Barros Leite nĆ£o se limitou a essas declaraƧƵes. Foi mais longe. E acrescentou, ainda, que Genny Gleiser, jovem, bonita e perigosa, era um elemento extremista de temer, vindo especialmente da RomĆŖnia para organizar e tomar parte do Congresso Juvenil Comunista, que se realizou em SĆ£o Paulo, e onde foi presa com outras dezesseis moƧas que assistiam aquelas comemoraƧƵes".
Na coluna ao lado, publicou-se a versĆ£o do pai de Genny, da seguinte forma:

"Ontem, esteve em nossa redaĆ§Ć£o o Sr. Motel Gleiser, pai da menina presa na cadeia pĆŗblica de SĆ£o Paulo. Vinha, apenas, disse ele, contrariar um trecho das declaraƧƵes do chefe de seguranƧa. Justamente aquele em que Genny veio da RomĆŖnia especialmente para organizar o Congresso Comunista Juvenil. E contou: - Vim para o Brasil em julho de 1929. A situaĆ§Ć£o na RomĆŖnia era precĆ”ria e eu precisava ter dinheiro para sustentar uma esposa e duas filhas. Vim para o Brasil, terra de liberdade e de trabalho. Ficaram na RomĆŖnia minha mulher Rosa e as nossas duas filhas menores, Genny, com 12 anos, e Bertha, com 4. Mas aqui, a sorte nĆ£o me ajudou logo. E nĆ£o podendo mandar buscar minha famĆ­lia, nem mandar-lhe o necessĆ”rio para viver sem fome, fui surpreendido com o suicĆ­dio de Rosa. Minha mulher nĆ£o suportara a vida miserĆ”vel".

E continuava a entrevista:

"Motel Gleiser fez uma grande pausa: E, depois de um instante, mergulhado em recordaƧƵes dolorosas, prosseguiu: As duas crianƧas ficaram abandonadas na RomĆŖnia. Sem famĆ­lia, sem teto, sem pĆ£o. E foi por intermĆ©dio da I.C.A., a organizaĆ§Ć£o internacional que fornece aos judeus meios para emigrarem, que Genny e Bertha vieram para o Brasil em 1932. E isso foi conseguido pela intercessĆ£o do rabino Raffallovich, cidadĆ£o inglĆŖs e fascista, que as trouxe em sua companhia. Eram duas crianƧas que nĆ£o sabiam ler nem escrever. E nĆ£o conheciam polĆ­tica. E da vida sĆ³ conheciam duas coisas: fome e frio. -Assim era Genny quando chegou ao Brasil- disse, depois. Em SĆ£o Paulo entrou para a escola e para a fĆ”brica. Foi estudar e trabalhar. E naturalmente, ai, com muitas outras companheiras de serviƧo, Ć© que teria adquirido, com a leitura e com as companhias, as idĆ©ias polĆ­ticas que a levaram a assistir, como muita gente, ao Congresso Juvenil".

O pai de Genny ainda insistia que o caso de sua filha configurava situaĆ§Ć£o isolada. Lembrou que 17 garotas foram presas com sua filha, e que somente Genny nĆ£o fora atĆ© entĆ£o libertada. Perguntava: Por que somente Genny?
O jornal A Hora tambĆ©m publicou a carta que Genny escreveu a seu pai, cujo conteĆŗdo segue, do modo como estampado no vespertino, adaptando-se tĆ£o-somente o regime ortogrĆ”fico:
HHo
"SĆ£o Paulo- 8-9-1935.
Querido pai.
Papai, nĆ£o tenho palavras para lhe agradecer pelas boas notĆ­cias que o senhor me forneceu. Estava hoje triste, me sentia tĆ£o sozinha, longe de meu pai e de meus colegas, e me sentia com tanta vontade de ser libertada e de estar onde eu pudesse trabalhar e conversar. Quando afinal recebi sua carta, fiquei tĆ£o contente, senti-me tĆ£o feliz. Tem gente que me compreende, que me defende, que me quer bem. Se papai soubesse, como me consola tal notĆ­cia, como fico satisfeita, como fico forte, que logo esqueƧo do que os malvados me fizeram, esqueƧo de minha tosse, da cadeia, e me sinto tĆ£o consolada. AgradeƧo-lhe papai, agradeƧo ao senhor e a todos que se interessam por mim. Quando for libertada, saberei agradecer-lhe de outra maneira. Hoje veio me visitar a minha tia Marche. Ela me falou que o advogado vai requerer amanhĆ£ outro hĆ”beas corpus. Que queria saber o resultado. Tenho muitas coisas a lhe escrever, mas agora nĆ£o posso papai. JĆ” sĆ£o 5 horas e vĆ£o fechar a porta. Na cadeia Ć© assim... AmanhĆ£ vou lhe escrever de novo. FaƧa o passĆ­vel para eu ser posta em liberdade aqui no Brasil, pois eu sou uma moƧa tĆ£o simples, eu penso que nĆ£o posso prejudicar ninguĆ©m aqui no Brasil e fora disso eu gostaria tanto de ficar aqui... Papai, diga: o senhor nĆ£o acha um absurdo ter medo de mim? Eu sou capaz de fazer mal a alguĆ©m? Papai nunca me abandone. Aceite um abraƧo de sua filha que lhe quer muito bem. Genny. P.S. escreva em portuguĆŖs".
Estudantes da Universidade do Rio de Janeiro compareceram Ć  redaĆ§Ć£o do jornal A Hora e informaram que estavam se mobilizando com o objetivo de libertar Genny. Uma foto mostrava os estudantes, todos muito jovens, vestidos de terno e gravata, como ditava a moda da Ć©poca. O jornal noticiou que o governo se negava a dar informaƧƵes objetivas, relativas ao paradeiro de Genny:

"O governo responde sempre com evasivas Ć s interrogaƧƵes sobre a verdadeira situaĆ§Ć£o de Genny Gleiser. O chefe da polĆ­cia, o "revolucionĆ”rio" Filinto Muller, declarou a um vespertino que em obediĆŖncia Ć  lei, Genny estava presa Ć  disposiĆ§Ć£o do Ministro da JustiƧa para ser deportada, por se ter tornado um "elemento perigoso". Por outro lado, na seĆ§Ć£o de ordem social, negam que ela ali se encontre, o policial portuguĆŖs, Serafim Braga, diz, ingenuamente, que nada sabe a respeito. De SĆ£o Paulo informam que Genny estĆ” no Rio e o MinistĆ©rio do Interior sĆ³ informa que Genny serĆ” deportada como extremista... De todos os pontos do pais as manifestaƧƵes populares pela liberdade de Genny Gleiser continuam a surgir. A revolta se avoluma e os gritos de protesto se multiplicam".

Esse mesmo jornal comunicava que estudantes no Rio de Janeiro planejavam realizar protesto em favor de Genny. Membros de um comitĆŖ acadĆŖmico teriam adiantado ao jornal que estariam dispostos a recorrer Ć  greve, se necessĆ”rio para que se desse fim ao insulto que se perpetuava sobre o povo brasileiro. Noticiava-se tambĆ©m que na CĆ¢mara Federal houve moƧƵes de protesto, por parte dos deputados JoĆ£o Neves e Abguar Bastos. Fora redigido requerimento, como segue:

"Requeremos, ouvida a CĆ¢mara, que seja informado pelo sr. Ministro da JustiƧa o motivo da prisĆ£o da menor Genny Gleiser, quais as razƵes porque permanece presa, assim como o local exato onde se encontra. Requeremos ainda informaƧƵes se hĆ” no MinistĆ©rio da JustiƧa algum processo de deportaĆ§Ć£o sobre a referida menor. Assinam: Abguar Bastos, OtĆ”vio da Silveira, Paulo Sucider, JoĆ£o Neves, Barros Casal, Domingos Velasco, Bias Fortes, Artur Santos, Bandeira Wogan, Ademar Rocha, Acelino LeĆ£o, PlĆ­nio Tourinho, OtĆ”vio Mangabeira, JosĆ© Augusto, Mota Lima, Hupp JĆŗnior, Oscar Fontoura, Artur Bernardes, Roberto Moreira e Batista Luzardo".

TambĆ©m na CĆ¢mara dos Vereadores do Rio de Janeiro houve protestos. Noticiou-se que o vereador Frederico Trota criticara o Ministro da JustiƧa, Vicente Rao reproduzindo um excerto da inflamada fala:
"A opiniĆ£o pĆŗblica jĆ” estĆ” formada a respeito deste caso. A condenaĆ§Ć£o formal das autoridades constituĆ­das estĆ” lavrada pelo tribunal popular e Ć© uma condenaĆ§Ć£o sem apelaĆ§Ć£o nem agravo. NĆ£o Ć© possĆ­vel continuarmos neste estado de coisas. A vingar o modo de agir da polĆ­cia, nĆ³s teremos, sem dĆŗvida, de proteger contra incursƵes dessa ordem, os nossos prĆ³prios lares, os nossos filhos menores".
E comentava o redator do jornal:
"Aludindo Ć s lutas populares na FranƧa, o orador acrescenta que, apesar de tudo, o governo francĆŖs consentiu que nas manifestaƧƵes de 13 de julho, comunistas e socialistas, democratas e liberais, fossem para a rua defender as suas convicƧƵes. E diz que no Brasil o que se vĆŖ, Ć© o governo meter no xadrez uma crianƧa, sob o pretexto de que Ć© extremista".


4) O reforƧo do pedido inicial

Em 20 de setembro de 1935 o escritĆ³rio dos advogados Malcher da Cunha, Antonio Dias Tavares Bastos e HelvĆ©cio Monassa, todos do Rio de Janeiro, por delegaĆ§Ć£o da ComissĆ£o Executiva do Partido Socialista do Brasil, representado especificamente por Tavares Bastos, protocolou petiĆ§Ć£o, reforƧando o pedido inicial, e aduzindo razƵes, protestando pela liberdade de Genny Gleiser. A petiĆ§Ć£o Ć© datilografada, conta com quatro laudas, e em seguida reproduzo; a citaĆ§Ć£o Ć© extensa, porĆ©m suscita que se aprecie a tĆ©cnica de redaĆ§Ć£o forense da Ć©poca, bem como o jogo retĆ³rico que se desenhava:
"Exmo. Sr. Ministro Presidente da Corte Suprema-
O abaixo-assinado, brasileiro, solteiro, advogado inscrito na Ordem sob o nĀŗ 286, com escritĆ³rio nesta Capital, a Rua do Carmo nĀŗ 5, 4Āŗ andar, nos autos de hĆ”beas corpus nĀŗ 25.906, impetrado em favor de Genny Gleiser, menor de 17 anos de idade, que se acha recolhida Ć  prisĆ£o em lugar incerto e nĆ£o sabido, em virtude de abuso de poder e autoridade do Ministro da JustiƧa, vem perante V.Excia. expor e requerer o seguinte: A paciente, que conta idade pela qual nĆ£o Ć© lĆ­cito fazĆŖ-la responder a processo crime, qual seja ele, sem a observĆ¢ncia do que prescreve o CĆ³digo de Menores, arts. 69 e 86, foi presa hĆ” cerca de dois meses em SĆ£o Paulo, quando assistia a uma reuniĆ£o estudantil, sem que seus pais tivessem tido notĆ­cia de seu paradeiro, que continuou ignorado a todos, atĆ© que veio a imprensa descobrir achar-se ela recolhida Ć  prisĆ£o comum de um xadrez na cidade de Campinas, estado de SĆ£o Paulo. Requerida na capital daquele Estado uma ordem de hĆ”beas corpus, perante a instĆ¢ncia inferior da JustiƧa local, considerou-se o juiz a quo incompetente para tomar conhecimento do pedido, em virtude da qualidade da autoridade coatora. Renovado o pedido, desta vez perante uma das varas federais daquele Estado, ainda essa medida nĆ£o pode ser tomada em conhecimento pelo magistrado de 1ĀŖ instĆ¢ncia, por ter ficado o mesmo ciente de tratar-se de paciente sofrendo de coaĆ§Ć£o por parte de autoridade cuja jurisdiĆ§Ć£o escapava a sua competĆŖncia. Acontece que, a 13 do corrente, deu entrada nesta EgrĆ©gia Corte um pedido de hĆ”beas corpus em favor da mesma paciente, impetrado pelo serviƧo de AssistĆŖncia JudiciĆ”ria do vespertino A Nota, por seu advogado, Dr. Sylvio Rangel de Fontoura, o qual tomou o nĆŗmero 25.906 e foi distribuĆ­do ao Sr. Ministro Relator Olimpio SĆ”, sendo somente a este remetido o processo a 19 do corrente mĆŖs. Entretanto, por uma entrevista coletiva dada Ć  imprensa, e divulgada a 17 deste pela AgĆŖncia Meridional de publicidade, autorizada a funcionar no paĆ­s, o chefe da polĆ­cia do Estado de SĆ£o Paulo, de regresso Ć  capital daquele Estado, torna pĆŗblico e notĆ³rio que a menor presa, Genny Gleiser, "deverĆ” ser brevemente expulsa do paĆ­s, pois a sua ordem de expulsĆ£o jĆ” estĆ” perfeitamente legalizada, faltando apenas ser visado o seu passaporte". O suplicante, assim entende de aditar ao pedido ajuizado, em processo nesta EgrĆ©gia Corte, a preliminar de que seja mandado oficiar, por despacho do Exmo. Sr. Ministro Presidente, ordenando tambĆ©m juntada desta aos autos, com a indispensĆ”vel urgĆŖncia, ao Sr. Ministro da JustiƧa, no sentido de que nĆ£o seja consumada a expulsĆ£o, sustando-se o embarque a que se obrigarĆ” a paciente, a vista do que tĆ£o claramente deixam perceber as autoridades, atĆ© julgar-se este. Pelo que se evidencia ainda, nĆ£o sĆ³ das entrevistas das ditas autoridades policiais, cumpridoras de determinaƧƵes emanadas do Ministro da JustiƧa, como mesmo pela pena de certos jornalistas oficiosos, de acordo com o que se depara num artigo de O Jornal de 14 do corrente sob a epĆ­grafe de Doux Pays, onde se procura justificar a reclusĆ£o e a expulsĆ£o da menor paciente, aquelas citadas autoridades teriam forgicado [sic] um processo de expulsĆ£o, onde nĆ£o teve ela as garantia sequer conferidas em lei, desde a nomeaĆ§Ć£o de curador, direito e prazos para produzir defesa, como nem seus pais jamais tiveram notĆ­cia do procedimento legal porventura intentado contra sua filha, menor de 17 anos, a quem portanto cabia prover o seu amparo em semelhante transe.Havendo pois uma forma processual a seguir, para que tenha lugar a medida extrema e rigorosa, que Ć© a expulsĆ£o, mesmo quando nĆ£o se trate de uma menor, evidentĆ­ssimo se torna que esse banimento imposto Ć  paciente Ć© a culminĆ¢ncia a que visava a violĆŖncia da autoridade coatora, com a prisĆ£o efetuada, mantendo a paciente em prisĆ£o "incomunicĆ”vel", de sorte a lhe nĆ£o ser possĆ­vel defender-se das acusaƧƵes com que foram solĆ­citos em mimosear-lhe os aficionados da mentalidade policial que atualmente infelicita a psique ministerial do palĆ”cio da Praia do Peixe.Releva acrescentar que a paciente, onde quer que se encontra-se presa, nunca foi dado conhecer pela prĆ³pria polĆ­cia, no frisante propĆ³sito de evitar que lhe fosse tentado um meio de defesa Ć  tramĆ³ia do processo de expulsĆ£o, cujas provas nunca se exibiram, jĆ” que se tornava fĆ”cil seqĆ¼estrĆ”-la, como atĆ© hoje, sem nota legal de culpa, como exige a ConstituiĆ§Ć£o Federal. Somente pelo que deixa transparecer a societas sceleris autoritatis empenhada na expulsĆ£o de Genny Gleiser, procura-se enredar contra ela o pressuposto de que seja uma terrĆ­vel agitadora comunista, fichada na polĆ­cia, com missƵes secretas da Terceira Internacional, vinda ao Brasil, onde chegou aos 15 anos de idade, especialmente para encabeƧar uma revoluĆ§Ć£o social, etc., etc., e mais outras tantas fantasias da delirante imaginaĆ§Ć£o da Ordem PolĆ­tico-Social, como se vĆŖ da prĆ³pria entrevista do mesmo famigerado chefe da polĆ­cia paulista. Ora, pela idade evidentemente tenra da paciente, nĆ£o Ć© crĆ­vel que possam tambĆ©m os venerandos Srs. Ministros desta vetusta Corte achar que se encontre ela investida de quaisquer missƵes de ordem a despertar temores de parte de nossas tĆ£o consolidadas e nobres instituiƧƵes sociais.Muito pelo contrĆ”rio, parece-nos bem que mais atentam contra a essĆŖncia dessas instituiƧƵes as mĆ”s autoridades que investem sem cerimĆ“nia contra a famĆ­lia, arrancando do poder de seus pais uma jovem de 17 anos, para expulsĆ”-la do paĆ­s e expĆ“-la Ć  aventura dos sem destino e ao infortĆŗnio dos que lhe provĆŖm ao sustento e educaĆ§Ć£o. A vingar tal princĆ­pio, no pseudo regime democrĆ”tico em que supomos viver, nĆ£o estaremos longe algum dia de ver beleguins alƧados Ć  condiĆ§Ć£o de julgadores e defensores da seguranƧa pĆŗblica, virem tomar dos braƧos das amas crianƧas ainda de peito, para lhes darem o destino que a sua mentalidade preventiva de futuros surtos revolucionĆ”rios entender melhor lhes traƧar: Ć© o caminho a que se pretende internacionalizaĆ§Ć£o das polĆ­cias, como ali mesmo preconiza ainda a subserviente inclinaĆ§Ć£o do entrevistado chefe de polĆ­cia de SĆ£o Paulo: a mentalidade policial ditando leis ao mundo! Valha-nos a consciĆŖncia profundamente jurĆ­dica dos nossos tribunais, diante do cafarnaum que se anuncia. Nestes tribunais, ainda resta a sorte da JustiƧa. EgrĆ©gios Srs. Ministros, a salvaĆ§Ć£o de Genny Gleiser estĆ” na coragem de afirmardes que todas as menores filhas de famĆ­lia ainda estarĆ£o amparadas pela lei contra o golpe de autoridades que abusam de seu poder, no mais funesto dos atentados Ć  sociedade. Fazendo pois o presente pedido para que, urgente e preliminarmente seja oficiado ao Ministro da JustiƧa, a fim de que suste o embarque da paciente, cuja presenƧa se reclama Ć  sessĆ£o de julgamento, espera-se afinal seja concedida a medida impetrada como o foi, com fundamento na ConstituiĆ§Ć£o Federal, art. 113, nĀŗ 23, tomando o MinistĆ©rio PĆŗblico em conseqĆ¼ĆŖncia as medidas que entender, ditadas pelo nĀŗ 21, in fine, do mesmo artigo do nosso estatuto bĆ”sico, como de JUSTIƇA".
Essa petiĆ§Ć£o tambĆ©m juntava excertos de jornal, dando conta de movimentaĆ§Ć£o que havia em favor de Genny Gleiser. De SĆ£o Paulo, publicava-se a seguinte notĆ­cia:

"Regressou hoje de sua viagem Ć  capital do paĆ­s o Sr. Arthur Leite de Barros, secretĆ”rio de SeguranƧa PĆŗblica de SĆ£o Paulo, que foi tratar de assuntos relativos Ć  sua pasta. O secretĆ”rio de SeguranƧa PĆŗblica foi recebido na estaĆ§Ć£o do Norte por altas autoridades do Estado, delegados de polĆ­cia, deputados e numerosas outras pessoas. Em palestra com a nossa reportagem, o sr. Leite de Barros, depois de nos expor os fins de sua viagem, abordou rapidamente o caso da menor Genny Gleiser, secundando as declaraƧƵes que fez Ć  imprensa carioca informando depois que a menor deverĆ” ser brevemente expulsa do paĆ­s, pois a sua ordem de expulsĆ£o jĆ” estĆ” perfeitamente legalizada, faltando apenas ser visado o seu passaporte. Finalmente, o secretĆ”rio de SeguranƧa PĆŗblica informou-nos que um dos pontos de seu trabalho consiste em trabalhar para melhor aproximaĆ§Ć£o entre as polĆ­cias de S.Paulo e do Rio. Ɖ partidĆ”rio da internacionalizaĆ§Ć£o das polĆ­cias, o que significa estreita unidade de vistas e de aĆ§Ć£o entre as organizaƧƵes policiais internacionais".

No processo hĆ” tambĆ©m juntada de notĆ­cia publicada na ediĆ§Ć£o de 15 de setembro de 1935, que informava que o Partido Socialista do Brasil envidava esforƧos para libertar Genny Gleiser, documento que se encontra nos autos do processo que se descreve:

"Solidarizando-se com os que lutam pela libertaĆ§Ć£o da menor Genny Gleiser, arbitrariamente encarcerada pela polĆ­cia polĆ­tica, hĆ” mais de cinqĆ¼enta dias, o C.E. do P.S.B. delegou poderes ao advogado Dr. Tavares Bastos para acompanhar esse caso, no terreno judiciĆ”rio, para libertaĆ§Ć£o da referida menor".



5) O papel de Assis Chateaubriand

Juntou-se artigo de autoria atribuĆ­da ao jornalista Assis Chateaubriand, hostil a Genny Gleiser e partidĆ”rio de aĆ§Ć£o mais agressiva, por parte das autoridades policiais. Chateaubriand tinha lĆ­ngua afiada. Por exemplo, certa vez afirmou que " Rui Barbosa era um dos mais notĆ”veis escritores estrangeiros de nosso idioma, deveria ser lido de dicionĆ”rio em punho" (cf. MORAIS, 1994, p. 103). O paraibano Assis Chateaubriand, a quem Fernando Morais deu o epĆ­teto de Rei do Brasil, viveu relaĆ§Ć£o de amor de Ć³dio com GetĆŗlio Vargas; fora um dos primeiros a apoiar o golpe de 1930, alcanƧou dramaticamente as forƧas rebeldes no Rio Grande do Sul. Chateaubriand passava por germanĆ³filo (atĆ© onde lhe interessou). Chateaubriand conhecia o idioma alemĆ£o, fizera viagem glamorosa Ć  Alemanha do IIIĀŗ Reich, registrando a excursĆ£o em curioso livro de divulgaĆ§Ć£o. Quanto ao problema de Genny Gleiser, porquanto ela era comunista, Chateaubriand protestava por medidas drĆ”sticas e o fazia por meio de artigo virulento, cujo conteĆŗdo segue:

"Quem nĆ£o estĆ” enxergando limpidamente a tĆ©cnica e tĆ”tica comunistas neste alarido em torno de uma jovem romena, agitadora da seĆ§Ć£o juvenil da III Internacional, e a quem os "camaradas" pretendem fazer passar por uma mĆ”rtir da truculĆŖncia policial de SĆ£o Paulo. A manobra comunista poderĆ” ter sido preparada nas trevas. Mas ela grita as suas origens, acusa a sua procedĆŖncia, dentro das circunstĆ¢ncias mais comprometedoras, para aqueles que pensam que nĆ£o defendem o bolchevismo, senĆ£o apenas a liberdade de uma crianƧa. A imprensa carioca estĆ” quase toda ela dentro da trama de uma das mais grosseiras mistificaƧƵes que nossa conhecida AlianƧa Nacional Libertadora jĆ” urdiu estes Ćŗltimos tempos, para fazer sentir que ela nĆ£o morreu do mal de sete dias. Um decreto do MinistĆ©rio da JustiƧa considerando-a fora da lei e o fechamento de sua sede oficial aqui e nos Estados nĆ£o seriam o bastante para destruir este esplĆŖndido organismo, concebido e estruturado segundo o sistema moscovita. Os "outlaws" libertadores acabem de promover uma sortida anti-policial e os seus resultados a ninguĆ©m Ć© lĆ­cito dizer que fracassaram. Faz-se no paĆ­s inteiro um movimento de simpatia em torno da pequena romena. A maioria da imprensa pinta o aparelho de seguranƧa pĆŗblica de SĆ£o Paulo com cores execrandas. O famigerado sentimentalismo brasileiro faz correr rios de tinta urdindo grande e pequenas misĆ©rias contra o organismo preposto Ć  defesa da ordem social paulista. O grande pĆŗblico, em horas tais, Ć© o titular de um paradoxal direito de imparcialidade, que Ć© a imparcialidade da ignorĆ¢ncia. Ele nĆ£o examina os fatos. NĆ£o os estuda e nem os investiga. Estabelece um ente de razĆ£o pela linguagem lavosa e incendiĆ”ria dos jornais, quando os jornais, no seu noticiĆ”rio de acontecimentos como esse de Genny Gleiser, traduzem as curvas tendenciosas do repĆ³rter simpatizante do comunismo, ao qual a AlianƧa, do fundo de seus porƵes de conspiradora, mandou a palavra de ordem. NĆ£o reveste nenhum colorido sedutor de perseguiĆ§Ć£o o caso da pequena romena, que os comunistas da imprensa diĆ”ria de SĆ£o Paulo e Rio decidiram transformar numa espĆ©cie de Joana D´Arc oriental, em vĆ©spera de ser queimada pelos borguinhƵes e pelos ingleses da Ordem PolĆ­tica e Social do Sr. Salles Oliveira. Eu estava em SĆ£o Paulo quando se suscitou o caso da prisĆ£o de Genny. Mandei pesquisar na polĆ­cia o que ocorria de verdade a seu respeito. A resposta, haurida de boa fonte, nĆ£o se fez esperar. Logo no dia de sua detenĆ§Ć£o puderam as autoridades paulistanas identificar-lhe o retrato no algum de famĆ­lia do nosso confrade Mangabeira JĆŗnior. Ele tinha em seu poder instruƧƵes que a III Internacional somente confere a filiados de certa envergadura. Genny nĆ£o era apenas um membro juvenil da seĆ§Ć£o de estudantes comunistas. Na sua pasta figuravam documentos demonstrando que ela pesava um pouco mais no seio dos comitĆŖs de aĆ§Ć£o e propaganda do partido na AmĆ©rica do Sul. NĆ£o era possĆ­vel, nessas condiƧƵes, tratĆ”-los como um desses escribas analfabetos que redigem, sem inteligĆŖncia, com penas rombudas, os dois diĆ”rios russos nas metrĆ³poles do Rio e SĆ£o Paulo. A polĆ­cia anda certa deixando em paz o muladar sonolento dessas pacatas alimĆ”rias. Elas nĆ£o ofendem o regime e nem a sociedade. Arranham tĆ£o somente a gramĆ”tica, desossam o portuguĆŖs e trucidam o bom gosto. Mas acabam sempre inofensivos, sem que, no seu zelo satĆ¢nico pela causa, arregimentem um prosĆ©lito, conquistem um militante. Tal nĆ£o era o caso de Genny Gleiser. Na monotonia do rebanho dos seus companheiros de ideal, ela se destacava como uma revelaĆ§Ć£o, pelo menos, de vivacidade e de desembaraƧo precoces (...) Comprovada a sua temibilidade, a polĆ­cia sĆ³ tinha que agir como agiu e estĆ” agindo. Ele Ć© uma flor de pĆŗrpura insolente, no meio deste espesso trigal de devoradores de ouro moscovita. Jogou a liberdade com destemor, e se a deportarem, honra que lhe seja por ter tido uma coragem de que os seus velhacos defensores nĆ£o se mostram capazes.A impressĆ£o que nos fica do episĆ³dio das atividades de Genny Gleiser no Brasil nĆ£o recomenda a bravura dos que dela se serviram para as manobras de aliciamento em que se encontrou envolvida a polĆ­cia de SĆ£o Paulo. Que cavalheirismo haverĆ” de parte de homens que se utilizam de uma moƧa de 19 anos para a execuĆ§Ć£o de missƵes arriscadas da causa? Qual de nĆ³s iria servir-se de uma rapariga de tĆ£o verdes anos, para vĆŖ-la mais tarde dentro da emboscada que lhe armaram os planos inĆ”beis dos seus prĆ³prios companheiros? A AlianƧa Nacional Libertadora serĆ”, se assim o quiserem, um partido, com muitos soldados e vĆ”rios chefes, mas nenhum desses chefes Ć© um "gentleman". JĆ” nĆ£o era pouco que eles fosses todos jovens burgueses ricos, solidamente montados em palĆ”cios e patacƵes. Agora verifica-se, pelo uso que fazem de mulheres para o exercĆ­cio de missƵes que deveriam normalmente caber a homens, que na AlianƧa Nacional Libertadora as vanguardas competem a Eva, e aos AdƵes fica esse "doux payx" que o Sr. GetĆŗlio Vargas lhes concedeu, depois que os dissolveu como partido e deixou-os por aĆ­ soltos e livres, a ver se podiam lavrar o tento da greve geral de que o ameaƧaram tantas vezes".



6) As InformaƧƵes do Ministro da JustiƧa

Com data de 6 de setembro de 1935 foi encaminhado ao Supremo Tribunal ofĆ­cio do MinistĆ©rio da JustiƧa e NegĆ³cios Interiores, assinado pelo Ministro, Vicente Rao, com o conteĆŗdo que segue, e que explicita a posiĆ§Ć£o do governo, no caso cujas proporƧƵes aumentavam:

#buttons=(Accept !) #days=(20)

Our website uses cookies to enhance your experience. Learn More
Accept !