Massacres promovidos pelo Hamas e o Fatah são tão extremos que os habitantes torcem por ocupação do exército israelense
Benjamin Barthe - Enviado especial à Faixa de Gaza
O fato aconteceu em maio, na hora do descanso. Os comerciantes estavam sonolentos atrás do seu balcão, enquanto fregueses davam início a partidas de gamão nos cafés. O centro da cidade de Gaza, tomada por um sol acachapante, estava caindo no sono em meio a uma aparência de normalidade. Algumas horas mais cedo, no campo de refugiados de Jabaliya, situado a uma dezena de quilômetros mais ao norte, um chefão das Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa, uma milícia oriunda do Fatah, havia sido eliminado, vítima de uma rajada disparada por homens mascarados cujo carro arrancou em velocidade. Mas a repercussão deste assassinato isolado não parecia capaz de transtornar a morna rotina das cercanias da Avenida Omar Al-Mokhtar.
É neste bairro que Mohamed Abdu e Suleiman Al-Ashi, dois jovens jornalistas do diário pró-Hamas "Falastin", circulavam de táxi. De repente, o motorista freou bruscamente diante de uma barragem improvisada. Homens de uniforme militar intimaram os passageiros a revelarem a sua identidade e profissão. Mohamed e Suleiman mal tiveram tempo para pronunciar o nome "Falastin". Eles foram embarcados à força. "Às 8h da noite, eu estive no hospital para identificar os corpos", conta Mustafa Sawaf, o redator em chefe do jornal. "Aquilo foi monstruoso. Os seus corpos estavam perfurados com tantas feridas, tão grandes e profundas que era possível enfiar a mão nelas. Os meus dois jornalistas foram torturados até a morte".
Nas horas que se seguem ao crime, o centro de Gaza transforma-se mais uma vez num campo de batalha. Estradas bloqueadas, atiradores sobre os tetos e os civis trancafiados em suas casas. Nas programações das suas rádios respectivas, os porta-vozes dos dois campos extravasam o seu furor. O Hamas invectiva os "inqilabiyin" (golpistas), expressão esta que eles reservam em particular para o grupo do Fatah liderado por Mohamed Dahlan, o antigo chefe do serviço de luta contra o terrorismo, acusado de estar envolvido no "complô americano-sionista" destinado a derrubar o governo de união, o qual foi instaurado entre o Hamas e o Fatah em meados de março. O Fatah, por sua vez, vilipendia os "qatala" (os matadores), os islâmicos extremistas que atuam na órbita de Mahmoud Zahar, o antigo ministro das relações exteriores, que eles acusam de importar a "cultura do sangue" para a sociedade palestina.
À semelhança dos enfrentamentos precedentes, é o Movimento da Resistência Islâmica (Hamas) que lidera a ofensiva. Melhor organizados, mais determinados, os seus homens partem para o ataque e, nos dias 15 e 16 de maio, invadem dois baluartes do Fatah: o terminal de Karni, na fronteira com Israel, que é controlado pela guarda presidencial, e a mansão de Rachid Abu Shbak, o chefe dos serviços de segurança interior, um aliado fiel de Dahlan.
Só que desta vez, diferentemente do que ocorreu nos episódios precedentes desta guerra civil não declarada, o partido do presidente Mahmoud Abbas não se limita apenas a se defender. A cada seqüestro de um dos seus membros, ele replica com prisões em massa nos círculos islâmicos. A cada execução, ele responde com outra execução. Depois de seis dias de combates, são recenseados cerca de vinte mortos em cada campo, além de uma dezena de civis mortos nas fuziladas.
Segundo o Centro Mezan, uma organização de defesa dos direitos humanos com sede em Gaza, desde a vitória eleitoral do Hamas em 2006, cerca de 500 palestinos morreram em enfrentamentos internos, de origem política, clânica ou familiar.
Wissam Hemeid é um sobrevivente desta fúria assassina. Este guarda-costas de Mohamed Dahlan é famoso entre os militantes do Fatah por sua cabeleira ruiva, que lhe vale o apelido de "Jinji" (o Ruivinho). Em 17 de maio, quando ele estava patrulhando as redondezas da casa do seu patrão, ele é obrigado a parar diante de uma barragem mantida por homens armados que trajam o boné das Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa. Quando ele percebe que estes homens não o reconhecem, Wissam compreende que ele caiu entre as mãos de militantes islâmicos fantasiados de membros do Fatah. Mas é tarde demais para dar marcha-ré. Intrigados pela pistola amarrada no seu cinto, os milicianos o levam para o subsolo de uma mesquita, onde o interrogatório é iniciado.
"Eles tinham um computador portátil, com o qual tinham acesso às listagens do ministério das finanças, onde estão fichados todos os funcionários da Autoridade Palestina. Eles digitaram o número da minha carteira de identidade e então descobriram quem eu sou". Nas 24 horas que se seguem, ele é então submetido a maus-tratos intensivos. "Eles agarraram a minha perna, dobraram-na em dois e enfiaram um canhão de fuzil entre a coxa e a panturrilha. Caso eles apertassem o gatilho, eu estaria amputado instantaneamente. Eles fizeram isso com vários dos meus colegas, nos braços e nas pernas. No meu caso, eu recitei vinte vezes a 'shahada' [a profissão de fé dos muçulmanos], achei que a minha hora havia chegado, mas, finalmente, eles não atiraram". O "Ruivinho" foi salvo pelo seu sobrenome. Quando foi anunciada a sua captura, os chefes do poderoso clã Hemeid haviam seqüestrado imediatamente um professor da faculdade islâmica. Os dois homens foram libertados depois da proclamação da trégua, em 19 de maio.
Naëd Nimr, o diretor quarentão de uma companhia de peças de reposição, não teve esta mesma sorte. Em 15 de maio, cinco homens trajando uniforme militar, encapuzados, derrubam a porta do seu domicílio, um apartamento que paira acima do quartel-general do presidente Mahmoud Abbas. Eles suspeitam este discreto financeiro do Hamas de ter filmado a partir da sua janela as movimentações das tropas nos arredores. "Eles empurraram o meu pai para dentro de uma camionete e desapareceram, seguindo por uma estrada reservada à guarda presidencial", conta Mohamed, o filho primogênito, com idade de 22 anos. "Eu acabei encontrando o seu cadáver na tarde do mesmo dia, no necrotério", acrescenta ele, erguendo a "gallabiya" (túnica comum muçulmana) do defunto, crivada por balas. "Testemunhas disseram que eles o forçaram a ficar sentado numa calçada e esvaziaram os seus carregadores nele".
Depois deste surto de violência extrema, Gaza, durante certo tempo, voltou a ser aquele concentrado de torpor e de frenesi, em meio ao qual os três quartos da população correm atrás de um emprego que não existe. Nas conversas entre vizinhos, instalados em cadeiras de plástico colocadas na entrada dos prédios, as matanças são designadas pelo eufemismo de "ahdess" (os acontecimentos). Os reflexos de sobrevivência e de denegação são tão fortes que, no início de junho, os Dabed, uma grande família cristã da região, celebraram o casamento do seu filho Abdallah com uma festa repleta de faustos.
"Isso simboliza toda a esquizofrenia de Gaza", explica Adnan Salim, um analista político. "Nós vivemos dentro de uma prisão, onde é impossível guerrear de maneira permanente. Até mesmo os militantes do Fatah e do Hamas precisam enviar os seus filhos para a escola e irem às compras". Mas, dentro desta nassa trancada a sete chaves e cortada do céu, da terra e do mar pelos soldados de Israel, tampouco é possível, segundo Adnan Salim, que os dois movimentos consigam se entender.
"O Fatah, mesmo se ele for dominado, jamais levantará a bandeira branca. O Hamas, mesmo se ele for o vencedor, jamais colherá os frutos da sua vitória, porque a comunidade internacional não o deixará fazer isso. Portanto, a minha expectativa é de que o cenário dos meses precedentes se repita. Um período de calmaria, seguido por outro de combates, e por aí vai. Vai ser uma guerra civil por intermitência".
As negociações que vêm sendo conduzidas no Cairo entre os dois campos e os serviços secretos egípcios não lhe fornecem nenhum motivo de esperança. "Os políticos podem seguir falando o que eles bem quiserem. Considerando o nível do ódio que tem se acumulado ao longo dos últimos meses, os próximos confrontos têm tudo para ser ainda mais sangrentos".
É preciso ver a casa calcinada da família Ghrayeb em Jabaliya para entender. Esqueletos de carros estão amontoados perto dos muros crivados de impactos de balas e de foguetes de RPG (canhão antitanque). Nas janelas cobertas de fuligem, duas bandeiras pretas foram amarradas, além de uma faixa com a seguinte frase: "Eles não são muçulmanos, eles não são humanos". Em 4 de janeiro, um grupo de cinqüenta milicianos do Hamas havia atacado de frente este edifício, que era o domicílio de Mohamed Ghrayeb, um general da Segurança preventiva, localmente célebre por detestar abertamente os "barbudos". Após nove horas de sítio, durante as quais houve diversos pedidos por socorro repercutidos ao vivo pelas rádios, o homem havia sido executado junto com oito outras pessoas, alguns guarda-costas, um irmão e vários netos, entre os quais um adolescente de 14 anos.
Seis meses mais tarde, Sobhi Ghrayeb, o irmão de Abu Al-Majd, ainda espuma de raiva quando comenta o "massacre" que a propaganda do Fatah erigiu como um símbolo da "barbárie" do Hamas. "Eu tenho os nomes de todos aqueles que mataram a minha família. Eu não quero que o partido se encarregue disso. Vou aguardar até que os meus dois filhos que foram feridos no ataque se restabeleçam completamente; então, eu venderei a minha casa e comprarei armas. Nenhum desses filhos da puta escapará".
Uma "mega-vendeta", uma espiral de batalhas organizadas, de assassinatos políticos e de acertos de contas entre famílias, as quais têm como pano de fundo a desintegração da Autoridade Palestina. Para a maioria dos habitantes de Gaza, este é o funesto programa que está à sua espera ao longo dos próximos meses. O desespero ambiente é tão grande que, das camadas mais altas até as mais pobres da escala social, muitos são aqueles que torcem abertamente, daqui para frente, para que o exército israelense volte a ocupar a faixa de Gaza.
"É horrível dizer isso, mas esta é a nossa única alternativa", diz Bashir Rayès, um economista. "O exército israelense desembarca com tudo, faz uma faxina geral, coloca o nosso território sob a tutela de um organismo tal como a Liga Árabe, e então se retira, deixando o lugar para uma força multinacional. Se esta situação perdurar, é possível que dentro de dez anos nós voltemos a nos comportar como seres humanos".
A servidão ou a autodestruição: eis a infernal alternativa com a qual os palestinos da faixa de Gaza (1,2 milhão) precisam lidar daqui para frente.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
Acreditem: Os Palestinos torcem por ocupação do exército Israelense!
sexta-feira, junho 15, 2007
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