Uma visão israelense

Uma visão israelense

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Ariel Sharon, um homem de ação

ALUF BENN
DO "HAARETZ"

Shimon Peres certa vez declarou: "Israel é como um ônibus. O público quer sentir que a direção está em mãos seguras". A grande realização de Ariel Sharon como premiê foi o senso de estabilidade e autoridade que ele irradiava para a população. Durante os cinco anos em que ocupou o cargo, Sharon transformou-se no eixo central da política israelense, um homem insubstituível. Sua eleição para premiê, em 2001, durante a onda de choque inicial gerada pela intifada palestina, imediatamente restaurou a calma num governo turbulento e desencontrado. 

A enorme experiência de Sharon, a determinação cheia de graça que ele manifestava em situações de pressão, e até mesmo sua presença corporal robusta convenciam os israelenses de que ele era alguém em quem podiam confiar. Acrescente-se a isso sua amizade grande com o presidente americano, George W. Bush, que o apoiou durante momentos em que este foi alvo de críticas ásperas de várias partes do mundo.

A idéia de que um homem experiente e responsável ocupava o assento do condutor nacional elevou Sharon a níveis recordes de popularidade, conduzindo-o a uma vitória arrasadora na eleição de 2003 e a uma liderança incontestável nas sondagens antes da eleição de 2006. Seu status de indômito se manteve apesar de centenas de israelenses serem mortos em ataques terroristas palestinos e mesmo enquanto a economia ameaçava desabar, e, também, apesar de ele ter ordenado a retirada forçada dos colonos de Gush Katif (Gaza), perto do final de sua carreira, iniciativa que lhe valeu um inesperado rejuvenescimento de sua imagem internacional.

Sharon está descendo do palco político, deixando para trás um legado misto. Ele encabeçou três iniciativas importantes e inovadoras: a reocupação de cidades da Cisjordânia e a detenção de Iasser Arafat na Muqata, a construção da barreira de separação e a retirada de 25 assentamentos da faixa de Gaza e do norte da Cisjordânia. O êxito da retirada dos colonos sem rupturas internas e praticamente sem violência constituiu um exemplo brilhante de liderança nacional, um modelo a ser seguido por qualquer sucessor.
O próprio Sharon se surpreendeu com seu repentino retorno do deserto político, onde era visto como homem do passado e símbolo da militância de direita, para o gabinete do premiê. Ele passou seu primeiro ano no cargo aprendendo a lidar com esse trabalho e a compreender suas limitações. Muitos observadores, na época, se indagavam se ele tinha algum plano ou estratégia para pôr fim à guerra com os palestinos, ou se ele estaria apenas oferecendo um arsenal de medidas táticas e respostas ao estilo olho por olho.

Apenas em seu segundo ano à frente do país é que ele ousou tomar a iniciativa, lançando o Exército na operação Escudo Defensivo na Cisjordânia, no auge da onda de ataques terroristas suicidas em cidades israelenses. A operação conseguiu parar ou desacelerar a onda de terror, mas não pôr fim à guerra.

A operação Escudo Defensivo e o cerco obsessivo montado em torno de Arafat no complexo da Muqata foram uma sequência natural da carreira de Sharon no Exército e na política, sempre orientada para o poder, carreira essa que incluiu várias conquistas impressionantes, como com a travessia do canal de Suez (Egito) durante a Guerra do Yom Kippur (1973), além de fracassos terríveis, como a invasão do Líbano (1982). A principal diferença foi o fato de, depois de assumir a liderança política, Sharon ter compreendido que sua administração dependia de dois fatores: o consenso interno e o apoio dos EUA. Ambos escaparam de suas mãos em 1982 e levaram a sua derrota no Líbano e a seu afastamento do primeiro plano político. Quando ele finalmente conseguiu a oportunidade pela qual ansiava, passou a regularmente consultar essa "bússola dupla", no âmbito interno e em Washington.

Foi apenas quando Sharon constatou que o terror continuava, mesmo após a operação em grande escala conduzida na Cisjordânia, e que Israel enfrentava ao mesmo tempo o isolamento internacional e uma crise econômica, que teve início sua grande reviravolta.

O êxito da saída de Gaza, praticamente sem violência, constituiu um exemplo brilhante de liderança nacional, um modelo a ser seguido


O primeiro passo foi sua concordância em erigir a barreira de separação, à qual, inicialmente, ele se opusera com veemência. Não obstante suas negações repetidas e declarações de que a barreira era "apenas mais uma maneira" de combater os ataques terroristas, Sharon compreendia que sua construção marcaria a fronteira futura de Israel e conduziria à retirada da maior parte da Cisjordânia.

Não surpreende que, num primeiro momento, ele tenha tentado transferir o máximo possível de território para o lado israelense da barreira e que tenha até mesmo querido construir uma muralha oriental que cercasse parte da população palestina. Foi apenas quando enfrentou a oposição dos EUA e uma decisão hostil do Corte Internacional de Justiça (Haia) que Sharon aproveitou o veredicto da Suprema Corte israelense para transferir a barreira para um percurso mais lógico. A barreira oriental foi descartada.

Depois da barreira, Sharon, ao longo de 2003, avançou no sentido da aceitação do "mapa do caminho", que conduz à criação de um Estado palestino, e, pela primeira vez, declarou que a ocupação era negativa para Israel, com isso provocando reações de fúria em seu próprio partido. E, quando o processo do "mapa do caminho" caiu por terra e os ataques terroristas continuaram, ele chegou a seu ponto mais baixo de aprovação junto ao público israelense. Bush se distanciou dele, e o consenso em relação à guerra se fragmentou. Sharon começou a ter a aparência de um líder fossilizado que perdera o rumo na metade da batalha.
Então ele se recuperou e ousou fazer algo que metera medo em todos seus antecessores. Enfrentou corajosamente os colonos, seus antigos aliados políticos, e lhes disse que era chegada a hora de desmontarem suas tendas. Quando anunciou o plano de desocupação, Sharon fixou um cronograma de dois anos para sua execução, algo que, à primeira vista, parecia representar uma brecha que poderia permitir desvios, mas que, mais tarde, foi visto como escolha responsável e sábia.

Diferentemente dos antecessores Yizhak Rabin e Ehud Barak, que acreditavam em surpresas políticas, Sharon levou o público israelense, os palestinos e a comunidade internacional a se acostumarem à idéia gradativamente. Ele desativou as minas terrestres políticas, preparou o Exército e a polícia, amealhou apoio para sua proposta e isolou o campo "laranja" que se opunha à retirada. Foi apenas depois de vencida a luta pela opinião pública que as forças partiram para retirar os moradores de Neveh Dekalim, Kfar Darom, Netzarim e Kadim.

Embora falasse em concessões, Sharon enxergava os vizinhos de Israel com desconfiança e se mantinha fiel às palavras de sua mãe, Vera: "Não acredite neles"


No legado diplomático de Sharon, a demografia detém a primazia sobre a topografia, pela qual ele se pautou inicialmente. Em seus pronunciamentos e discursos mais recentes, ele tentava pôr fim ao controle de Israel sobre os palestinos e reunir Israel dentro de uma fronteira nova, uma que pudesse ter maior aceitação internacional e que incluísse os "blocos de assentamentos" na Cisjordânia e uma região de segurança no vale do rio Jordão. O proposto é muito menos do que o mínimo do qual os palestinos falam, e, para se chegar até mesmo a esse traçado, será preciso retirar dezenas de milhares de colonos dos territórios.

Ao mesmo tempo em que falava em "concessões dolorosas" e retiradas e que as executava, Sharon continuava a enxergar os vizinhos de Israel com desconfiança e se mantinha fiel às palavras de sua mãe, Vera, que lhe dizia: "Não acredite neles". A frase que era sua marca registrada era "não esqueçamos que estamos falando de árabes".

Ele denegriu Arafat, zombou de Mahmoud Abbas [presidente palestino], evitou tratar com Bashar al Assad [ditador sírio] e não sucumbiu diante das aproximações tentadas por Hosni Mubarak [ditador egípcio]. Em sua visão, o mundo árabe ainda não aceitou o "direito inato" do povo judaico de estabelecer um Estado judaico no "berço onde nasceu", e o destino de Israel é enfrentar um conflito prolongado e possivelmente permanente com o ambiente hostil que o cerca.

Os direitos humanos dos palestinos o interessavam pouco, ao mesmo tempo em que ele pedia o fim da ocupação. Suas respostas duras aos ataques terroristas, suas promessas repetidas -mas nunca concretizadas- de afrouxar as restrições impostas aos palestinos, além do fato de repetidamente evitar desocupar os assentamentos que eram "postos avançados", mostram que, mesmo depois de ter desocupado os assentamentos, Sharon permanecia distante das posições fundamentais da esquerda política. Não surpreende que a maioria dos defensores dos palestinos, em Israel e no resto do mundo, continuaram a enxergá-lo como proponente da guerra e da destruição, mesmo depois de ele ter se tornado o queridinho do centro político.

Sharon passou por uma transformação em sua atitude em relação ao mundo exterior ao Oriente Médio. No último ano ele se aproximou da Europa, que, no passado, ele descrevera como hostil e anti-semita, e reconheceu sua capacidade de exercer um papel de assistência.
No discurso que proferiu na ONU, Sharon pela primeira vez reconheceu o direito dos palestinos a um Estado próprio. Até então, ele sempre descrevera o Estado palestino como algo imposto pelas circunstâncias, algo que não era fruto da escolha israelense, e não como um direito palestino reconhecido como tal.

Como político, demonstrou uma capacidade espantosa de controle e manobra, ridicularizando aqueles que faziam seu panegírico e mostrando que era hábil em ler as intenções de seus rivais. Sua experiência lhe ensinou que o vitorioso é aquele que conserva o controle da ponte, que é preciso saber absorver os golpes e deixar que o inimigo gaste sua munição antes do contra-ataque.

Sharon sempre tomava decisões de último minuto, mas então as defendia obstinadamente. Dessa maneira ele conseguiu fazer o plano de retirada dos assentamentos ser aprovado pelo gabinete e o Knesset e conseguiu desviar-se dos "rebeldes" em seu próprio partido, até chegar ao "big bang" e desmantelar o Likud -o partido que ele próprio criara depois de deixar o Exército, em 1973. Dessa maneira ele repetidas vezes esmagou seu maior rival, Binyamin Netanyahu.

O desmantelamento do Likud e a criação do Kadima, as últimas iniciativas políticas de Sharon, foram características do caminho político que ele percorreu: o de um pragmático extremo que adotou as idéias de outros, desprezou ideologias e acreditava que uma aliança é aceitável quando existe necessidade dela. Ele não foi o primeiro a promover-se como alguém que representava os interesses do Estado, agente autorizado dos interesses nacionais que batia de frente com os "políticos".

Sharon gostava de sua imagem de militar-agricultor que vinha da fazenda para o café do Knesset, encarnando o papel de salvador de seu povo. Como os antecessores Yitzhak Shamir e Rabin, também Sharon transformou sua habilidade verbal rudimentar, seu discurso desajeitado e seu humor cínico em uma imagem de "autenticidade". O público aderiu com entusiasmo e não prestou atenção à nuvem escura de corrupção que cerca o premiê e sua família.
O problema de sua abordagem era que ela corrompeu o establishment político e incentivou uma cultura de reverência cega pelo líder, uma cultura sobre cuja base foi formado o Kadima, ao mesmo tempo em que afastou qualquer discussão em torno de idéias e de como concretizá-las. Isso pareceu um preço tolerável a pagar pela realização de metas nacionais tais como traçar a fronteira e acalmar os ventos de guerra, mas é difícil conservar uma cultura de governo por muito tempo.

Em sua administração pública, Sharon demonstrou contenção intransigente e disciplinada. Ele aprendeu com seus antecessores, que falavam interminavelmente na rádio e respondiam a cada pequeno incidente, e falava apenas depois de muito preparo e de ter memorizado as mensagens. Esse hábito foi mantido mesmo em suas comunicações telefônicas com jornalistas na noite de sua primeira internação hospitalar, três semanas atrás.

Uma entrevista com Sharon era um pesadelo para qualquer jornalista. Ele se entrincheirava atrás dos pontos que prepara de antemão, jamais se desviando deles. Foi assim que seu estrategista e amigo íntimo Reuven Adler pôde apresentar o "novo Sharon" ao público como um homem moderado e calmo.

Sharon administrou o governo sem as intrigas e os vazamentos que lançaram sombras sobre os mandatos de seus antecessores. Seu primeiro chefe-de-gabinete, Uri Shani, foi demitido depois de ter ganhado poder demais. O sucessor dele, Dov Weissglas, agia como o "chanceler" privado de Sharon, e no último ano e meio o gabinete funcionou sem diretor, como uma federação de assessores leais ao chefe, cada um cuidando de seu próprio território, supervisionados por Sharon.
Sharon se considerava inferior apenas a seu mestre e mentor, o fundador do Estado israelense, David Ben-Gurion. No caminho para seu terceiro mandato, ele fixou para si mesmo dois objetivos que "o velho" não conseguira realizar: determinar o traçado das fronteiras do Estado e reformar a estrutura do regime, visando fortalecer a eficiência do governo e enfraquecer os partidos. O público não estava tão interessado nos detalhes e enxergava as eleições próximas como referendo sobre a continuidade do governo de Sharon. A população confiava no "avô nacional", acreditando que ele saberia o que fazer.

Ao final, porém, nem mesmo Sharon conseguiu escapar de um fim trágico, como o de todos seus antecessores. Nem um único primeiro-ministro israelense já deixou o cargo com honra e tranqüilidade. Rabin foi assassinado, Levi Eshkol morreu doente, e todos os outros ou perderam eleições ou foram afastados por seus partidos. Ariel Sharon completa seu mandato como líder reverenciado que conseguiu fazer frente a seus inimigos em seu próprio país e fora dele e que foi derrotado apenas na heróica batalha por sua própria saúde.


Aluf Benn é editor de assuntos diplomáticos do jornal israelense "Haaretz"
Tradução de Clara Allain

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