O judeu e o tempo


A vida consiste em luz e trevas: “E houve noite e houve manhĆ£.”


A 1Āŗ de Nissan de 2448 (1313 AEC – duas semanas antes do Ɗxodo), “D’us falou a MoshĆŖ e Aharon no Egito”, instruindo-os sobre o estabelecimento do CalendĆ”rio Judaico e que “este mĆŖs serĆ” para vĆ³s o cabeƧa dos meses, o primeiro mĆŖs do ano” (Shemot 12:1-2); esta foi a primeira mitsvĆ” dada ao povo de Israel. Naquela ocasiĆ£o D’us tambĆ©m ordenou-lhes sobre a oferenda de PĆŖssach e as vĆ”rias observĆ¢ncias da Festa de PĆŖssach.

As ideias mais importantes da religiĆ£o judaica, embora sejam intangĆ­veis, tornam-se acessĆ­veis por estarem incrustadas no tempo. SĆ£o celebradas em dias especĆ­ficos num ciclo anual de festejos e jejum, ancoradas no espaƧo – por substĆ¢ncias palpĆ”veis como uma cabana, matsĆ” ou velas.

Tudo aquilo que pode ser feito a qualquer hora por qualquer pessoa serĆ” feito em pouco tempo por ninguĆ©m. O JudaĆ­smo preserva os exaltados princĆ­pios e os eventos cataclĆ­smicos de sua histĆ³ria por meio de um sistema de prĆ”ticas estruturado, bem definido e especificamente programado: o calendĆ”rio judaico.

Os Anos

Os povos antigos comeƧavam uma nova contagem de anos no calendĆ”rio com o reinado de cada novo monarca. Quando o Cristianismo comeƧou a dominar o mundo ocidental, comeƧou a datar a histĆ³ria a partir do nascimento de seu prĆ³prio “rei”, e depois segundo o calendĆ”rio gregoriano. A partir de entĆ£o, a histĆ³ria foi dividida em AC e DC, antes do advento do nascimento do rei e no “ano do senhor”. O JudaĆ­smo nĆ£o podia consentir em dividir a histĆ³ria por essas linhas; nĆ£o divide a histĆ³ria universal nem sequer para fazer um ponto de apoio no nascimento de Avraham ou MoshĆŖ. Portanto, o calendĆ”rio religioso judaico jamais foi orientado dessa maneira.

Durante muitos sĆ©culos, os judeus contaram os anos a partir de um evento – o inĆ­cio de sua existĆŖncia como um povo – o Ɗxodo do Egito. ApĆ³s a destruiĆ§Ć£o do Templo em 70 EC, aquele evento cataclĆ­smico durante algum tempo substituiu o uso do Ɗxodo como data inaugural.

PorĆ©m, o senso do judeu a esse respeito, que viria a se expressar somente depois de sĆ©culos, era que nem mesmo um evento dessa magnitude era suficientemente importante para traƧar uma linha atravĆ©s do tempo e para recomeƧar a contar a histĆ³ria do mundo.

Somente uma ocorrĆŖncia poderia servir como um inĆ­cio para a histĆ³ria: o inĆ­cio da histĆ³ria. O JudaĆ­smo determinou a contagem dos anos do calendĆ”rio numa escala universal – a partir da CriaĆ§Ć£o do universo. Mas qual Ć© a idade exata do universo?

AtĆ© os cientistas, com sua instrumentaĆ§Ć£o exata e avanƧada, estĆ£o certos somente de uma resposta: que sobre isso nĆ£o pode haver exatidĆ£o. O Ćŗnico mĆ©todo para os SĆ”bios foi contar os anos segundo a narrativa literal da CriaĆ§Ć£o na prĆ³pria TorĆ”.

Portanto, a data hebraica de quase 6 mil anos (estamos em 5773) implica em quase seis mil anos da soberania Divina sobre o mundo, segundo a contagem da TorĆ”, e este Ć© seu significado eterno.

PorĆ©m, isso apresentava um problema: os judeus eram uma minoria e, embora pudessem contar o tempo segundo sua visĆ£o, estavam vivendo num mundo no qual a esmagadora maioria diferia dessa prĆ”tica. Os judeus, que residem em todos os cantos do mundo, nĆ£o poderiam ignorar a maneira de o mundo contar o tempo, a base da vida diĆ”ria de um ser humano. Embora o JudaĆ­smo nĆ£o seja “deste” mundo – no sentido em que se esforƧa para transcender este mundo – estĆ” bastante “neste” mundo, e portanto, a comunidade judaica precisava acomodar seu calendĆ”rio secular ao uso global. Como resultado, foi preciso viver sua vida secular de acordo com “as naƧƵes” e a dividir a histĆ³ria global segundo as datas do calendĆ”rio gregoriano. PorĆ©m nĆ£o podia acomodar-se aos termos da divisĆ£o histĆ³rica baseada no nascimento de Cristo – AC e DC – e em vez disso referiu-se a estes como AEC, antes da era comum, e EC, a era comum.

Em termos judaicos, entĆ£o, estamos vivendo em 2013 EC, o Templo foi destruĆ­do em 70 EC, os Macabeus se rebelaram em 165 AEC.

O calendĆ”rio religioso judaico, no entanto, nĆ£o reconhece este artefato secular, conserva seu formato universal, e continua a contar os anos numa escala universal – a partir do inĆ­cio da CriaĆ§Ć£o. Os judeus celebram o Ano Novo religioso, Rosh HashanĆ”, no dia que a TorĆ” considera o dia da CriaĆ§Ć£o, segundo seu cĆ“mputo literal, o primeiro dia do mĆŖs hebraico de Tishrei, que geralmente cai no final de setembro.

Os Meses

Os judeus contam os meses pela lua; a civilizacĆ£o ocidental padroniza seu calendĆ”rio pelo sol. Isso apresenta um dilema. A lua viaja mais lentamente que o sol – por cerca de 48 minutos ao dia. No inĆ­cio do mĆŖs lunar, a lua se pƵe a oeste apĆ³s o pĆ“r-do-sol, e a cada dia 40 a 45 minutos mais tarde. Continua a defasar cada vez mais atrĆ”s do sol (cada mĆŖs lunar tem 29 ½ dias) atĆ© que, ao final de 12 meses, o ano da lua Ć© 11 dias mais curto que o ano do sol, e a cada trĆŖs anos perde um mĆŖs inteiro de tempo.

Isso introduz um problema especial para o calendĆ”rio religioso – PĆŖssach precisa ser celebrado no equinĆ³cio da primavera – a primavera e a colheita sĆ£o seus marcos naturais, a ressuscitaĆ§Ć£o da natureza coincidindo com a redenĆ§Ć£o do povo. PorĆ©m, se o calendĆ”rio lunar perde um mĆŖs a cada trĆŖs anos, PĆŖssach se moveria para a frente a cada ano, e cairia sucessivamente em todas as estaƧƵes do ano. Ɖ exatamente isto que ocorre com a festa muƧulmana do Ramadan.

Os mestres do Talmud fizeram o ajuste acrescentando sete meses bissextos (chamados “Segundo Adar”) no decorrer de cada ciclo de 19 anos, e assim engenhosamente criaram um calendĆ”rio perpĆ©tuo que manteria os feriados na estaĆ§Ć£o aproximada para a qual foram originalmente concebidos.

O primeiro dia do mĆŖs lunar, chamado Rosh ChĆ“desh, era originalmente proclamado pela Suprema Corte em JerusalĆ©m depois que a lua nova era visualmente avistada. ApĆ³s a destruiĆ§Ć£o de JerusalĆ©m, Rosh ChĆ“desh era calculado pelo calendĆ”rio astronĆ“mico e determinava em quais dias o feriado cairia.

A TorĆ” designa determinados dias do mĆŖs como o inĆ­cio das Festas. Como as pessoas nĆ£o podem lidar com meses de 29 ½ dias, alguns meses tĆŖm 29 e outros tĆŖm 30 dias. Os meses de 30 dias tĆŖm dois dias de Rosh ChĆ“desh, os de 29 dias tĆŖm apenas um.

Numa reprise da tradiĆ§Ć£o antiga da proclamaĆ§Ć£o da Lua Nova feita pela Corte, no Shabat anterior a Rosh ChĆ“desh, a chegada do novo mĆŖs Ć© agora proclamada durante o serviƧo na sinagoga, repleta com um anĆŗncio do segundo exato do inĆ­cio de Rosh ChĆ“desh. Os judeus celebram Rosh ChĆ“desh basicamente com preces acrescentadas ao serviƧo.

Uma maravilhosa tradiĆ§Ć£o judaica registra que Rosh ChĆ“desh, a renovaĆ§Ć£o do ciclo mensal, celebra a feminilidade. NĆ£o Ć© apenas um brinde Ć s mulheres e um lembrete da gratidĆ£o devida a elas, mas realmente um feriado no qual as mulheres nĆ£o devem trabalhar.

Este tributo mensal foi iniciado como uma recompensa especial porque no Monte Sinai, ao contrĆ”rio dos homens, as mulheres se recusaram a contribuir com suas joias para a confecĆ§Ć£o de um bezerro de ouro – a rematada demonstraĆ§Ć£o feita pelos escravos recĆ©m-libertados da sua falta de fĆ© em D’us e no Seu servo, MoshĆŖ.

As Semanas

Os judeus contam a semana de Shabat a Shabat. O Shabat Ć© a coroa da semana; a coroa dos Dias Sagrados Judaicos; a coroa do EspĆ­rito Judaico; a coroa da imaginaĆ§Ć£o judaica.

O Shabat Ć© uma Rainha. Ɖ um prenĆŗncio do prĆ³prio Mundo Vindouro. O Dia da ExpiaĆ§Ć£o, Yom Kipur, Ć© o Ćŗnico dia mais sagrado que o Shabat semanal e sua extraordinĆ”ria santidade lhe conferiu o tĆ­tulo de “Shabat dos Shabatot”.

“Mais do que os judeus tĆŖm guardado o Shabat,” declarou certa vez um grande escritor, “o Shabat tem guardado os judeus.”

Este dia estĆ” tĆ£o enraizado na condiĆ§Ć£o humana que, nĆ£o importa quantas sociedades tenham tentado eliminĆ”-lo, nĆ£o conseguiram. Algumas simplesmente moveram o dia: os cristĆ£os para o domingo, os muƧulmanos para a sexta-feira. O Shabat carimba sua marca no indivĆ­duo, na naĆ§Ć£o, na semana.

Todos os dias da semana levam ao Shabat. Na verdade, os dias nĆ£o tĆŖm nomes, somente nĆŗmeros, e estes nĆŗmeros (yom rishon, yom sheni,...)todos olham para o nĆŗmero sete, antecipando a chegada do sĆ©timo dia, o Shabat, Shabat.

Os dias de domingo a sexta-feira sĆ£o considerados, psicolĆ³gica e fisicamente, como degraus levando ao Shabat, o “palĆ”cio no tempo”. Roupas novas sĆ£o usadas no Shabat; pratos especiais sĆ£o preparados; convidados importantes sĆ£o chamados a compartilhar a refeiĆ§Ć£o; discussƵes significativas sĆ£o adiadas para depois do Shabat.

A sexta-feira, devido Ć  proximidade com o Shabat, praticamente perde a prĆ³pria identidade; Ć© simplesmente Erev Shabat, o limiar do Shabat, quando atĆ© os mais importantes eruditos auxiliam na cozinha.

Seguindo a analogia dos dias da semana como degraus levando ao dia sagrado, no encerramento do Shabat, o judeu vivencia uma rĆ”pida queda na empolgaĆ§Ć£o – o Shabat vai embora, e a vida no nĆ­vel mais baixo do primeiro dia da semana tem de comeƧar novamente a escalada.

Os Dias

O dia judaico nĆ£o comeƧa e termina Ć  meia-noite como no calendĆ”rio secular. A meia-noite nĆ£o Ć© um evento astronĆ“mico reconhecĆ­vel. Na era antes do relĆ³gio moderno, uma hora especĆ­fica da noite nĆ£o podia ser sabida com precisĆ£o, ao passo que uma hora do dia era facilmente determinada olhando-se a localizaĆ§Ć£o do sol. Assim, o dia comeƧava por padrƵes precisos, simples e universalmente reconhecidos. Isso significava que o dia tinha de ser considerado ou a partir do inĆ­cio da noite ou no inĆ­cio do dia.

No tempo judaico, o dia comeƧa com o inĆ­cio da noite (o surgimento das estrelas) seguido pela manhĆ£ (que tecnicamente comeƧa com o aparecimento da Estrela do Norte). Segundo alguns mestres judeus, a noite e a manhĆ£ comeƧam com o pĆ“r-do-sol e o nascimento do sol, respectivamente. Pois Ć© como a TorĆ” o descreve: “E houve noite e houve manhĆ£, o primeiro dia.”

Por este motivo, o Shabat comeƧa na sexta-feira Ć  noite e termina com o surgimento das estrelas no sĆ”bado Ć  noite. O mesmo se aplica aos feriados importantes como PĆŖssach, Sucot, Shavuot, Rosh HashanĆ” e Yom Kipur, o dia de jejum de Tisha B’Av, alĆ©m de Chanuca e Purim. Iniciar estes dias com as noites Ć©, de certa forma, uma metĆ”fora da prĆ³pria vida. A vida comeƧa na escuridĆ£o do Ćŗtero, depois se lanƧa para o brilho da luz e por fim se acomoda na escuridĆ£o do tĆŗmulo, que, por sua vez, Ć© seguida por uma nova alvorada no Mundo Vindouro.

A vida consiste em luz e trevas: “E houve noite e houve manhĆ£.”
O que conta Ć© aquilo que fazemos com o tempo.