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Primo Levi - Coisas Judaicas |
Primo Levi transformou em arte relato sobre horror de Auschwitz.
Sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, escritor italiano, cujo centenário de nascimento se celebra na próxima quarta (31), ultrapassou os limites do relato testemunhal ao narrar sua experiência como prisioneiro dos nazistas.
Por meio de linguagem literária própria, que remete à sua formação de químico, desafiou as reservas dos leitores e estimulou reflexão moral sobre o Holocausto.
"Sou químico. Aportei na categoria de escritor porque fui capturado como partigiano e terminei em um campo de concentração como judeu".
A citação, retirada do curto e belo ensaio "O Escritor Não Escritor", reúne de forma admirável e concisa a multiplicidade de facetas presentes na trajetória pessoal e literária de Primo Levi (1919-1987).
Indica as dobras fundamentais do percurso de um sujeito cubista, em cujos vincos habitam personas tão diversas quanto as do químico, do escritor, do antifascista, do interno-sobrevivente de Auschwitz, do judeu.
A diversidade, contudo, tanto fascina quanto dificulta o trabalho dos leitores e estudiosos da obra.
O fascínio é autoexplicativo. Tanto a biografia quando a qualidade e a originalidade literária constituem fatores de atração irresistível.
As dificuldades impõem-se ao movimento de imaginar uma composição que reúna todos os elementos.
Na linguagem típica de Primo Levi, os aspectos postos na epígrafe estão dispostos em série, tal como na sintaxe dos elementos químicos compostos.
As ligaduras decorrem do acaso: cada condição teria levado à outra, sem nexo de necessidade, pela força errática e dissipada dos acontecimentos.
A obra de Primo Levi abriga forte sensibilidade a composições assimétricas e casuais, cujos efeitos não decorrem tanto da força isolada dos elementos originais reunidos, mas da produtividade combinada de suas ligaduras. Cada uma das facetas pode ser tomada como ponto de partida para a interpretação.
Como intérprete de si mesmo, Primo Levi fez da química uma chave de compreensão de seu trabalho. Em reiteradas oportunidades, atribuiu àquela ciência papel central em sua própria composição pessoal como observador do mundo/escritor. Ela teria sido estruturante de uma "forma mentis" singular, calcada no "hábito mental da consistência e da concisão", proporcionado pela "arte de separar, pesar e distinguir".
Habilidades, para Primo Levi, essenciais tanto para quem "se prepara para descrever fatos", como para os que pretendem "dar corpo à própria fantasia".
A recepção química da obra foi em grande medida estimulada pelo próprio autor, a partir da década de 1970.
Não se tratou, por certo, de uma alucinação idiossincrática e retrospectiva, já que, de fato, a química esteve presente de modo direto no primeiro livro, "É Isto um Homem?", publicado em 1947.
Nesse título, a experiência vivida no campo de extermínio, por vezes, foi narrada como relato de um "experimentum", um laboratório no qual o comportamento humano pode ser observado em condições mais do que extremas, expurgados os efeitos dos hábitos ordinários e do processo civilizador.
Tal enquadramento possui a indisfarçável marca de um dos heróis intelectuais de Primo Levi, Galileu Galilei, para quem o "experimentum", como arte de descoberta, não resulta de um contato primário e deseducado com as coisas e os elementos, mas sim de questões que dirigimos à natureza.
Nada mais apropriado, de fato, para um sujeito cujo livro tem como título uma pergunta. Mas, se há perguntas que precedem a experiência, isso equivale a dizer que há uma linguagem preestabelecida, a um só tempo continente e expressão de uma teoria do mundo.
O "experimentum" resulta, portanto, do rebatimento de uma tradição cognitiva sobre a contingência das coisas. Para Primo Levi, tal seria o encaixe da química na economia de seu próprio processo cognitivo.
De modo mais pungente, Primo Levi disse dever à química o fato de ter sobrevivido a Auschwitz, embora sempre tenha atribuído tal contingência ao acaso.
A "prova" está também relatada em seu primeiro livro, no registro precioso do "exame de química" ao qual se submeteu, diante do dr. Panwitz, para ser admitido como analista no laboratório da fábrica de borracha sintética instalada em Monowitz, parte integrante do campo de extermínio.
Tendo ali chegado em fevereiro de 1944, o acesso ao laboratório, de fato, o protegeu dos rigores de um segundo inverno, em fins daquele mesmo ano, que provavelmente lhe teria sido fatal.
Em um outro laboratório, seis anos antes, Primo Levi fizera uma descoberta filosófica essencial, a do caráter "inerentemente antifascista" da química, pela valorização da impureza das combinações de elementos, em aberto contraste com a obsessão fascista de pureza. É bem provável que esse antifascismo o tenha conduzido a uma concepção da química como reserva de resistência.
De qualquer modo, o laboratório químico, sob o fascismo, será o seu "falanstério", a sua "sociedade virtuosa", na qual se aprende a importância de "acertar e errar em conjunto". Sendo assim, o laboratório do dr. Panwitz não passou de um contra-laboratório.
O primeiro e mais usual ângulo de interpretação da obra de Primo Levi toma-o como autor inscrito no gênero particular da assim chamada "literatura de testemunho".
Tal variante, segundo Elie Wiesel, também ex-deportado, teria caracterizado o conjunto dos relatos textuais de sobreviventes da Shoah, movidos pelo empenho e pela obrigação de prestar testemunho: "Se os gregos inventaram a tragédia, os romanos a epístola e o renascimento o soneto, nossa geração inventou uma nova literatura, a do testemunho".
Uma literatura cujo valor residiria tanto na capacidade de dar a ver a escala de sofrimento vivida por seus autores quanto o quadro de vitimização maior que a proporcionou.