Como a
ideologia que prega o ódio renasceu na Europa, o mesmo cenário dos crimes
contra a humanidade cometidos na Segunda Guerra – e como ela se espalha até
mesmo no Brasil
EDUARDO SZKLARZ
Atualmente, diversos países -
inclusive o Brasil - assistem a movimentos neonazistas ressurgirem das cinzas.
Mas o que explica esse fenômeno? Qual foi o momento em que ser nazista/fascista
deixou de ser vergonhoso para se tornar aceitável?
A fagulha
nacionalista
A extrema direita não é um bloco
monolítico. Alguns partidos são racistas, xenófobos, outros são contra
muçulmanos ou gays. Muitos são tudo isso. Mas há um elemento comum a todos: o
nacionalismo. “Nem todo nacionalismo é de direita e muito menos fascista, mas
todo movimento nazifascista é nacionalista”, afirma o historiador Carlos
Gustavo Nóbrega de Jesus, superintendente da Fundação Pró-Memória de
Indaiatuba, em São Paulo.
Nacionalismos surgem em momentos de
crise. Tem sido assim desde o final do século 19, quando russos massacraram
milhares de judeus acusando-os pela morte do czar Alexandre II (1818-1881). A
onda de perseguições se alastrou pelo Leste Europeu, onde judeus e outras
minorias foram culpados pelas mazelas de cada país. Isso porque o nacionalismo
não é um mero amor à pátria: é uma defesa ferina da identidade nacional que
pressupõe a glorificação de “Nós” e a exclusão dos “Outros”. Por isso desemboca
em violência.
Em 28 de junho de 1914, por exemplo,
o nacionalista sérvio Gavrilo Princip disparou contra o arquiduque Francisco
Ferdinando, herdeiro da coroa austro-húngara. E deflagrou a Primeira Guerra.
Durante o conflito, o nacionalismo serviu de base para a principal – e mais
aterradora – invenção política do século 20: o fascismo. Era um movimento de
massas autoritário e populista baseado no anticomunismo, na expansão
imperialista e em um Estado policial que controlava a vida pública e privada
das pessoas.
O fascista (e socialista na
juventude) Benito Mussolini assumiu o poder na Itália em 1922 para logo
implantar uma ditadura. “O fascismo reconfigurou as relações entre o indivíduo
e o coletivo, de modo que o indivíduo não tinha direito algum fora do interesse
da comunidade”, diz o historiador americano Robert Paxton no livro The
Anatomy of the Fascism (“A Anatomia do Fascismo”).
Em 1933, o nazismo triunfou na
Alemanha agregando um novo ingrediente ao pacote fascista: a raça. Hitler quis
purificar a comunidade alemã dos seres considerados “inferiores”, entre eles
judeus, homossexuais, eslavos, deficientes físicos e mentais. Segundo o führer,
era preciso eliminar esses “bacilos” do corpo da sociedade para assegurar a
supremacia ariana. Após a Segunda Guerra, contudo, o nacionalismo deu
lugar ao mundo bipolar: EUA x URSS. As superpotências fatiaram o planeta em
áreas de influência do capitalismo e do comunismo. Na lógica da Guerra Fria,
ser extremista era vergonhoso. Mas não por muito tempo.
Cara nova
“O neonazismo surgiu na Europa entre
as correntes de direita mais radicais. De certa forma, foi constituído pelos
velhos nazistas que sobreviveram aos expurgos do pós-guerra, principalmente na
Alemanha Ocidental”, diz Luiz Dario Ribeiro, professor de História
Contemporânea da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
De fato, muitos nazistas convictos
ingressaram no serviço público alemão após a guerra e aproveitaram os novos
cargos para manter vivas as suas ideias. Foi o caso de Hans Globke, um dos
autores das discriminatórias Leis de Nuremberg (1935) e colaborador de Adolf
Eichmann, o arquiteto da “Solução Final”. Globke virou assessor do chanceler alemão
Konrad Adenauer nos anos 50. Assim, o anticomunismo da Guerra Fria criou
condições para que o caráter nazista desses agentes fosse esquecido.
O próximo passo deles foi criar
organizações de fachada para incorporar novos membros. O alemão Partido
Nacional Democrático (NPD) e o Movimento Social Italiano (MSI), por exemplo,
eram agrupamentos nazifascistas que se escondiam atrás de nomes simpáticos. “Os
novos membros eram jovens convencidos de que deveria haver uma luta de vida e
morte contra os comunistas”, diz Ribeiro.
Nos anos 60, o neonazismo ganhou
adeptos com a crise do colonialismo europeu. Grupos como o Occident e o
Exército Secreto Francês (OAS) atraíram nacionalistas frustrados pela derrota
da França nas guerras de independência da Indochina (1946-54) e da Argélia
(1954-62). O OAS perpetrou atentados contra argelinos e tentou até mesmo
assassinar o presidente francês Charles de Gaulle por permitir a
descolonização.
Pierre Sidos, fundador do Occident,
era filho de um membro da Milice – a brigada paramilitar francesa que caçou
judeus e membros da Resistência durante a ocupação nazista. Sidos prosseguiu
com as ideias do pai, recrutando universitários para combater os manifestantes
que pediam reformas no Maio de 68. De Gaulle proibiu o Occident, mas vários de
seus membros integraram a Frente Nacional, fundada por Le Pen em 1972.
Os neonazistas também buscaram
reabilitar a ideologia de Hitler. E para isso recorreram a uma teoria
pseudocientífica, o revisionismo, que acusava os vencedores da guerra de contar
a História à sua maneira. O pai do revisionismo foi o historiador francês Paul
Rassinier.
Ele havia sido prisioneiro político
dos nazistas mas começou a defender o Terceiro Reich depois da guerra. Ele
negava o Holocausto. “Eu estive lá e não havia câmaras de gás”, dizia. De fato,
Rassinier esteve em Buchenwald, um campo de concentração situado na Alemanha
que realmente não tinha câmaras de gás. Os campos de extermínio ficavam na
Polônia ocupada, como em Auschwitz e Treblinka, dotados de câmaras de gás e
crematórios.
Mas os livros delirantes de Rassinier
conquistaram leitores na Europa e foram traduzidos nos EUA pelo historiador
Harry Elmer Barnes – outro adepto de teorias da conspiração.
Barnes dizia que os julgamentos de
nazistas como Eichmann eram uma tramoia sionista e descrevia os Einsatzgruppen
(esquadrões da morte da SS) como “guerrilhas”. Outro revisionista
norte-americano, Francis Parker Yockey, tinha ideias ainda mais estranhas. Ele
defendia uma união totalitária entre a extrema direita, a URSS e governos
árabes para derrotar o “poder judaico- americano”. Yockey foi preso pelo FBI
por fraude, com três passaportes falsos, e se matou na prisão em 1960. Mas seu
livro Imperium se tornou objeto de culto dos neonazistas.
Gangues se aliam ao
partido
O nacionalismo sofreu uma metamorfose
com a crise do petróleo de 1973. Em meio à recessão europeia, os extremistas
adotaram um novo inimigo: o imigrante, sobretudo aquele oriundo das ex-colônias
árabes. “A xenofobia atraiu jovens desempregados e sem perspectivas para a
extrema direita”, diz Ribeiro.
Foi o caso dos skinheads, uma tribo
formada nos anos 60 na Inglaterra por jovens de classe baixa que curtiam ritmos
como ska e reggae. Os skinheads originais não eram racistas (muitos eram negros
jamaicanos), mas alguns deles atacavam gays e asiáticos. E, na recessão dos
anos 70, uma ala do movimento se vinculou ao partido neonazista inglês National
Front (NF), que promovia a “superioridade branca”.
“Os partidos de extrema direita
precisavam de militância e a encontraram nas gangues”, diz Nóbrega. Gritos de
guerra xenófobos entraram para o repertório dos hooligans – torcedores de
futebol conhecidos por deixar um rastro de vandalismo e pancadaria. O
jornalista americano Bill Buford conviveu durante quatro anos com hooligans do
Manchester United, na década de 80, e viu como eles eram facilmente recrutados
pelo NF.
Mas nem todos os brutamontes que
surravam estrangeiros estavam desempregados. Muitos aderiram à violência
xenófoba por pura sede de adrenalina. Foi o caso de Mick, o primeiro hooligan
que Buford conheceu. “Ele parecia um eletricista perfeitamente feliz, com um
enorme maço de dinheiro no bolso para comprar passagens e ver os jogos”, diz
Buford no livro Entre os Vândalos. E, enquanto cooptavam as gangues, os
partidos de extrema direita seduziam os eleitores. Em 1984, por exemplo, a
Frente Nacional obteve quase 11% dos votos dos franceses e elegeu 10 membros ao
Parlamento Europeu. Um deles foi Dominique Chaboche, antigo membro do grupo
Occident.
Para recuperar terreno, partidos de
esquerda também assumiram o discurso xenófobo e racista. Entre eles o Partido
Socialista (PS) francês e o Partido Comunista Italiano (PCI), que acusaram os
imigrantes de macular a cultura nacional. O objetivo era frear a debandada de
eleitores para a direita. O resultado foi desastroso. Judeus franceses estão
arrumando malas para mudar para Israel por medo de perseguição. De janeiro a
maio, 2,5 mil franceses emigraram, quatro vez mais que em 2013.
No fim dos anos 80, as células
extremistas já haviam erguido uma rede internacional. Ela era articulada pelo
alemão Michael Kühnen, o norueguês Erik Blücher e o belga Léon Degrelle, um
ex-general de Hitler que vivia na Espanha e liderava o Círculo Espanhol de
Amigos da Europa (Cedade). Kühnen revelou que era gay em 1986, quando estava
preso por incitar à violência. Após sua morte em decorrência da aids, em 1991,
o neonazismo na Alemanha foi levado adiante por Christian Worch.
Nos EUA, a rede cresceu graças a
Willis Carto, fundador do Instituto para a Revisão Histórica (IHR) e do extinto
Liberty Lobby – que publicava o jornal antissemita Spotlight.
Timothy McVeigh, o terrorista que em 1995 detonou um caminhão-bomba em frente a
um edifício em Oklahoma City, deixando 168 mortos e 700 feridos, era leitor
assíduo do Spotlight. McVeigh colocou anúncios no jornal para
vender munição.
Fascismo maquiado
O grande salto da extrema direita
veio após o fim da URSS, em 1991. Grupos nacionalistas até então sufocados pelo
regime soviético despontaram no Leste Europeu. Com o fim do comunismo e a
social-democracia desmoralizada, os extremistas europeus capitalizaram nas
urnas. Na Dinamarca, por exemplo, o Partido Popular obteve 13 cadeiras no
Parlamento em 1998.
“O ressurgimento do fascismo na
Europa pós-Guerra Fria não é orquestrado por um ditador seguido por homens com
camisas pardas e braçadeiras com suásticas”, diz o jornalista norte-americano
Martin A. Lee no livro The Beast Reawakens (“A Besta
Desperta”). “Uma nova geração de extremistas de direita, sintetizada pelo
führer do Partido da Liberdade austríaco, Jörg Haider, adapta sua mensagem e
seus modos aos novos tempos.”
Neonazistas em Fort
Bragg, nos EUA / Corbis
Haider foi duas vezes governador do
estado da Caríntia, na Áustria, e só não foi mais longe porque morreu num
acidente de carro em 2008. Mas outros líderes como ele têm chegado lá. O
búlgaro Volen Siderov ficou em segundo lugar nas eleições presidenciais em
2006. Seu partido, Ataka (“Ataque”), é hoje o quarto maior da Bulgária, com 23
cadeiras no Congresso.
Graças à internet, os extremistas
propagam sua animosidade de forma simples e barata. Um dos primeiros sites de
ódio foi o Stormfront, criado em 1995 por Don Black, ex-líder da Ku Klux Klan.
Hoje o site conta com 250 mil membros e um fórum online com mais de 9 milhões
de posts. A nebulosa virtual inclui o site Radio Islam, que dissemina propaganda
antissemita em 23 idiomas. Esses portais seguem a tática de Hitler: usar a
democracia para propagar mensagens antidemocráticas.
“Como a liberdade de expressão é um
dos bens mais apreciados em qualquer democracia, ela não pode ser regulada de
antemão. Cada caso tem que ser analisado”, diz Sergio Widder, representante do
Centro Simon Wiesenthal para a América Latina. E nenhum país preza a liberdade
de expressão mais do que os EUA. Isso explica por que muitos neonazistas
hospedam seus sites em território norte-americano.
Por suas leis permissivas, os países
escandinavos se transformaram em refúgio de extremistas. Não é à toa que o
marroquino Ahmed Rami, fundador da Radio Islam, reside na Suécia. Redes de
skinheads, como Combat 18 e Blood & Honour, também difundem sua mensagem ao
redor da Europa sob o olhar complacente da polícia.
“Precisamos encontrar respostas que
se adaptem aos novos desafios. Não podemos confrontar o nazismo do século 21 da
mesma forma que nos anos 80”, diz Widder. Em 2010, por exemplo, a Rússia
proibiu a publicação de Minha Luta, a autobiografia de Hitler, para
tentar conter o extremismo. Mas o livro está disponível na web, virou
best-seller entre os e-books e tem mais de 100 versões à venda na Amazon. “A
obra de Hitler é uma fonte para quem estuda o nazismo. Não sei se proibir o
livro é a melhor resposta. Vamos censurar o acesso à internet?”, diz Widder.
Encontrar respostas é difícil numa
era em que a xenofobia existe até em governos democráticos. E o nazismo volta a
assombrar quase sete décadas após a derrota alemã na guerra. Segundo estudo da
Universidade de Leipzig, um em cada seis alemães orientais tendem à extrema
direita. Em 2002, era só um em cada doze.
“A História é cíclica: tende a se
repetir. E ela nos mostra que esse tipo de ideologia é nocivo. Começa pequeno e
vai crescendo por meio da demagogia, muitas vezes com um discurso maquiado”,
diz Carlos Reiss, coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba, único
do gênero no Brasil. Aqui, aliás, páginas do Facebook cultuam a supremacia
branca com ofensas a negros e índios. “Não somos racistas, somos orgulhosos”,
proclama uma delas.
Saiba mais
The Anatomy of the
Fascism, Robert Paxton, Vintage, 2005
Entre os Vândalos, Bill Buford,
Companhia de Bolso, 2010
The Beast
Reawakens, Martin A. Lee, Routledge, 1999
Antissemitismo e
Nacionalismo, Negacionismo e Memória, Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus,
Unesp, 2006