Na pequena cidade de Akop, nos
Cárpatos na Polônia, o casal Sarah e Eliezer era conhecido por sua generosidade
e hospitalidade, sendo considerados por todos como judeus piedosos e tementes a
D’us. Na noite de Shabbat1,
a sua casa ficava repleta de gente de todas as regiões do Leste Europeu desde a
Polônia aos Países Bálticos, e forasteiros desconhecidos do casal freqüentavam
sua casa sem necessitar de convite. A mesa de Shabbat era generosa e todos podiam se fartar da boa comida e do
bom vinho kosher2 servido
com prodigalidade.
Sarah e Eliezer tinham, entretanto,
um triste segredo que não compartilhavam com ninguém: há muito vinham tentando
inutilmente ter um filho e ao que tudo indica eram incapazes de cumprir o
preceito bíblico, “crescei e multiplicai-vos”.
Numa noite de Shabbat, surgiu em sua casa um homem de aparência e hábitos rudes,
trajando vestígios esfarrapados daquilo que outrora fora uma roupa, calçando um
par de botas rotas e enlameadas. Seu mau odor espalhou-se pela casa,
incomodando a todos os celebrantes e suas botas deixaram pegadas de lama nos
belos tapetes que adornavam a sala. Convidado a tomar assento na farta mesa
cuidadosamente preparada para o dia sagrado do Shabbat, pôs-se a reclamar de tudo, assustando os convidados com
sonoros arrotos e outras emanações gasosas. Palitando os dentes com o garfo, e
cuspindo no prato, reclamou com grosseria da porção que recebeu, alegando ter
recebido uma quantidade menor de comida no que Eliezer prontamente convidou-o
sentar-se ao seu lado, propondo a troca de pratos. O que se viu, ate o término
do Bircat Hamazon3, foi
uma sucessão de grosserias e reclamações que chocaram todos os presentes.
Quando todos saíram, a inconveniente
visita pediu a Eliezer abrigo para passar a noite, sendo prontamente atendido,
deitando-se na cama oferecida sem sequer tirar as botas, enxovalhando os
lençóis. Na manha seguinte, o forasteiro pediu dinheiro ao casal, no que foi
atendido:
- Entendemos que você precisa de dinheiro para se hospedar em alguma
estalagem. Disseram-lhe
Sarah e Eliezer oferecendo uma quantia suficiente para pagar vários dias de
hospedagem em Akop.
- Só isso?! Preciso de muito mais! Gritou o homem grosseiramente.
- Aqui tens o que precisas, disse-lhe o casal, oferecendo–lhe uma polpuda
quantia.
O misterioso e desagradável shnorer4 ao ver a quantia
disse-lhes:
- Guardem seu dinheiro, na verdade, não preciso dele, quis apenas testar
o seu grau de tolerância, hospitalidade e generosidade e vocês passaram com
folga ao teste ao qual os submeti.
E continuou a falar-lhes:
- Vocês são judeus piedosos e garanto-lhes que em breve serão
recompensados com uma grande graça divina: serão pais de uma criança
prodigiosa.
O que Sarah e Eliezer não poderiam
jamais supor é que o shnorer era, na
verdade, um mensageiro divino e sua mensagem não era um mero presságio, mas o desígnio que HaShem5 havia-lhes reservado.
Cerca de um ano depois, em 18 de Elul6
de 1698, o casal foi agraciado com o nascimento de Israel, um menino que já em
tenra idade revelava atributos excepcionais para a compreensão dos mais
difíceis textos da Torah7,
do Talmud8 e da Cabala9. Em pouco tempo,
Israel ben Eliezer tornou-se um erudito do Tanach10,
dos complexos comentários da Torah
oral compilados na Mishná e dos
contra-comentários da Guemará, sendo
também capaz de interpretar as mais obscuras palavras da Cabalá.
Ainda jovem Israel ben Eliezer aderiu
ao pequeno grupo itinerante dos Sábios Místicos que percorriam as mais
recônditas regiões da Polônia difundindo os conhecimentos da Torah e do Talmud. Tão prodigiosa era sua memória e sua capacidade de
entendimento das Escrituras que recebeu
a alcunha de Baal Shem Tov, O Senhor
do Bom Nome. Em breve, sua reputação se espalhou em todo Leste Europeu, desde a
Polônia à Lituânia e Rússia, atraindo inúmeros discípulos, sendo conhecido pelo
acróstico de Besht.
O Baal Shem Tov é considerado um dos
maiores sábios do Judaísmo e foi o criador do Chassidismo, movimento hoje difundido no mundo todo que defende a
inclusão igualitária na Congregação de todo e qualquer judeu, seja ele pobre,
iletrado e ate mesmo ignorante. Os Chassidim
tinham uma opinião contrária aos Mitnagdim
do Gaon (Sábio) de Vilna que defendiam a idéia de que só os cultos e eruditos
tinham voz ativa na comunidade. Para o Baal Shem Tov, mais importante que a
erudição racionalista era a emoção e a alegria do culto a HaShem9 e o coração era tão importante quanto a razão. A
oração a HaShem deve ser dominada
pela emoção, a alegria e o fervor com que cada palavra é proferida,
independente do grau de instrução de quem a profere. Em pouco tempo, o Chassidismo se espalhou pelo Leste
europeu, chegando ao mundo todo em suas várias ramificações posteriores. A
idéia de que cada judeu é igualmente importante, devendo ser tratado com
respeito e dignidade, tornou os Chassidim
amplamente majoritários em relação aos Mitnagdim,
sendo hoje uma das correntes mais importantes do Judaísmo mundial.
*livre transcrição de uma história
contada numa noite de Shabbat no Beit Chabad-Salvador por Morá Rivky Bukiet.
**
Roberto Leon Ponczek é professor da Universidade Federal da Bahia e autor do livro “Da Babilônia ao Brasil: o
improvável milagre da existência” Ed. Garimpo 2018. Estuda a Cabalá judaica com
o Rabino Israel Bukiet e é membro colaborador do Beit Chabad–Salvador. Seus
pais Wanda Goldblum Ponczek e Tadeusz (David) Ponczek foram sobreviventes
poloneses da II Guerra Mundial que emigraram para o Rio de Janeiro em 1946,
depois de terem testemunhado e vivido os horrores do Holocausto nazista.
1 Shabbat
é o dia santificado dos judeus no qual HaShem
(O Nome de D’us) descansou após os seis
dias da Criação, começa na 6ª feira e termina no sábado a mesma hora.
2
kosher são os hábitos, preceitos e
alimentos permitidos aos judeus.
3
Bircat Amazon é a
reza de agradecimento a HaShem pela
refeição servida.
4
shnorer é como se designa em ídische (a língua dos judeus do Leste
Europeu) um mendigo atrevido que
sempre reclama pedindo mais.
5
HaShem é como os judeus se referem ao
Sagrado Nome de D’us.
6
Elul é o sexto mês do calendário
judaico
7Torah são os 5 livros que compõem o
Velho Testamento.
8 Talmud é
o livro constituído de comentários
(Mishná) e de contra-comentários (Guemará) acerca da Torah oral Foi escrito na Babilônia a cerca de sec.V a.C.
9 Cabalá é
a interpretação mística da Torah
10 Tanach são
os 24 livros que compõem as Sagradas Escrituras.
Linda história!Obrigado por compartilhar
ResponderExcluirIvana, obrigado pelo incentivo!
Excluir