Drogas: Um Fogo Estranho
Por Simon Jacobson
Caro Rabino,
AgradeƧo por ter falado comigo outro dia. Suas palavras encorajadoras realmente me ajudaram em meu processo de desintoxicaĆ§Ć£o. Como partilhei com vocĆŖ, fui um daqueles adolescentes sem juĆ­zo que comeƧaram usando Ć”lcool e drogas para recreaĆ§Ć£o – como uma coisa social, procurando diversĆ£o. EntĆ£o tornei-me mais e mais dependente delas atĆ© que me tornei totalmente viciado. Procurar uma droga se tornou minha obsessĆ£o durante dia e noite. Eu mentia, roubava dinheiro, traĆ­a as pessoas que amava e aqueles que me amavam – qualquer coisa para conseguir me drogar.
Mesmo com a minha vida totalmente fora de controle, nĆ£o consegui sair dessa armadilha atĆ© que cometi um dano real irreversĆ­vel, que eu nĆ£o podia mais ignorar (como partilhei com vocĆŖ, e prefiro nĆ£o colocar por escrito). Somente entĆ£o, quando cheguei ao “fundo do poƧo”, comecei a procurar ajuda.
Nenhuma magia pode abrir sua alma
ApĆ³s anos, literalmente anos de reabilitaĆ§Ć£o, estou apenas comeƧando a ver alguma luz no fim do tĆŗnel. Minha pergunta a vocĆŖ Ć©: alĆ©m dos efeitos viciantes, destrutivos e doentios do abuso de substĆ¢ncias, hĆ” algo errado em atingir um ponto alto com substĆ¢ncias estranhas? Em outras palavras: se drogas e Ć”lcool nĆ£o tivessem nenhum efeito adverso, a TorĆ” teria algum problema com o uso delas para atingir uma elevaĆ§Ć£o espiritual por intermĆ©dio delas?
Sei que essa pergunta pode parecer trivial comparada com minhas assustadoras experiĆŖncias. Pode atĆ© parecer como se eu estivesse tentando encontrar alguma justificativa para seu uso. Garanto a vocĆŖ que nĆ£o Ć© isso. Mas me intriga entender a natureza daquele altamente induzido pelas drogas, e se eu puder desempenhar um papel, quando usado adequadamente, (se Ć© que isso Ć© possĆ­vel), para atingir a transcendĆŖncia. AgradeƧo pela sua ajuda, seu voto de confianƧa e acima de tudo a sua esperanƧa contagiante que me dĆ” forƧa para continuar a minha luta.
David [nome trocado]

Resposta:

Caro David,
AlĆ©m das palavras pessoais de encorajamento… primeiro hesitei em responder Ć  sua pergunta exatamente porque parece completamente sem sentido. VocĆŖ conhece totalmente o horrĆ­vel abismo do vĆ­cio em drogas. EntĆ£o por que trazer Ć  tona atĆ© a mais leve consideraĆ§Ć£o sobre os possĆ­veis benefĆ­cios de um estado induzido de consciĆŖncia alterada?
Mas entĆ£o reconsiderei e percebi que muitos outros podem ter a mesma pergunta. AlĆ©m disso, parece importante discutir nĆ£o apenas os sintomas, mas as verdadeiras raĆ­zes do vĆ­cio.
VocĆŖ pode ficar surpreso ao saber que sua pergunta Ć© dirigida exatamente Ć  prĆ³pria TorĆ”. Sim, muito antes da praga do abuso de substĆ¢ncias em nossos tempos, temos um precedente que esclarece para nĆ³s esse tĆ³pico, bem como muitas outras questƵes sobre a eterna busca pela transcendĆŖncia espiritual.
A TorĆ” descreve e conclui um misterioso evento que ocorreu trĆŖs capĆ­tulos antes:
ApĆ³s o SantuĆ”rio ser terminado, a TorĆ” nos diz que os dois filhos mais velhos de Aharon, Nadav e Avihu: “Ofereceram um fogo estranho perante D'us, que Ele nĆ£o tinha ordenado.”

O resultado:
“Um fogo veio de D'us e os consumiu, e eles morreram perante D'us.”

ApĆ³s as mortes de Nadav e Avihu, D'us ordenou especificamente que seu exemplo nĆ£o fosse repetido: “E D'us falou a MoshĆŖ, apĆ³s a morte dos dois filhos de Aharon, que chegaram perto de D'us e morreram… Fala com Aharon teu irmĆ£o, que ele [seja cuidadoso para] nĆ£o ir todas as vezes atĆ© o Eterno… para que ele nĆ£o morra… [mas]com isso Aharon irĆ” chegar ao local sagrado.” (VayicrĆ” 16:1-2)
A TorĆ” continua com as condiƧƵes sobre como entrar no Santo dos Santos. Rashi explica que esta ordem vem imediatamente apĆ³s a declaraĆ§Ć£o da morte dos filhos de Aharon, para adverti-lo que seu serviƧo a D'us nĆ£o deveria ser como o de seus filhos.
O que estĆ” por trĆ”s das aƧƵes de Nadav e Avihu? Eles se comportaram corretamente ou nĆ£o? Por um lado, eles foram obviamente homens notĆ”veis que “se aproximaram de D'us;” por outro lado, “eles morreram” porque “ofereceram um estranho fogo perante D'us, que Ele nĆ£o tinha ordenado.” E D'us estĆ” avisando Aharon para nĆ£o se comportar como eles.
E qual Ć© o significado do “estranho fogo” que eles ofereceram?
Acima de tudo, se os filhos de Aharon se comportaram erradamente por que Ć© importante documentar sua triste histĆ³ria, que os apresenta sob uma luz negativa?
A chave para essa histĆ³ria estĆ” na palavra “fogo”. Fogo Ć© paixĆ£o. Toda paixĆ£o vem do fogo da alma: “A alma do homem Ć© o fogo de D'us.”
Como uma chama, uma alma sempre atinge o alto, lambendo o ar em sua busca por transcendĆŖncia, somente para ser restringida pelo pavio descendo a chama atĆ© a terra. O fogo da alma quer desafiar os confins da vida; o espĆ­rito livre deseja planar ainda mais alto, sempre atingindo os cĆ©us. Como o fogo, o espĆ­rito aceso nĆ£o pode tolerar a mediocridade e a monotonia do “pavio” inanimado do materialismo. Sua paixĆ£o nĆ£o conhece limites quando anseia pelo que estĆ” alĆ©m.
Mas assim como pode ser a fonte de nossa maior forƧa, o fogo da alma, como qualquer fogo, tambĆ©m pode ser a causa de grande destruiĆ§Ć£o.
Aqui estĆ” a histĆ³ria de Nadav e Avihu, duas almas extraordinĆ”rias:
Quando o SantuĆ”rio sagrado foi terminado os filhos de Aharon, indivĆ­duos profundamente espirituais, foram atraĆ­dos para entrar no santuĆ”rio mais sagrado sobre a terra. Eles queriam sentir o ĆŖxtase do puro espĆ­rito do Templo. Na verdade, o comportamento dos dois filhos de Aharon nĆ£o foi um pecado; era um ato de grande santificaĆ§Ć£o, como MoshĆŖ diz a Aharon imediatamente apĆ³s a tragĆ©dia:
“Isso Ć© o que D'us falou, dizendo: ‘Eu serei santificado por aqueles que estĆ£o prĆ³ximos de Mim.’”

Os sĆ”bios explicam, MoshĆŖs disse: “Aharon, meu irmĆ£o, eu sabia que o SantuĆ”rio seria santificado por aqueles que eram amados e prĆ³ximos a D'us. Quando D'us disse: ‘Eu serei santificado por aqueles prĆ³ximos a Mim,’ eu penseique isso se referia a mim ou a vocĆŖ; agora vejo que eles – Nadav e Avihu – sĆ£o maiores que nĆ³s dois.”
Rabi Chaim ibn Attar (o Ohr Hachaim) explica, que a morte deles foi:
“Por Divino ‘beijo’ como aquele sentido pelos perfeitamente justos. Somente [o problema foi que] os justos morrem quando o “beijo” Divino se aproxima deles, enquanto eles morreram por terem se aproximado dele… Embora eles sentissem sua prĆ³pria morte, isso nĆ£o os impediu de se aproximarem [de D'us] em apego, alegria, deleite, companheirismo, amor, beijo e doƧura, a a tal ponto que suas almas saĆ­ram deles.”

A morte de Nadav e Avihu descrita na parashĆ” Shemini foi um resultado de seu profundo anseio por uma experiĆŖncia Divina. Seu erro foi que eles a iniciaram por si mesmos, e “egoisticamente” permitiram que o ĆŖxtase os consumisse. Seu pecado nĆ£o foi se aproximarem do Divino, mas que morreram ao fazĆŖ-lo. Num sentido, eles queriam tanto isso, que correram atĆ© o fogo e se queimaram no processo. Seus corpos nĆ£o puderam mais conter suas almas.
Assim a TorĆ” diz “eles chegaram perto de D'us e (com tanta paixĆ£o que) eles morreram.” Por que a TorĆ” acrescenta “e eles morreram” quando jĆ” tinha sido dito “apĆ³s a morte dos dois filhos de Aharon?” Embora seja saudĆ”vel se afastar de preocupaƧƵes materiais, no momento em que vocĆŖ se coloca no supremo ĆŖxtase da alma, deve voltar novamente ao trabalho que a alma deve fazer para transformar a existĆŖncia fĆ­sica. Nadav e Avihu atingiram o ĆŖxtase, mas nĆ£o o retorno. Este foi seu pecado e o motivo para sua morte. Eles “chegaram perto de D'us e morreram.” Eles permitiram que sua paixĆ£o espiritual superasse sua tarefa de transformar o mundo. Eles escaparam alĆ©m do mundo e alĆ©m da prĆ³pria vida.
Se sua motivaĆ§Ć£o era pura, estimulada pela fogosa paixĆ£o da alma, por que entĆ£o isso foi chamado de “um fogo estranho”?
Porque mesmo se sua intenĆ§Ć£o fosse boa, era motivada pelo seu desejo pessoal, embora um desejo espiritual, mas ainda definida pelos seus anseios subjetivos. Isso pode ter comeƧado por razƵes Divinas, mas eles permitiram que se tornasse seu prĆ³prio interesse pessoal, chegando ao ponto da intensidade que os destruiu, assim tornando o “fogo” num “fogo estranho”, que “D’us nĆ£o tinha ordenado.” Eles entraram em seus prĆ³prios termos, em seu prĆ³prio passo, pela prĆ³pria escolha – nĆ£o em termos de D'us.
E essa foi a razĆ£o pela qual eles realmente terminaram morrendo no processo. Porque o mesmo D'us que nos imbuiu com almas apaixonadas tambĆ©m nos ordenou a usar a paixĆ£o para nĆ£o expirar em ĆŖxtase,  escapar do universo, nĆ£o importa quĆ£o forte possa ser a escolha, mas a canalizar a paixĆ£o para baixo e transformar o mundo material no qual vivemos num lar Divino. Este Ć© o propĆ³sito do Templo: “constrĆ³i-me um santuĆ”rio (com materiais fĆ­sicos) e Eu descansarei entre vocĆŖs.”
Assim, o supremo teste das intenƧƵes dos filhos de Aharon era sua incapacidade de integrar a experiĆŖncia: se eles tivessem entrado pacientemente e humildemente em termos Divinos, eles teriam conseguido integrar a experiĆŖncia em suas vidas e voltar a santificar seu mundo. A integraĆ§Ć£o teria confirmado que eles nĆ£o estavam fazendo isso para si mesmos, mas pela causa, por D'us. O fato de que eles se permitiram ser consumidos pelo prĆ³prio fogo espiritual, demonstrou que esse era sua “prĆ³pria coisa”, nĆ£o a de D'us, um fogo estranho, nĆ£o ordenado.
“ApĆ³s a morte dos filhos de Aharon,” Aharon Ć© advertido a nĆ£o entrar no Santo dos Santos como seus filhos fizeram. Mas sim, “com isso deve Aharon entrar no local sagrado” – em reverĆŖncia, obediĆŖncia e auto-abnegaĆ§Ć£o. E dessa maneira ele poderia “fazer expiaĆ§Ć£o para si mesmo e para sua casa” no dia mais sagrado do ano, Yom Kipur, e pronunciar uma prece para o sustento de Israel – atos de preocupaĆ§Ć£o pelo mundo.
Em outras palavras, o fator determinante se o fogo da alma serĆ” uma forƧa construtiva ou destrutiva depende da motivaĆ§Ć£o da pessoa, como ela comeƧa sua jornada espiritual: se Ć© uma experiĆŖncia auto-indulgente, motivada basicamente por desejo e interesse pessoal, entĆ£o vocĆŖ nĆ£o deseja voltar de seu ĆŖxtase particular para as necessidades do mundo, e o fogo inevitavelmente irĆ” consumir vocĆŖ. Se, no entanto, Ć© motivado pela dedicaĆ§Ć£o altruĆ­sta e total rendiĆ§Ć£o ao Divino, entĆ£o dentro desse ĆŖxtase, o desejo de retornar e santificar o mundo sempre estarĆ” implĆ­cito, e o fogo elevarĆ” vocĆŖ e seu mundo a alturas exaltadas.
Na famosa histĆ³ria talmĆŗdica dos “quatro que entraram no jardim” (uma experiĆŖncia mĆ­stica) somente Rabi Akiva comeƧou a jornada com a atitude correta: ele “entrou em paz e (portanto) saiu em paz.” Como ele entrou com humildade, em obediĆŖncia Ć  vontade Divina e procurando unir os mundos mais elevados e mais baixos, por isso ele saiu em paz. Sua intenĆ§Ć£o de retornar estava implĆ­cita no inĆ­cio de sua jornada de ĆŖxtase religioso. Embora os outros trĆŖs – Ben Azzai, Ben Zoma e Acher – todos entrassem por outras razƵes, que determinavam como eles emergiram. Ben Azzai entrou procurando ĆŖxtase, nĆ£o retornou; portanto ele “olhou e morreu”. Ben Zona “olhou e foi abalado” (enlouqueceu). Acher “mutilou os planos” (i.e., tornou-se um apostata).
Somos informados sobre a histĆ³ria dos filhos de Aharon a fim de nos ensinar uma liĆ§Ć£o valiosa sobre nossas prĆ³prias experiĆŖncias de vida: cada um de nĆ³s contem uma alma poderosa, com fogo em seu interior. Cada um de nĆ³s irĆ”, a certa altura, encontrar oportunidades espirituais; momentos apaixonados que irĆ£o aumentar e acender nosso fogo, imbuindo transcendĆŖncia – a necessidade de conquistar alĆ©m da lida diĆ”ria. TranscendĆŖncia pode adotar muitas formas: espiritualidade, mĆŗsica, romance, viagem, ou sexualidade, para citar apenas algumas.
Como vocĆŖ age nessas horas – quando as chamas da sua alma estĆ£o acesas –irĆ” definir o destino de sua vida.
Isso explica por que a porĆ§Ć£o dessa semana Ć© conhecida pelo nome “depois” ou “depois da morte”. Por que dar um nome estranho Ć  porĆ§Ć£o da TorĆ” – “apĆ³s a morte”? Por que enfatizar a morte trĆ”gica deles?

A TorĆ” estĆ” nos dizendo que a “morte” dos dois filhos de Aharon – tanto a morte em si, como “apĆ³s a morte” – nos ensina uma liĆ§Ć£o vital, na verdade uma liĆ§Ć£o dupla:
1 – A busca e necessidade pela transcendĆŖncia, o anseio e a vontade por uma altura espiritual Ć© saudĆ”vel e um ingrediente necessĆ”rio na jornada humana. Todas as grandes conquistas do homem, seus atos nobres, seus amores mais profundos – vĆŖm do fogo apaixonado da alma.
2 – PorĆ©m, como ocorre com todas as coisas poderosas, deve ser tomado grande cuidado para que a experiĆŖncia espiritual nĆ£o “queime vocĆŖ totalmente”, mas seja integrada em sua vida.

O fogo de nossas almas, como qualquer fogo, pode ser a fonte de sustento (fogo saudĆ”vel), ou… um inferno (“fogo estranho”). O desafio Ć© grande. A escolha Ć© nossa. Aqui estĆ” a dupla liĆ§Ć£o positiva dos filhos de Aharon, ambas da sua morte e “apĆ³s a morte”.
A morte deles nos ensina como nĆ£o entrar no Santo dos Santos sem ser convidado, a nĆ£o entrar pela nossa iniciativa, a qualquer hora que escolhermos, a nĆ£o entrar como um resultado do nosso desejo pessoal; “apĆ³s a morte” nos ensina a como entrar – “com isso Aharon deve entrar no local sagrado” – com total humildade, com sensibilidade e acima de tudo, imergindo totalmente e se sublimando na experiĆŖncia.
Vamos agora voltar Ć  questĆ£o das drogas e Ć”lcool. O problema essencial em induzir uma altura (espiritual) atravĆ©s de substĆ¢ncias estranhas Ć© triplo: 1) Ɖ motivado pelo desejo pessoal,  portanto 2) vocĆŖ nĆ£o adquiriu seu direito de entrada, e 3) nĆ£o serĆ” integrado na vida diĆ”ria. SerĆ” uma fuga.
E esta Ć© precisamente a razĆ£o pela qual substĆ¢ncias estranhas sĆ£o viciantes e assumem controle da sua vida. Como implicam seus nomes, elas e os estados alterados de consciĆŖncia que induzem sĆ£o substancias estranhas – “um fogo estranho” – que nĆ£o pertence a vocĆŖ. Por um momento breve, mas temporĆ”rio, elas tĆŖm o poder de transportar vocĆŖ a outro lugar. Mas vocĆŖ nĆ£o pertence ali e nĆ£o conquistou seu caminho. NĆ£o tendo pago sua taxa, o “fogo estranho” vai voltar para cobrar a dĆ­vida; vai assumir controle da sua vida atĆ© consumir vocĆŖ.
Em contraste, quando vocĆŖ adquire seu direito – atravĆ©s do trabalho Ć”rduo, altruĆ­sta da anulaĆ§Ć£o do ego – entĆ£o a espiritualidade emergente leva vocĆŖ a grandes alturas.
A fĆ³rmula Ć© assim: experiĆŖncias superficiais sĆ£o exatamente aquilo – experiĆŖncias que sĆ£o sentidas com suas ferramentas sensoriais. ExperiĆŖncias reais – amor, verdade, saĆŗde, felicidade, sexualidade, espiritualidade – sĆ£o exatamente o oposto: assim que vocĆŖ as sente, assim que se torna cĆ“nscio de si mesmo, suas necessidades e sua busca – vocĆŖ perde a capacidade de “possuir” a experiĆŖncia.

Por quĆŖ? Porque uma experiĆŖncia real nĆ£o Ć© uma experiĆŖncia; Ć© um estado de ser. SaĆŗde por exemplo nĆ£o Ć© um verbo, mas um substantivo. NĆ£o tem sensaĆ§Ć£o. Apenas Ć©. O mesmo com amor verdadeiro: o amor pode se manifestar nos sentidos e ser expresso atravĆ©s dos sentidos: mas o amor em si mesmo nĆ£o Ć© uma aĆ§Ć£o, mas uma condiĆ§Ć£o, como Ć© a verdade e todas as outras realidades dentro e fora.
Espiritualidade, a altura espiritual, Ć© um estado permanente do ser que estĆ” abaixo da superfĆ­cie da existĆŖncia. O “contĆŖiner” pode ser artificialmente forƧado a abrir com um “fogo estranho” (substĆ¢ncias estranhas), mas apenas temporariamente. Nenhuma aĆ§Ć£o Ćŗnica pode ser feita para acessar as verdades espirituais internas; nenhuma magia pode abrir sua alma. Quando vocĆŖ dedica sua vida altruisticamente a uma causa mais elevada, quando transcende seu ego e manda embora as forƧas do auto-interesse material que o impedem de acessar sua alma, entĆ£o o espiritual vai emergir. A palavra operativa Ć© emergir. VocĆŖ nĆ£o cria isso, vocĆŖ nĆ£o induz isso, nĆ£o importa isso; vocĆŖ elimina as ervas daninhas e a flor surge. Quando vocĆŖ tenta assumir controle, perde o controle. Quando deixa ir, comeƧa a ganhar controle. Quanto tenta conter, vocĆŖ perde. Quando deixa livre, se torna seu.
O fogo da alma se manifesta em muitas maneiras. Talvez sua expressĆ£o mais profunda esteja nos fogos do amor e da sexualidade. Como um fogo, desejo ardente pode ser a raiz de nossos atos mais nobres, mas tambĆ©m a fonte de nosso comportamento mais decadente. Sexualidade como anseio egoĆ­sta, separado da intimidade, nos leva Ć s maiores profundezas; infundido com santidade, intimidade, compromisso e integraĆ§Ć£o, nos eleva Ć s nossas maiores alturas, infundindo-nos com o poder de criar – permitindo que entremos no “Santo dos Santos” perto de D'us.
Mas isso Ć© paradoxalmente possĆ­vel somente quando nossos desejos ardentes nĆ£o sĆ£o impulsionados apenas por necessidades humanas. Quando sĆ£o, a mesma forƧa Ć© transformada num vĆ­cio destrutivo.

Todos os vĆ­cios sĆ£o resultado de um profundo vĆ”cuo exigindo atenĆ§Ć£o. A busca desesperada pela paixĆ£o vai procurar um resultado. Se a sede espiritual nĆ£o for saciada de maneira sadia, vai exigir nutriĆ§Ć£o a todos os custos – mesmo que signifique mĆ©todos auto-destrutivos.
O vĆ­cio pela prĆ³pria natureza significa profunda dependĆŖncia. Por que alguĆ©m iria se tornar viciado em algo. Por que irĆ­amos precisar de algo tĆ£o mau que nos tornamos viciados naquilo? Sim, pode ser devido Ć  substĆ¢ncia em si. Algumas substĆ¢ncias sĆ£o quimicamente viciantes; elas tĆŖm o poder de estimular e alterar algumas quĆ­micas no cĆ©rebro que criam um anseio compulsivo e dependĆŖncia incontrolĆ”vel daquela substĆ¢ncia. Mas isso ainda nĆ£o explica por que um indivĆ­duo especĆ­fico se permite ficar viciado. Que necessidade essa substĆ¢ncia induziu para um estado alterado; que vĆ”cuo estĆ” preenchendo?
O vĆ­cio demonstra duas coisas juntas: uma fome profunda, mas a fome estĆ” sendo saciada com uma forƧa fora de si mesmo, engaiolando vocĆŖ, matando vocĆŖ. A soluĆ§Ć£o Ć© nĆ£o eliminar a necessidade (tornando-se um recipiente passivo) mas aliviar suas dores alimentando-a com a rendiĆ§Ć£o ao Divino.
O supremo alĆ­vio da profunda tensĆ£o da alma Ć© bitul – anulaĆ§Ć£o, uma humilde submissĆ£o ao mundo espiritual. Quanto maior a fome e a paixĆ£o da alma, maior sua necessidade por altruĆ­smo.
A histĆ³ria dos filhos de Aharon nos ensina que o estado espiritual preenche a necessidade humana pela transcendĆŖncia. Mas esse saudĆ”vel nĆ£o pode ser preenchido em maneiras nĆ£o saudĆ”veis, servida por ferramentas prejudiciais; o desejo pode ser puro, enquanto o objetivo do desejo pode nĆ£o ser, transformando a chama numa armadilha.
Dos filhos de Aharon aprendemos por que a TorĆ” rejeita profundamente qualquer estado induzido de consciĆŖncia alterada. AlĆ©m das Ć³bvias questƵes de saĆŗde, vicio e concordar com a lei – todas preocupaƧƵes fundamentais na TorĆ” – o mero fato de que alguĆ©m se volta a um “fogo estranho” para acessar espiritualidade (mesmo se a experiĆŖncia foi genuĆ­na em algumas formas) reflete as distorƧƵes acima mencionadas.
Um anseio dirigido por auto-interesse, nĆ£o conquistado, escapista e nĆ£o-integrante.
Mesmo quando usar mĆ©todos sadios e naturais e meios para atingir alturas espirituais, a chave estĆ” em sua verdadeira atitude e anseio: se a transcendĆŖncia se torna outra extensĆ£o de si mesmo, e Ć© levada pela sua necessidade ou desejo de subir, entĆ£o mesmo se vocĆŖ usar mĆ©todos saudĆ”veis, a suprema transcendĆŖncia irĆ” enganar vocĆŖ. Somente quando vocĆŖ percebe que precisa se livrar – se livrar dos seus anseios, necessidades e atĆ© fome – entĆ£o a altura espiritual vai emergir. E entĆ£o, serĆ” tambĆ©m uma experiĆŖncia integrante em vez de uma escapada. Vai abrir vocĆŖ para a liberdade espiritual, em vez de se tornar algo viciante.

O ĆŖxtase que Ć© dirigido pela polĆ­tica humana nĆ£o Ć© ĆŖxtase; etĆ©reo talvez, mas ainda feito pelo homem. A espiritualidade em termos humanos, nĆ£o em termos espirituais.
O fogo da alma Ć© nossa maior conquista. A paixĆ£o que arde no espĆ­rito nĆ£o afetado pode superar qualquer desafio. PorĆ©m, nosso sucesso em domar essas chamas poderosas estĆ” em proporĆ§Ć£o direta Ć  nossa humildade e altruĆ­smo em apreciĆ”-las. E protegendo e nutrindo cuidadosamente essas chamas.

A pergunta que devemos sempre fazer Ć© dupla: Meus fogos estĆ£o ardendo?
O que farei com esses fogos – vou ser indulgente com eles ou irei permitir que me elevem e ao mundo ao redor para locais mais elevados?