O sangue é vida
«E não comereis sangue, de ave ou de outro animal, em nenhuma das vossas moradas. Toda alma que comer sangue será cortada do seu povo.» (Levítico 7, 26-27)
A Torá destaca várias vezes nesta parashá e noutros capítulos da Torá a proibição de comer o sangue dos animais. A repetição deste preceito reforça a importância que o judaísmo lhe dá.
Esta é uma das proibições que devem ser respeitadas por toda a Humanidade, judeus e não-judeus, já que aparece na Torá dentro do contexto dos sete preceitos de Noé.
O consumo de sangue foi explicado em diferentes gerações como uma medida higiénica e noutras como um protesto contra as práticas idólatras. Nos nossos dias, é possível explicar o sentido da proibição de comer sangue como um meio educativo utilizado pela Torá para nos ensinar os valores do respeito pelos direitos de todos os seres vivos.
Segundo a Torá, o assassinato representa a máxima ameaça à Humanidade, e o facto de comer a carne com o sangue poderia levar o Homem a perder o respeito pela vida e cometer assassinatos.
Desde Génesis aprendemos que ao princípio De’s criou o Homem como um ser vegetariano. Só depois do Dilúvio, no tempo de Noé, foi concedida ao Homem a possibilidade de comer carne. No entanto, isto poderia dar a sugestão ao Homem de que a vida do seu semelhante não é assim tão importante. Por isso proibiram-se o assassinato e o suicídio.
A Torá insinua, nesta parashá e em outras, afirmações que são aceites nos nossos dias pelas pessoas vegetarianas, no sentido de que matar animais para comer leva à diminuição da sensibilidade do Homem face a atentados contra a vida humana. Por isso, a Torá não se contentou com proibir o assassinato; a Torá quis infundir no Homem a rejeição do sangue.
A Torá determinou que o sangue é vida e por isso é proibido ingeri-lo. Só é permitido comer carne se o abate for feito da maneira estabelecida pela lei, e depois de se ter extraído todo o sangue. A Halachá ensina-nos como extrair todo o sangue do animal através da salga ou do assado.
Pareceria que as proibições da Torá em relação ao sangue deixaram profundas marcas no povo judeu, que ficou muito impressionado pelo facto de que, apesar de ser permitido comer carne, se deve ser extremamente cuidadoso no que diz respeito ao sangue. Por isso não nos deve surpreender a típica rejeição que os judeus sentem face à guerra ou ao assassinato, já que estes constituem uma consequência direta da proibição bíblica de ingerir sangue.
A preocupação perante a eventual perda de valor da vida humana encontra-se presente noutra lei relacionada com o sangue. Depois de tirar a vida a um animal através da shechitá, depois de derramar o sangue do animal na terra, deve-se cobrir o sangue com terra, para o ocultar.
Esta lei limita-se ao caso do abate de aves e não de gado, o que se relaciona com o facto de que na antiguidade era necessário caçar as aves, e a caça obriga o Homem a comportar-se de uma maneira mais cruel do que é necessário para abater o animal. Por isso, para que o caçador se possa livrar dos sentimentos de culpa e para lhe devolver o seu sentido de humanidade, a Torá ordena-lhe efetuar esta ação especial: cobrir o sangue depois do abate.
O rabino Abraham Itzjak HaCohen Kuk expressa nos seus textos uma visão muito interessante sobre o assunto: “O sentimento de vergonha é o começo do arrependimento. Cobre o sangue! Afasta a tua vergonha! Estes gestos darão frutos com o tempo, e assim será levada a cabo a educação das gerações vindouras. O protesto mudo transformar-se-á, algum dia, depois de gerações e gerações terem comido carne guardando as regulamentações respeitantes à degolação, ao exame do animal, à salga… É uma chamada irresistível que será finalmente compreendida. As prescrições referentes à degolação ritual, parte das quais têm por objetivo diminuir o sofrimento do animal, tornam-nos conscientes de que estamos a lidar com um ser vivo, não com um autómato inanimado e abandonado.”
O rabino Kuk apresenta-nos uma visão ideal e muito utópica do consumo de carne e de sangue pelo Homem, mas ainda assim ensina-nos a definir a relação que se deve criar entre o ser humano e o resto dos seres vivos do mundo.