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Notas sobre o judaísmo em Clarice Lispector

Notas sobre o judaísmo em Clarice LispectorRafael Bán Jacobsen
(Texto originalmente publicado na revista de estudos judaicos WebMosaica, v. 8, n. 1, jan-jun 2016)

Clarice Lispector (Chechelnyk, 10 de dezembro de 1920 – Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977) é uma das mais lidas, comentadas e estudadas escritoras da literatura em língua portuguesa. Curiosamente, era ucraniana de nascimento e judia, mas, sobretudo, brasileira – por sua escolha e vontade.
Uma coletânea de todos os contos de Clarice Lispector, lançada em julho de 2015 nos Estados Unidos com o título The complete stories, figurou na lista dos 100 melhores livros de 2015 feita pelo jornal The New York Times (NYT, 2015). Essa obra, editada por Benjamin Moser, biógrafo da escritora, foi publicada no Brasil em 2016, reunindo, pela primeira vez em português, o completo panorama da obra de Clarice em narrativa curta.
Em sua resenha dessa coletânea, o The New York Times considerou que “a brasileira foi uma das verdadeiras [vozes] autênticas da literatura latino-americana” e que “há um sopro de loucura na ficção de Clarice Lispector” (RAFFERTY, 2015).
Entre tantos enfoques possíveis para uma obra tão plurifacetada, há um aspecto que ainda merece análise mais aprofundada, um viés que pode ser sintetizado na pergunta: o que há de judaico na obra de Clarice Lispector?
Teóricos e críticos literários adotam posições conflitantes em torno dessa questão. Há os que promovem verdadeira arqueologia exegética dos textos clariceanos para trazer à luz algo de judaísmo; há os que descartam qualquer tentativa nesse sentido, como advogando que a poética da autora nada deveria a tal tradição; entre esses dois extremos, uma miríade de posições possíveis. Em entrevista, indagado sobre a pouca importância dada pela crítica brasileira à “judeidade” de Clarice e sobre a escolha feita pela autora de não incluir referências abertas à tradição judaica em sua obra, Benjamin Moser observou:
Embora já houvesse certos críticos que se interessaram pela ‘questão judaica’ na obra da Clarice, há um outro lado, muito forte, que insiste na sua “brasilidade”, como se fosse preciso escolher entre ser judia e ser brasileira. Isto vem, talvez, de certo “instinto de nacionalidade” brasileira, na frase de Machado de Assis, mas também porque ela justamente não é, nos seus escritos, explicitamente judia. Mas este lado também é muito judaico. Muitos dos grandes escritores judeus não falam explicitamente, ou só raras vezes, do judaísmo. Pense em Proust ou em Kafka. (VAITSMAN, 2009)
De fato, não é tarefa simples chegar ao influxo judaico nos livros de Clarice. Nas ocasiões em que falava abertamente sobre sua relação com o judaísmo, ela própria parecia buscar desvencilhar-se dele. Por exemplo, em 1976, em entrevista a Edilberto Coutinho, afirmou: “Sou judia, você sabe. Mas não acredito nessa besteira de judeu ser o povo eleito de Deus. Não é coisa nenhuma. Os alemães é que devem ser, porque fizeram o que fizeram. Que grande eleição foi essa, para os judeus? Eu, enfim, sou brasileira, pronto e ponto.” (COUTINHO, 1980, p. 168)
É evidente que as narrativas de Clarice Lispector não apresentam personagens judeus ou elementos da tradição judaica, seja ela considerada em sua vertente tradicional-popular (com a culinária, as vestimentas, as lendas e superstições, os usos e costumes no lar) ou religiosa (por meio das rezas, dos rituais e das festividades). Todavia, algumas interfaces podem ser estabelecidas entre a literatura de Clarice e a herança cultural judaica. Visando a motivar o debate acerca desse tema, o presente artigo apresenta três delas.
1.
Um primeiro ponto a considerar é a influência que a filosofia de Baruch de Spinoza (24 de novembro de 1632, Amsterdã – 21 de fevereiro de 1677, Haia) teve sobre a escritora, desde a juventude. Benjamin Moser nota que, na biblioteca da escritora, hoje abrigada no Instituto Moreira Sales, no Rio de Janeiro, há uma coletânea francesa de textos de Spinoza, com as páginas repletas de anotações datadas de 1941 (MOSER, 2009, p. 109). Nessa época, Clarice tinha 21 anos e estava prestes a iniciar a escrita de Perto do coração selvagem, seu romance de estreia. Excomungado pela Sinagoga Portuguesa de Amsterdã em 1656 por causa de suas ideias tidas como heréticas, o holandês era um racionalista que buscava estabelecer os princípios do seu pensamento à maneira dos geômetras, isto é, por demonstrações lógicas, teoremísticas, obtidas a partir de uns poucos postulados; Clarice, ao contrário, operava sua potência criativa no limite do inconsciente, invocando, com frequência, estados epifânicos em que a impressão sobrepuja a razão.
Guardada essa diferença (que é derivada, essencialmente, da diferença entre filosofia e arte), encontram-se diversos ecos do pensamento de Spinoza na obra de Clarice, como a equiparação de Deus à natureza, a imortalidade da alma e a inexistência de divisão meridiana entre bem e mal. O primeiro desses temas é especialmente marcado na ficção de Clarice e nos tratados de Spinoza: a negação do “Deus humanizado das religiões” (LISPECTOR, 1963, p. 131), um Deus que interfere deliberadamente nos assuntos humanos. “A ideia de um Deus consciente é terrivelmente insatisfatória”, ela escreveu (LISPECTOR, 1963, p. 131). Em sua literatura, Deus surge nas entrelinhas da realidade, deixando-se notar em rasgos inesperados – e muitas vezes escatológicos –, como no corpo de um rato, “um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto” (LISPECTOR, 1998b, p. 42), no conto Perdoando Deus. Esse mote perpassa toda a produção da autora, até A hora da estrela, o último livro que lançou, no qual ela sentencia “Deus é o mundo” (LISPECTOR, 1999, p. 11), em citação quase fiel do famoso mote de Spinoza, “Deus sive natura” – “Deus, ou seja, a natureza”, articulado de diferentes formas em vários trechos de sua obra Ética demonstrada à maneira dos geômetras, como no Corolário I da Proposição XIV da Parte I (SPINOZA, 2009, pp. 165-166) ou na Demonstração da proposição IV da Parte IV (SPINOZA, 2009, p. 347).
Clarice, porém, posicionava-se de modo crítico perante o seu mestre, divergindo em pontos essenciais. Ele defendia a faculdade da razão como sendo elemento diferenciador do homem em relação aos outros animais. “Nada existe mais útil ao homem para conservar o seu ser e gozar da vida racional do que o homem que é conduzido pela razão”, escreveu o filósofo no Apêndice IX da Parte IV de sua Ética (SPINOZA, 2009, p. 399). Em consonância, no Escólio da Proposição XXXVII da Parte IV, ensina-nos a necessidade de nos “unirmos aos homens e não aos animais ou às coisas, cuja natureza é diferente da natureza dos homens” (SPINOZA, 2009, p. 369). Nesse particular aspecto, Clarice discordava, reconhecendo que a essência humana é, no cerne, irracional, indistinta da animalidade, e que, por isso, ambas eram passíveis de fusão. Com efeito, a noção de animalidade como parte irrenunciável da essência humana insinua-se em vários escritos da autora, como, por exemplo, no final da crônica Morte de uma baleia:
Sou um feroz entre os ferozes seres humanos – nós, os macacos de nós mesmos, nós, os macacos que idealizaram tornarem-se homens, e esta é também a nossa grandeza. Nunca atingiremos em nós o ser humano: a busca e o esforço serão permanentes. E quem atinge o quase impossível estágio de Ser Humano, é justo que seja santificado. Porque desistir de nossa animalidade é um sacrifício. (LISPECTOR, 1984, p. 127)
A afinidade de Clarice com a animalidade e o seu desejo de ser bicho reverberam em trecho de sua crônica Bichos (conclusão), na qual ela escreve: “Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia. Eles às vezes clamam de longe muitas gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. É o chamado.” (LISPECTOR, 1984, p. 363) O pináculo dessa tese clariceana (e antispinozeana) dá-se em A paixão segundo G. H., na famosa passagem em que a protagonista come uma barata e assim catalisa um vórtice revelações. O poder cosmogônico de incorporar a “matéria neutra” da barata à sua própria carne só é possível para a personagem porque é poder que emana de um fragoroso paradoxo: a tensão entre a virtude racional do humano e a impureza desestruturante do inseto.
2.
Eis aí um segundo ponto de inspiração judaica na obra de Clarice: a invocação de passagens do Pentateuco e até mesmo de textos não-canônicos da Bíblia. A paixão segundo G. H. estrutura-se sobre a pedra a angular das interdições religiosas, em particular sobre a divisão estabelecida entre animais puros e impuros no Capítulo 11 do Livro de Levítico. Assim escreveu Clarice:
Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos. Por que foi que a Bíblia se ocupou tanto dos imundos, e fez uma lista dos animais imundos e proibidos? por que se, como os outros, também eles haviam sido criados? E por que o imundo era proibido? Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.
Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.
E tão imundo estava eu, naquele meu súbito conhecimento indireto de mim, que abri a boca para pedir socorro. Eles dizem tudo, a Bíblia, eles dizem tudo – mas se eu entender o que eles dizem, eles mesmos me chamarão de enlouquecida. Pessoas iguais a mim haviam dito, no entanto entendê-las seria a minha derrocada.
“Mas não comereis das impuras: quais são a águia, e o grifo, e o esmerilhão.” E nem a coruja, e nem o cisne, e nem o morcego, nem a cegonha, e todo o gênero de corvos.
Eu estava sabendo que o animal imundo da Bíblia é proibido porque o imundo é a raiz – pois há coisas criadas que nunca se enfeitaram, e conservaram-se iguais ao momento em que foram criadas, e somente elas continuaram a ser a raiz ainda toda completa. E porque são a raiz é que não se podia comê-las, o fruto do bem e do mal – comer a matéria viva me expulsaria de um paraíso de adornos, e me levaria para sempre a andar com um cajado pelo deserto. Muitos foram os que andaram com um cajado pelo deserto.
Pior – me levaria a ver que o deserto também é vivo e tem umidade, e a ver que tudo está vivo e é feito do mesmo.
Para construir uma alma possível – uma alma cuja cabeça não devore a própria cauda – a lei manda que só se fique com o que é disfarçadamente vivo. E a lei manda que, quem comer do imundo, que o coma sem saber. Pois quem comer do imundo sabendo que é imundo – também saberá que o imundo não é imundo. É isso?
“E tudo o que anda de rastos e tem asas será impuro, e não se comerá.”
Abri a boca espantada: era para pedir um socorro. Por quê? por que não queria eu me tornar imunda quanto a barata? Que ideal me prendia ao sentimento de uma ideia? por que não me tornaria eu imunda, exatamente como eu toda me descobria? O que temia eu? ficar imunda de quê? (LISPECTOR, 1998a, pp. 71-73)
A hora da estrela é outro exemplo que ilustra a conexão da obra de Clarice com textos da tradição religiosa hebraica. Um primeiro indício é o nome da protagonista – Macabéa –, apontando para referência ao Livro dos Macabeus, dois volumes não-canônicos da Bíblia, considerados apócrifos pelos judeus. Narram as lutas dos judeus contra os reis selêucidas pela libertação religiosa e política da nação, opondo-se aos valores do helenismo. Talvez a mensagem central do Livro dos Macabeus seja que um povo, por mais fraco que pareça, nunca deve se dobrar perante a prepotência dos poderosos – um libelo contra a opressão, portanto. Macabéa, migrante nordestina, tenta encontrar sua libertação no Rio de Janeiro; contudo, ela, que não sabe gritar, acaba sucumbindo perante as forças que a esmagam: a pobreza, a desilusão amorosa, a doença e, por fim, o destino. Ao contrário dos macabeus, não há redenção possível para Macabéa no reino deste mundo.
3.  
Resta um terceiro aspecto a ser abordado quando se persegue uma leitura judaica da obra de Clarice. Trata-se da questão quase metafísica do poder das palavras e dos limites da linguagem.
Em sua crônica As três experiências, Clarice escreveu: “A palavra é meu domínio sobre o mundo.” (LISPECTOR, 1984, p. 101) Lendo a frase de modo isolado, pode parecer que a autora acredita que a linguagem é algo sem limites, que tudo pode ser dito, bastando, para isso, com mais ou menos esforço, manobrar a linguagem e, quiçá, com ela fazer alguns malabarismos. Porém, o pensamento de Clarice situa-se no polo diametralmente oposto.
Berta Waldman apresenta argumentos pertinentes ao tema:
Há nele [no texto de Clarice] uma busca reiterada (da coisa? do real? do impalpável? do impronunciável? de Deus?) que conduz a linguagem a seus limites expressivos, atestando, contra a presunção do entendimento, que há um resto que não é designável, nem representável. Neste sentido, a escritura segundo Clarice Lispector permanece, talvez inconscientemente, fiel à interdição bíblica judaica de delimitar o que não tem limite, de representar o absoluto. Um dos grandes “temas” da obra da escritora é, a meu ver, o movimento de sua linguagem, análogo àquele próprio da tradição dos comentários exegéticos presos ao Pentateuco, que remetem ao desejo de se achegar à divindade, tarefa de antemão fadada ao fracasso, dada a particularidade do Deus judaico de ser uma inscrição na linguagem, onde deve ser buscado, mas não apreendido, obrigando a retornar sempre. (WALDMAN, 2014, p. 14)
Clarice é sabedora dos limites da linguagem: assim como Deus, sua integridade está inacessível aos olhos humanos. Em certo sentido, a escritora compartilha a concepção do filósofo Ludwig Wittgenstein (Viena, 26 de abril de 1889 – Cambridge, 29 de abril de 1951). Wittgenstein, aliás, apesar de não ser filho de mãe judia, tinha ascendência judaica pelo ramo paterno e, muitas vezes, referia a si próprio como sendo judeu, chegando a declarar, certa feita, que seu pensamento era “100% hebraico” (DRURY, 1984, p. 161).
Um dos trabalhos mais conhecidos de Wittgenstein é o Tractatus Logico-Philosophicus, que se constitui de proposições numeradas e agrupadas em sete conjuntos, versando sobre os campos de atuação da filosofia, sobre as fronteiras do pensamento e, consequentemente, da linguagem. Na estrutura do livro, a Proposição 1.2 pertence ao primeiro conjunto e é um comentário sobre a Proposição 1; a proposição 1.21 é sobre a Proposição 1.2; e assim por diante. Entre as Proposições 4.113 e 4.116, ao defender a tese de que cabe à filosofia delimitar a esfera em que operam as ciências, Wittgenstein afirma, de início, que é preciso delimitar o pensável e o impensável, de modo que o impensável seja circunscrito a partir do que é pensável; por extensão, afirma que o que não pode ser dito se estabelece quando o que pode ser dito é dito claramente. Coroando o raciocínio, escreveu o filósofo: “Tudo o que pode ser pensado, pode ser pensado claramente. Tudo o que pode ser dito, pode ser dito claramente.” (WITTGENSTEIN, 1922, p. 45) O Tractatus deságua no sétimo e último conjunto de proposições, que contém apenas uma afirmativa: “O que não se pode falar, deve-se calar.” (WITTGENSTEIN, 1922, p. 90) Sendo a frase final do texto, não há comentários sobre ela. Contudo, a obra literária de Clarice pode ser considerada um caudaloso e idiossincrático comentário sobre essa proposição.
Para a Clarice, o mais recôndito segredo da palavra é a sede que ela representa, sede por antagonizar o vazio e o indizível, desespero para traduzir o que, no mais das vezes, esfuma-se muito além do físico, como tão bem expressou a escritora em Água Viva:
Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu adivinho. Se houver força. Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és. (LISPECTOR, 1973, p. 34)
No livro Os judeus e as palavras, Amós Oz e sua filha, a historiadora Fania Oz-Salzberger, revisitam este tema tão antigo quanto o próprio judaísmo: o fascínio e o poder das palavras entre o povo hebreu. Na Bíblia Hebraica, observam os autores, os vocábulos correspondentes a “falar” e “dizer” aparecem mais de seis mil vezes, enquanto os equivalentes a “fazer” comparecem apenas duas mil vezes, evidenciando a centralidade que as palavras sempre tiveram, desde as raízes, na construção da identidade judaica, relegando a ação a um segundo plano (OZ & OZ-SALZBERGER, 2015, p. 220). Clarice Lispector faz jus a essa herança: em sua prosa intimista, em que a ação é o que há de menos importante, venera a palavra, seu poder e sua fraqueza, entrega-se ao mistério do não pode compreender. Tudo isso resplandece no trecho final de A paixão segundo G. H.:
O mundo independia de mim – esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. (LISPECTOR, 1998a, p. 179)
Nada mais judaico. Enquanto Wittgenstein alerta para o dever de calar o que não se pode falar, Clarice não abdica da palavra, articulando mesmo o que não consegue dizer ou entender – eis um ato da mais pura chutzpá, a velha “petulância judaica”, que aqui se confunde com a ousadia imprescindível ao ato da criação (seja literária ou de outra natureza).
Considerações finais
Ao contrário do que se verifica na obra de outros escritores judeus que se estabeleceram no Brasil na primeira metade do século XX, como Samuel Rawet e Elisa Lispector, a produção de Clarice Lispector não abarca elementos da cultura judaica, seja esta considerada em sua dimensão religiosa ou folclórica, e tampouco ficcionaliza as experiências vividas por esses imigrantes na sua travessia da Europa ao Brasil e na adaptação à nova terra. Por isso, pode parecer, à primeira vista, que a literatura de Clarice seja desconectada de qualquer tipo de “judeidade”.
Contudo, neste trabalho, foram apresentadas três possíveis interfaces da obra literária de Clarice Lispector com a cultura judaica lato sensu. Em particular, foram discutidas a influência do pensamento de Baruch Spinoza nos escritos da autora, a invocação de temas do Pentateuco e de textos bíblicos não-canônicos, bem como a questão quase metafísica do poder das palavras e dos limites da linguagem (que leva a uma confluência com aspectos da filosofia de Wittgenstein).
À luz de tais interfaces, é possível concluir que a literatura de Clarice não prescinde da herança cultural judaica como fonte; porém, essa herança não se manifesta de forma explícita, mas sim na sutileza com que a autora lida com diversos paradoxos em sua obra (humano e animal, puro e impuro, dizível e indizível), entretecendo-os em uma urdidura que só pode ser compreendida dentro de um arcabouço filosófico eminentemente judaico.

REFERÊNCIAS
COUTINHO, E. Uma mulher chamada Clarice Lispector. In: Criaturas de papel: temas de literatura & sexo & folclore & carnaval & televisão & outros temas da vida. Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1980, pp. 165-170.
DRURY, M. O’C. Conversations with Wittgenstein. In: Recollections of Wittgenstein. Nova York: Oxford University Press, 1984.
LISPECTOR, C. Perto do coração selvagem. São Paulo: Francisco Alves Editora, 1963.
_______. Água Viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973.
_______. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
_______. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a.
_______. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.
_______. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
MOSER, B. Why this world: a biography of Clarice Lispector. Oxford: Oxford University Press, 2009.
VAITSMAN, H. Aspectos judaicos de Clarice Lispector. Museublog, Rio de Janeiro, 21 out. 2009. Disponível em: http://museujudaicorj.blogspot.com.br/2009/10/aspectos-judaicos-de-clarice-lispector.html. Acesso em: 05 nov. 2016.
NYT. 100 Notable Books of 2015. The New York Times, Nova York, 6 dez. 2015. Sunday Book Review, p. 26.
OZ, A.; OZ-SALZBERGER, F. Os judeus e as palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
RAFFERTY. T. The Complete Stories. The New York Times, Nova York, 2 ago. 2015. Sunday Book Review, p. 01.
SPINOZA, B. Ética demonstrada à maneira dos geômetras.  Coleção Os pensadores. Trad. J. de Carvalho, J. Ferreira Gomes e A. Simões. São Paulo: Nova Cultural, 2000, pp. 141-436.
WALDMAN, B. Clarice e Elisa Lispector: caminhos divergentes. WebMosaica, Porto Alegre, v. 6, n. 1, pp. 10-17, jan-jun 2014.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. Londres: Kegan Paul, Trench, Trubner & Co., Nova York: Harcourt, Brace & Co., 1922.
 (Texto originalmente publicado na revista de estudos judaicos WebMosaica, v. 8, n. 1, jan-jun 2016)

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