O tribunal rabínico de Israel decidiu que messiânicos não podem pedir
registro de casamento como judeus. Assim, se judeus de nascimento se
converterem ao messianismo serão considerados cristãos e deverão buscar um
casamento cristão. Em Israel, não existe casamento civil. Espero que essa
notícia venha a esclarecer algo que brasileiros cristãos não compreendem:
messianismo não é judaísmo, nunca será.
Escrever sobre casamento é fazer uma viagem na história. Cada sociedade
esculpiu um ou mais modelos institucionais para regulamentar a relação
conjugal.
Durante séculos, o casamento religioso – que separava a união sagrada da
união profana – foi o único modelo de oficialização possível nas sociedades
civilizadas. Com o passar do tempo, e a criação do Estado laico, o conceito de
união pura ou impura deu lugar à noção de legal ou ilegal. O pensamento havia
mudado: deixava-se de reconhecer as relações conjugais perante Deus, para
legalizá-las perante os homens.
Nas democracias modernas, a separação entre o casamento religioso e o
casamento civil, foi um importante passo no reconhecimento de relações conjugais
anteriormente proibidas (“pecadoras”) como o casamento inter-racial, o
casamento inter-religioso e o casamento homossexual.
A conquista mais importante é – sem dúvida – a liberdade na escolha do
parceiro conjugal. E além disso, a garantia de todos os benefícios e
consequências legais que surgem com o reconhecimento do Estado sobre estas
relações, como pensões, herança fiscal, imposto de renda, seguro social,
benefícios de saúde, imigração, propriedade conjunta, visitação na prisão,
adoção, fertilização in vitro, barriga de aluguel, etc.
No mundo hoje, temos três vertentes: a) países (em sua maioria
teocráticos) que determinam a oficialização exclusiva do casamento através do
viés religioso; b) aqueles que determinaram a secularização integral deste
instituto; c) e aqueles – como o Brasil – que funciona de modo misto: além do
reconhecimento estatal, permite-se que o registro das cerimônias religiosas
tenham efeitos na vida civil. O rabino, padre, sacerdote etc…., preenchido
alguns pré-requisitos, transformam em funcionários públicos com poderes para o
registro estatal do pacto conjugal.
Em Israel, o tema é complexo e muito interessante.
Em 1947, a liderança judaica composta por ortodoxos e laicos, chegaram a
um acordo que determinava que o futuro Estado deveria fazer todo o possível
para “impedir a divisão do povo judeu em dois”. Este acordo, mais
tarde denominado como “acordo do Status quo” foi o responsável por manter os
tribunais religiosos que já existiam nesta região desde a época do Império
Turco-Otomano.
Os Tribunais religiosos são instituições que receberam autoridade
jurisdicional absoluta do Estado para regulamentar os assuntos de status
pessoal tais como: casamento, divórcio, herança, tutela, adoção, etc..
Como vocês podem perceber, não são temas supérfluos. Questões de foro íntimo
deverão ser tratados sob leis religiosas, dentro de tribunais religiosos, com
juízes eleitos de forma distinta dos juízes em tribunais laicos.
Dentro do sistema legal israelense, cada comunidade religiosa
reconhecida pelo Estado: judaísmo, islamismo, cristianismo e drusos possuem o
seu próprio tribunal religioso. No caso específico dos tribunais judaicos,
os Dayanim (Juízes de tribunais rabínicos) deverão basear seus
julgamentos de acordo com a Halachá (lei religiosa ortodoxa).
Vale a pena ressaltar que os tribunais rabínicos não são superiores aos
tribunais laicos. Cada tribunal (laico ou religioso) possui a competência de
julgar os temas que a lei lhe determina.
A questão específica do casamento judeu foi normatizada em 1953 com a
promulgação da “Lei do julgamento nos Tribunais Rabínicos (casamento e
separação)” [ref] חוק שיפוט בתי דין
רבניים (נישואין וגירושין), תשי”ג-1953 [/ref]. É uma lei extremamente
curta (11 artigos), mas que possui um poder enorme. A partir daquele momento, o
casamentos e separação entre judeus em Israel só poderiam ser realizados em uma
cerimônia judaica ortodoxa.
Assim determina o artigo 2º:
“casamento e separação de judeus serão realizados
em Israel de acordo com a lei da Torá”
Muitas perguntas surgem neste cenário. Apresento-lhes algumas:
a) O que acontece com indivíduos que possuem uma religião não reconhecida pelo Estado? E o que acontece com aqueles que se auto definem não religiosos?
A resposta é sucinta. Não poderão se casar em Israel.
Em setembro de 2010, foi promulgada a chamada lei “Lei do Pacto
Conjugal para os “Sem-Religião” [ref] 2010 – חוק ברית הזוגיות לחסרי
דת, התש”ע [/ref]– Que possibilitava que um casal de
religião não reconhecida pelo Estado (chamados “sem-religião”) realizem um
pacto conjugal (contrato) que lhe garanta alguns direitos concedidos a casais
que puderam realizar cerimônias religiosas.
Entretanto – note-se que esta lei – não remedia a situação de um casal
em que um dos cônjuges possui uma religião reconhecida pelo Estado. Ou seja, se
apenas um dos cônjuges for judeu, muçulmano, cristão ou druso, não haverá a
possibilidade de reconhecer o contrato realizado entre as partes.
b) E se um judeu se apaixona por uma cristã? E se um muçulmano deseja se casar com uma Drusa? Existe casamento Inter-religioso em Israel.
Um pouco complicado.
Dependerá de cada tribunal religioso. Explico com um exemplo:
O tribunal judeu não reconhece o casamento entre casais de
diferentes religiões mas o tribunal islâmico que julga segundo a Shaaria (lei
religiosa muçulmana) aceita o casamento de homens muçulmanos com mulheres
“hereges”. Desta forma um casal formado entre um muçulmano e uma judia é
reconhecido pelo tribunal islâmico, mas negado pelo tribunal judeu. Imaginem
quantas complicações legais existem no país advindos desta situação…
c) Existe a possibilidade de casamento civil em Israel?
Dentro de Israel inexiste a previsão legal para o casamento civil.
Entretanto, em 1963, uma decisão judicial [ref] Caso conhecido como
Katrina-Schlesinger x Ministro do Interior – בבג”ץ 143/62, הנריט אנה
קטרינה פונק שלזינגר נ’ שר-הפנים, פ”ד י”ז (1) 225. [/ref],
seria responsável por colocar ainda mais “pimenta” neste assunto.
Uma mulher cristã, de origem belga, casou com um judeu israelense no
Chipre. Ao retornar ao país, entrou com um pedido no Ministério do Interior
para que o casamento fosse reconhecido. O funcionário recusou-se a realizar a
inscrição, alegando que de acordo com a legislação israelense os cônjuges não
estariam casados.
Ao casal, não restou alternativa senão recorrer a Suprema Corte. Os
juízes sentenciaram a favor do pedido dos autores, para que se fosse inscrito
na instituição civil competente o casamento realizado fora de Israel.
A decisão esclareceu que apesar das leis israelenses não reconhecerem
como legal esta forma de casamento, o Estado estaria obrigado a reconhecer –
segundo as leis internacionais – um documento oficial expedido por uma
autoridade competente estrangeira. A certidão do casamento civil no Chipre era
portanto um documento válido.
Desde então, o casamento civil realizado fora de Israel,
possui validade legal para fins de registro no país. Os casais que não desejam
realizar uma cerimônia religiosa de uma corrente religiosa específica de sua
religião (e que não os representa), terão que sair do país para obter o
reconhecimento de sua união.
d) E o casamento entre indivíduos do mesmo sexo?
Mais uma vez a Suprema Corte viu-se em conflito entre a democracia e as
leis religiosas ortodoxas. [ref] Yossy Ben Ari x Ministério do Interior – בג”ץ 3045/05 יוסי בן-ארי נגד מנהל
מינהל האוכלוסין במשרד הפנים באתר בית המשפט העליון, 21.11.2006 [/ref]
Em 2006, um casal homossexual – cidadãos israelenses – viajaram ao Canadá para
casar-se perante um funcionário público do Estado Canadense.
Ao retornarem a Israel, pediram a inscrição do casamento no Ministério
do Interior. O funcionário recusou-se a realizar a inscrição, alegando que de
acordo com a legislação israelense os cônjuges não estariam casados.
Não restou alternativa a não ser recorrer a Suprema Corte. Os juízes
sentenciaram de forma análoga ao caso citado acima da cristã belga. O casamento
homossexual era válido no Canadá, e portanto a certidão emitida era um
documento válido para fins de registro.
De certa forma, Israel “legalizou” o casamento homossexual antes mesmo
do que muitos países ocidentais.
—
Eu acredito fortemente, que já passou da hora de Israel regulamentar o
casamento civil dentro do país. A premissa de que o casamento fora do âmbito
religioso poderia “dividir o povo judeu em dois” não pode ser sincera e deve
ser questionada de forma intermitente. Certamente o casamento civil não
impedirá a realização do casamento religioso segundo a escolha dos cônjuges, da
mesma forma como ocorre com o povo judeu em todos os demais países
democráticos.
A preocupação ou medo da divisão da nação é utilizado de modo desonesto
para que rabinos não eleitos e que praticam um judaísmo que é desprezado pela
maioria da população israelense mantenham o seu poder. Na verdade, é justamente
a concessão de poder aos tribunais religiosos para o julgamento de
questões de foro íntimo é que contribui – sim ou sim – para o rompimento de
nosso tecido social.
A sociedade não está mais disposta a conviver com leis religiosas que
interferem diretamente em sua liberdade pessoal. Optar por regulamentar o
casamento civil, e ainda retirar a exclusividade de julgamento dos tribunais
religiosos em questões de status pessoal, é
escolher o tipo de país desejamos legar as futuras gerações.