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As quatro diásporas: da Babilônia ao Brasil

Roberto Leon Ponczek - Coisas Judaicas
Roberto Leon Ponczek - Coisas Judaicas

por
Roberto Leon Ponczek[1]

A nossa história diaspórica começa quando Nabucodonosor II invade a Reino de Judá. em 586 a. C., construído por remanescentes das tribos de Judá e Benjamim, destrói o Templo de Salomão, deportando-nos para a Babilônia. 
Lá juntamente com outros deserdados da Terra Santa compilamos a lei Oral e escrevemos o Talmud da Babilônia, a mais completa compilaçãode comentários e contra comentários da lei Oral. 

O Talmud sistematizava a lei Oral que complementa a Torá Escrita por Moises mil anos antes, quando comandava nossa longa peregrinação do Egito à Terra Prometida. Ciro da Pérsia, O Grande, nos libertou do jugo dos Nabucos, e voltamos juntamente com Neemias e Esdras a Jerusalém para reconstruir o templo arrasadode Salomão. Vivemos no Reino de Israel, sob varias dinastias hasmoneanas de reis e sacerdotes judeus, ate ano 70 d.C., quando Tito e suas legiões romanas bateram às portas de Israel, destruindo Jerusalém e arrasando o segundo templo erguido por nossos ancestrais que voltaram da Babilônia com  Esdras e Neemias. Começa aí a nossa segunda diáspora.

Uma parte de nossa família se espalhapelo norte da África, vivendo a partir do sec. VII d.c. no Califado Islâmico dos Omíadas. Acompanhando os mouros, que nos concederam o estatuto de dhimmis(cidadãos de 2ª classe, mas com certa autonomia e liberdade), nos fixamos na terra de Sefaradia,ou Al Andaluzem árabe, e hoje mais conhecida por Espanha. Vivemos pacificamente junto com os mouros ate 1492, mesmo ano em que Colombo descobre a América, até sermos deportados pelos reis católicos Fernando de Aragon e Isabel de Castilla, que antes pilham todos os nossos bens. Começa aí a nossa terceira diáspora, a chamada diáspora sefaradita.

Alguns dos nossos sefaraditas fugiram para um pequeno país católico chamado de Portugal, fundado no séc. XII pelo rei cruzado Afonso Henriques, e de lá novamente expulsos pelo Rei Manuel, viemos dar nos costados de um grande país, chamado de Terra de Santa Cruz ou Terra Brasilis. Outros foram para a Holanda no sec. XVII, recriando em Amsterdam uma sólida comunidade sefaradita chamada de Grande Nação Portuguesa.Um terceiro grupo foipara mais longe rumo ao Império Otomano, cujo Sultãonos acolheu. Enquanto isso, lá pelos sécs VII-VIII, outro ramo de nossa família se fixou ao longo dos rios Danúbio e Reno, na terra de Ashkenazia, mais conhecida hoje por Alemanha. No séc.XII, muitos migraram para o leste Europeu rumo à Polônia, recém-unificada pelo Rei Casimiro, O Grande, em busca de melhores oportunidades, estabelecendo-se em pequenas shtetels[2].

Enquanto que os nossos familiares da Sefaradia falavam o ladino, um dialeto que mesclava espanhol e português com hebraico, os da Ashkenazia falavam yidish, um dialeto medieval alemão escrito com caracteres hebraicos. Os sefaraditas, curtidos pelo sol mediterrâneo, mantiveram-se morenos como os antigos judeus da Terra de Israel, enquanto que os askenazitas ficaram mais branquelos para captar mais vitamina D nos gélidos invernos poloneses e das estepes russas. Assim apos a terceira diáspora,nossa família ficou dividida em dois grandes grupos étnicos: os morenos da Sefaradia, falantes do ladino eos branquelos da Ashkenazia, falantes do yidish. No sec. XIX, nasceram na Polônia meus avós ashkenazitas Leib Ponczek e Ignacy Goldblum. Leib se casa com Betseba Gromb, tendo dois filhos David Tevel Ponczek - que virá a ser meu pai -, e minha tia Janina Ponczek. Ignacy Goldblum se casa com Miriam Moszcowski, tendo três filhas, Wanda que virá ser minha mãe, Alicia e Irena. Enquanto que os Goldblum eram judeus seculares, os Ponczek eram judeus chassídicos e observantes. Vivíamos na Polônia desde o tempo de Casimiro e ainda que não contássemos com a simpatia dos fanáticos católicos poloneses, que nos acusavam de matadores de Cristo, e de beber o sangue de criancinhas, ainda assim sobrevivemos durante esses séculos na terra do poeta Adam Mickiewicze do compositor Frédéric Chopin.

No entanto, algo de muito assustador estava ocorrendo na vizinha Alemanha. Em 1938, o partido nazista já havia consolidado seu poder e promovendo a Kristallnacht ou Noite dos Cristais, uma serie de pogroms nos quais 250 sinagogas foram queimadas, cerca de 7.000 estabelecimentos comerciais judaicos destruídos, dezenas de judeus foram mortos, e cemitérios, hospitais, escolas e casas judias saqueadas. A partir de então, o poder do nazismo se torna incontrolável e, em 1939, Hitler e seus exércitos invadem a Polônia, dando em 1941 inicio ao seu plano de extermínio completo de nossa família achskenazita. Somos então isolados em Guettos e, em seguida, transportados por comboios ferroviários aos campos de extermínio, recentemente construídos na Polônia para consumar a chamada “solução final”. No dia 7 de Maio de 1945, termina a II Guerra Mundial com a rendição dos exércitos alemães e a vitória dos aliados, mascom o trágico saldo de 6milhões de judeus assassinados. Meus pais e algumas tias conseguiram sobreviver, masmeus avós não tiveram a mesma sorte, sendo assassinados em Auschwitz e Treblinka. Os poucos sobreviventes darão inicio à quarta diáspora.

A família Goldblum-Ponczek se espalha pelo mundo. Meus pais conseguem vistos com documentos falsos e chegam ao Brasil de navio, via Antuérpia. Minha tia paterna Janina e seu maridoWilli Mendelssohn emigram para os Estados Unidos e minha tia materna Alicia Goldblum para o Brasil e, logo em seguida para a Argentina. Mesmo aqui no Brasil há também uma divisão, enquanto minha tia Irena Goldblum-Morgenzstern se fixa em São Paulo, meus pais se estabelecem no Rio de Janeiro, onde finalmente nasci eu na ensolarada praia de Nossa Senhora de Copacabana, na rua República do Peru 230, quando ecoavam os primeiros acordes da bossa-nova.
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Como muitas  famílias de judeus assimilados, meus pais conseguiram sobreviver à guerra graças a três fatores que foram determinantes. Falavam um alemão fluente, conseguindo ludibriar a Gestapo e falavam o polonês sem sotaque yidish, conseguindo enganar os dedos-duros poloneses. No entanto, só isso não foi suficiente para sua sobrevivência, tiveram ainda que livrar-se de seus nomes judaicos, adquirindo certidões de batismo com nomes falsos. Conseguiram falsas certidões cristãs, e assim meu pai que se chamava David Tevel Ponczek, adotou a identidade tipicamente polonesa de Tadeusz Marian Ponczek, enquanto que minha mãe que se chamava Wanda Lili Goldblum, “apolonesou” o seu nome para Wanda Danuta Godlewski, passando a adotar o nome Wanda Danuta Ponczek, depois de casada. Mantiveram o sobrenome legítimo Ponczek, pois existiam “poloneses arianos” com esse mesmo sobrenome. Outras famílias judias, como, por exemplo, Rosenberg, Schumacher, Zimerman, Landman, Berg puderam manter seus sobrenomes porque poderiam ser tanto judaicos como “arianos”. 

Passada a guerra, meus pais emigraram para o Brasil mantendo seus nomes cristãos, pois o governo Vargas, recusava-se a receber sobreviventes judeus. Mesmo depois de naturalizados como cidadãos brasileiros, por muitos anos ainda meus amedrontados pais (que suas almas descansem na paz de D’us) praticaram o cripto-judaismo (prática oculta do Judaísmo). Acendiam as duas velas do Shabat[3], do Rosh Ha Shana[4] e reuniam a família no Seider de Pessach[5], tomando o cuidado de fechar as cortinas para não chamar a atenção dos vizinhos. Meus pais temiam uma suposta “volta de Hitler”, dando ouvidos a rumores de que o Fürer e seus mais importantes colaboradores, depois de receberem asilo no Vaticano, dado pelo filo-germânico, Papa Pio XII, teriam embarcado rumo à Argentina, protegidos por salvo condutos dados pelo ditadorGeneral Juan Domingo Peron. Apesar de fantasiosos, algo havia de verdadeiro nesses boatos, pois, de fato, os tenebrosos carrascos Dr.Mengele e Adolph Eichman se esconderam na Argentina por muitos anos. Segundo meus pais, a qualquer momento poderia ocorrer uma invasão nazista oriunda da Argentina, então governada por Juan Domingo Peron e pela sua corrupta e demagógica mulher, Evita Peron.

Na escola, eu e minha irmã Ivone, éramos instruídos a preencher as fichas de matrícula escrevendo “católicos” no espaço destinado à religião. Éramos assim uma família de marranos[6] poloneses vivendo no Brasil. Muitos de meus colegas de infância, cujos pais eram sobreviventes do Holocausto, também eram cripto-judeus preservando publicamente nomes, identidades e religiões falsas. Chegou-se a fundar em Ipanema um clube polonês, Polski Klub 44, composto, em sua grande maioria, por cripto-judeus que se passavam por cristãos poloneses.

Somente em junho de 1967, com a rápida vitória de Israel sobre o Egito, Síria, Líbano e Jordânia na Guerra dos Seis Dias, que meus pais tiveram coragem suficiente para reassumir plenamente suas identidades judaicas. Diziam então que “agora temos Israel para nos defender”. Passamos a frequentar regularmente a Sinagoga Reformista da ARI em Botafogo, e de marranos passamos a ser judeus brasileiros assumidos. Minha mãe acrescentou ao barszcz polonês[7] e o bigos[8], antigas receitas de chrein e gefiltefish[9]. Já meu pai, deixou o Polski Club, e tomando-se de coragem retirou da mala seus velhos livros de orações, há muito tempo escondidos, como uma velha Chagadá[10], e voltou cobrir seus ombros com o talit[11]e sua cabeça com a kipá[12], recuperando não só a sua religião, mas principalmente a sua dignidade. Depois de passarmos por uma infância religiosamente conturbada por dissimulações, Ivone e eu, conseguimos transmitir a nossos filhos não só a religião, mas também o gosto pela cultura judaica. Assim como está escrito na Torá, que três gerações de patriarcas foram necessárias para construção de uma nação, também três gerações e quatro diásporas foram necessárias para o nosso renascimento judaico, pois como fênix, renascemos das cinzas tenebrosas e fumegantesda Inquisição e do Holocausto!



[1]Professor de Filosofia e Metodologia da Ciência na Universidade Federal da Bahia, Roberto Leon Ponczek é carioca, filho de sobreviventes do Holocausto e membro associado da SIB (Sociedade Israelita da Bahia)e do Beit Chabad Salvador
[2]Pequenas aldeias judaicas espalhadas pela Polônia, Ucrânia e Rússia.
[3]Diade orações em que os judeus celebram a criação completa do Universo por D’us em6 dias, descansando no sétimo dia. Começa com o anoitecer da sexta feira terminando no anoitecer do sábado.
[4] Dia em que se celebra o Ano NovoJudaico, significando literalmente “cabeça do ano”. 
[5] Jantar onde os judeus comem a matza, o pão ázimo, e quando as famílias se reúnem para rememorar o Êxodo, ou seja, a libertação do povo judeu do Egito.
[6] Termo derivado do árabe mahanan, significando porco, com o qual eram designados os chamados cristãos-novos, judeus sefaraditas convertidos ao Cristianismo.
[7]Sopa de beterraba coberta com creme de leite.
[8] Repolho azedo com batatas, semelhante ao chucrute alemão.
[9]Bolinhos de peixe moído, cozidos em banho-maria temperados com pasta deraiz forte e beterraba.
[10] Livro de oração que rememora e celebra a libertação dos judeus do Egito e que se lê na cerimônia do Seider dePessach. Coincide aproximadamente com a Páscoa cristã.
[11]Xale de orações que os judeus usam nas cerimonias religiosas.
[12]Pequeno solidéu com o qual os judeus cobrem a cabeça.


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1 Comentários
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  1. Me emocionei demais em ler sua matéria. Gostaria de saber a razão de o por que choro demais ao ler os relatos de sofrimento e extermínio de meu povo em tantas diásporas. Quando ouço as músicas, leituras da Torá, leituras dos serviços das sinagogas fico por demais emocionado. Amo demais a terra santa, Jerusalém, mais emocionado ainda fico em saber que meus avós viviam temerosos quando viam a polícia, na ditadura, procurarem os que cultivavam práticas judias às escuras, a famosa "captura", policiais incumbidos de descobrirem e prenderem remanescentes judaicos espalhados por Minas Gerais e Espírito Santo, pois eles haviam vindo de Minas Gerais, e habitavam no interior do Espírito Santo. Documentalmente se comprova que os sobrenomes (Miranda, Passos, Bastos), de meus avós por parte de mãe, são provenientes de deportações judias portuguesas. Tais informações me deixam mais aflito e emocionado, por ter esperança de descobrir minhas raízes judaicas. Oro constantemente a Adonai, no intuito de um milagre, o da obtenção de informações e confirmações de minha certeza, e que sou do remanescente judeu, sempre guardado e protegido por Adonai, cumprindo Sua promessa feita a nosso pai Abraão.
    Obrigado por sua motivação em escrever sua história, me deixou muito emocionado e feliz. Shalom

    Seu amigo Carlos.

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