Comentários sobre a Porção Semanal Bô
Esta é a mitzvá denominada “o sacrifício de Pessach” (Korbán Pessach). A mesma foi executada pelos filhos de Israel durante seu cativeiro no Egito. Trata-se da primeira mitzvá que os filhos de Israel realizaram na qualidade de povo, e a preservaram até a destruição do Templo Sagrado.
A mitzvá do sacrifício de Pessach contém certos detalhes que constituem precondições para seu cumprimento. O animal não deve ser cozido mas assado. Devesse comer apressadamente e as pessoas que o comem devem estar vestidas, calçadas e providas de todos os implementos necessários. Não se deve deixar parte desse sacrifício para o dia seguinte, pois é obrigatório consumi-lo em sua totalidade durante a noite. Uma das características que diferem este sacrifício em relação a outros, é a sua obrigação de consumi-lo dentro da família. Este sacrifício é para ser consumido em família e várias famílias se reúnem para comer de um mesmo animal.
Por que era necessário realizar um sacrifício e consumi-lo coletivamente antes da saída do Egito? Os filhos de Israel se dispuseram a abandonar o Egito quando D-us lhes ordenou a realizar o sacrifício. Não poderiam, entretanto, esperar alguns dias para realizá-lo? Não seria muito mais cômodo realizar este sacrifício quando já fossem homens livres?
O povo de Israel esteve submerso no Egito dentro do clima geral das crenças e costumes deste povo. Os longos anos de cativeiro, exílio e sofrimento, deixaram suas marcas nele. A forma de vida e as crenças pagãs influenciaram os escravos hebreus. O povo hebreu deveria, portanto, cooperar no processo de sua salvação. D-us devia libertar o povo do trabalho físico e conduzi-lo, finalmente, a liberdade física, porém os próprios cativos deveriam romper com a submissão para mostrarem-se dignos de sua liberdade espiritual. Isto será inútil se a própria pessoa não for capaz de colocar sua força interior a serviço da mudança desejada.
Aos filhos de Israel lhes foi ordenado sacrificar com suas próprias mãos o cordeiro, um dos ídolos egípcios. Sem dúvida, a execução desta mitzvá foi difícil para os bnei Israel, ma os esforços desprendidos para execução deste preceito, lhes permitiu alcançar a consciência coletiva e libertar-se ao mesmo tempo de seus temores e dúvidas.
Esta mitzvá consiste na execução coletiva – o sacrifício de Pessach. Apenas os membros da comunidade dos filhos de Israel podem participar desta atividade. Este sacrifício comemora o nascimento da nação judaica, obrigando ao judeu individual a virar as páginas da história coletiva do povo.
Enquanto os filhos de Israel estavam no Egito não se consideravam, a si mesmos, como povo, como coletivo, nem tão pouco se diziam pertencer à religião de Moshé. Um conjunto de escravos não constitui uma comunidade; por isso é necessário o sacrifício de Pessach, para obrigar a cada indivíduo realizar uma ação que o converterá imediatamente em parte ativa do grupo.
Para poder receber a Torá, que assume a existência de uma vida coletiva, é necessário estimular dentro do povo o surgimento de tal consciência coletiva. É possível que a pessoa que se aproxima da Torá com uma perspectiva pessoal, não compreenda a profundidade das leis que esta contêm. A Halachá (lei judaica) se refere apenas ao homem que é possuidor de uma consciência coletiva, que forma parte da comunidade, e de modo algum alude ao homem ilhado. Apenas o homem que é capaz de identificar-se com a comunidade e com seu sofrimento passado ou presente, é possuidor de uma consciência coletiva que lhe permiti o acesso ao linguajar da Torá. Unicamente aquele que participa do sofrimento do povo Judeu consegue modificar seu “eu” individual e mudá-lo para o “nós” coletivo. A transformação do “eu” em “nós” não começa como conseqüência da mitzvá, mas é o produto da participação no sofrimento do povo e seu desejo de liberdade.
É possível definir o judaísmo como uma concepção do mundo espiritual que demanda do indivíduo que se apresenta diante de D-us como membro de uma congregação, de um povo. A consciência de que a vida sem congregação não é vida, constitui a base da aceitação da linguagem publica da Halachá. Não é possível a vida comum da congregação sem uma lei comum. O convergir à lei é conseqüência da centralização do povo que realiza o desejo de seu D-us.
Para o judaísmo, “teu povo é meu povo” é anterior a “teu D-us é meu D-us”. Para reverenciar a D-us de Aristóteles não é necessário pertencer a um povo determinado. No entanto, para reverenciar o D-us dos judeus, é necessário identificar-se com os sucessos históricos do povo de Israel e sentir-se parte desta grande congregação.
Todo indivíduo judeu é responsável pela vida coletiva. Sua responsabilidade como judeu se estende mais além da mitzvá que realiza em seu lar.
As mitzvot mais conhecidas e importantes, como o Kashrut, o Shabat, os Tefilin e a Oração, são muito valiosas, porém apenas é possível realizá-las em seu lar, em sua morada. O exílio acentuou o valor destas mitzvot, possíveis de serem executadas dentro do lar, de forma afastada do público circundante. Estas mitzvot que serviram de refúgio ao judeu, não constituem, entretanto, a totalidade do judaísmo.
A comunidade judaica não é uma comunidade que tem unicamente fins beneficentes. Não se trata de um conjunto de pessoas que realizam atividades em comum com o objetivo de obter um benefício mútuo, tal como se define habitualmente uma comunidade nacional. A comunidade judaica possui também uma existência metafísica.
O sacrifício de Pessach nos ensina que o surgimento de um povo não é um fato natural nem óbvio. É necessário que as pessoas que desejam pertencer a ele se submetam a certos esforços para consegui-lo. A fim de ilustrar este aspecto, teremos que nos referir a um exemplo dentro da estrutura da família. A pessoa nasce num âmbito familiar, numa tribo, num povo; não escolhe esta pertinência e não possui uma consciência familiar nacional, automaticamente, com seu nascimento. A relação com a família se baseia na procriação. O homem e a mulher estão relacionados um com o outro, na qualidade de pais. Porém a procriação em si não determina a existência de uma família. A relação familiar apenas existe quando a pessoa considera a função de reprodução baseando-se na unidade familiar que inclui aqueles que nasceram de seu resultado. O fato de um casal manter relação sexual, inclusive quando em conseqüência dessa relação se produz um nascimento, não determina necessariamente que foi constituída uma família, nem particularmente e tão pouco para os demais. Apenas a consciência os constituirá em uma unidade de existência. Essa é a função da cerimônia do matrimônio, que determina a formação da família, de maneira simbólica e jurídica.
O mesmo ocorre com o povo. As pessoas que estão unidas umas com as outras desde o momento em que nasceram, desenvolvem relações de dependência e devem ajudar-se mutuamente. Entretanto, esta dependência não determina ainda a existência de uma sociedade, assim como, um casal que tem um filho não constitui necessariamente uma família. Somente quando o indivíduo supera sua dependência e se eleva conscientemente a esfera do coletivo, da comunidade, é que se relaciona com o próximo, criando uma comunidade, um povo.
Os filhos de Israel, enquanto habitavam a terra do Egito, compreenderam o que era a liberdade, aprenderam que se tratava de algo mais além da liberdade corporal, e aprenderam a sentir que eram uma comunidade que vivia de acordo com um ideal. Foi apenas depois de sentiram o gosto desta liberdade, que se tornaram dignos da liberdade física.
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