Novo livro de orações muda linguagem para incluir mulheres e gays
ANTONIO PITA
Quando os israelitas cruzaram o Mar Vermelho, fugindo do exército egípcio, cantaram um poema para Deus. Moisés o recitou aos homens, para que o repetissem, enquanto sua irmã Miriam fez o mesmo com as mulheres. É dessa forma que narra o Êxodo. Só que, quando o cântico é recriado na oração judaica, apenas Moisés é mencionado.
Corrigir esse e outros elementos da linguagem litúrgica judaica que discriminam mulheres, gays, solteiras que adotam ou membros de outras religiões é exatamente o objetivo de um novo livro de orações diárias (sidur, em hebraico) publicado no mês passado pelo movimento judaico conservador dos Estados Unidos. Os conservadores, também chamados de tradicionais, representam cerca de 18% dos mais de 5 milhões de judeus do país (segundo do mundo em tamanho dessa comunidade, depois de Israel) e são, desde seu surgimento, no início do século XIX, o meio do caminho entre os dois outros grandes ramos: o reformista, marcado pela abertura, e o ortodoxo, aferrado à tradição.
“Nossa sensação é que muitas pessoas precisavam de orações que as fizessem se sentir bem-vindas à sinagoga. Algumas rezas são problemáticas, dizem coisas nas quais não cremos, e precisávamos encontrar a maneira de abordá-las com uma voz contemporânea”, explica por telefone, de Massachusetts, Edward Feld, o rabino que coordenou a edição da obra, intitulada Sidur Lev Shalem. Nela, junto com o original em hebraico e a tradução para o inglês, um comentário explica o significado e a origem de cada parte da liturgia. Um sidur contém as rezas necessárias para as três orações diárias características do judaísmo e também as específicas para o dia sagrado, o sabá, e para outras celebrações.
O sidur tradicional é redigido no masculino. Diferentemente do português, em hebraico o verbo varia se o sujeito é homem ou mulher. A nova edição inclui as duas opções, para que as mulheres se sintam incluídas na oração. Nos fragmentos dedicados a venerar os patriarcas Abraão, Isaac e Jacó passaram a ser citadas também as matriarcas Sara, Lea e Raquel. E, na medida do possível, há o uso de palavras neutras. Deus, por exemplo, deixa de ser “Rei”, e às vezes até é mencionado na segunda pessoa (“Tu”), para não usar “Ele”. “A Bíblia pôs as mulheres, e a Idade Média as tirou. Nós voltamos a incluí-las”, afirma o rabino.
Acontece o mesmo em relação aos casais de homossexuais. Agora podem recitar as orações para as principais etapas da vida sem ter que pronunciar pronomes que lhes soem mal. “Estamos claramente conscientes de que as famílias atualmente são muito diversas. A linguagem está muito politizada, e queremos que quem a ouça não a sinta como algo que a deixe de lado, e sim, como algo que possa rezar”, resume Feld. Em 2012, o movimento conservador concluiu que os matrimônios entre pessoas do mesmo sexo têm “o mesmo sentido de santidade e alegria que o manifestado nos casamentos heterossexuais” e estabeleceu ritos para eles. Os reformistas já tinham feito isso.
O livro não apenas acolhe a linguagem inclusiva e as novas realidades sociais. Também tenta ser uma porta para as famílias em que apenas um dos cônjuges seja judeu. Esses matrimônios mistos são 58% dos celebrados por judeus nos Estados Unidos e levam a uma discussão permanente no seio da comunidade: como manter uma vida judia e transmiti-las aos filhos quando se convive com um par de outra religião? Uma das maneiras é flexibilizar os ritos e enfraquecer a nítida linha entre judeus e não judeus que estrutura as orações originais. No novo sidur, por exemplo, foi alterada uma frase: o sabá não é mais um “presente para os judeus”. É um “presente para todos”.
Fonte: El Pais