O Papa Lunático e a Disputa com os Judeus

O Papa Lunático e a Disputa com os Judeus

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Pelo Rabino Nissan Ben Avraham
A Disputa de Tortosa

Na segunda metade do século XIV, viajava pela Europa um frade dominicano, nascido em Valência, que era conhecido por seu antissemitismo virulento. Uma de suas expressões favoritas era “batismo ou morte” baseada no terrível desastre de 1391 onde se expandiu por Castela e Aragão uma terrível onda de ataques contra as comunidades judaicas, muitas dessas comunidades judaicas espanholas desapareceram, seja porque seus habitantes morreram ou porque foram forçados a se converter ao cristianismo, ou mesmo, por ambos motivos.
Este frade se chamava Vicent Ferrer, nascido em Valência em 1350, conhecido por um carisma que incendiava seu público, o público cristão, já que os judeus, que também eram obrigados a comparecer as igrejas quando Ferrer dava seus sermões, não tinham motivos para se emocionar, sendo que, normalmente, eram humilhados pelos cristãos. E assim, este mesmo frade é acusado de preparar o terreno para as conversões forçadas que ocorreram no ano de 1391 – evento mencionado acima – em todas as regiões, muitas das quais, costumava pregar. Os próprios cristãos lhe davam todo o crédito pelo “sucesso” alcançado, ao destruir muitas comunidades judaicas neste ano.
Mas o tempo passou e Ferrer percebeu que ainda haviam muitos judeus vivendo nas terras da Península Ibérica, e haviam, até mesmo, restaurado algumas comunidades que estavam sob ruínas. Isso preocupou muito Vicent Ferrer. Portanto, ele contatou um convertido chamado Maestre Geroni de Santa Fe, anteriormente conhecido como Yehoshua Ha-Lorqui, para participar de uma disputa pública entre judeus e cristãos, na qual buscaria convencê-los de seus erros por não aceitar o cristianismo. Os judeus então apelidaram a este converso – utilizando um trocadilho com as iniciais de seu nome M, G, D e F – de ‘Megadef ‘ (MeGaDeF), que significa em hebraico ‘calunioso’.
Este tal Geronimo havia sido um companheiro do velho rabino de Burgos, que abjurou do judaísmo adotando o nome de Pablo de Santa Maria, e que, em vinte e cinco anos tornou-se bispo de sua cidade natal. De acordo com o seu gentílico, Maestre Geroni era de Lorca, e abjurou do judaísmo logo após seu companheiro de Burgos, na trágica década de 1390. Independentemente se sua conversão foi sincera ou não, os resultados foram fatais para as comunidades judaicas de Castilla e Aragão, uma vez que Geronimo se dedicou a perseguir os seus antigos irmãos.
Naqueles tempos havia um papa que residia na coroa de Aragão no castelo de Penyíscola, atualmente na província de Castelló, pois não o aceitavam em Roma. Este foi o famoso Papa Luna, Pedro Martínez de Luna e Pérez de Gotor, ou, o Papa Bento 13, que, apesar de ter sido rejeitado pela Cúria “continuou nos seus treze” (dizia: “Sou Papa, e sou 13”). Seu médico pessoal era, justamente, Maestre Geronimo, o judeu renegado.
Para reafirmar sua autoridade no mundo cristão Geronimo considerou rentável participar da disputa pública entre os judeus e cristãos na cidade de Tortosa, localizada a cerca de 70 km ao norte de Penyíscola, embora tudo leva a creer que algumas das sessões aconteceram mais próximas de sua cidade sede. Atualmente, o Papa Luna é considerado um “antipapa”, um herege.
Convocaram cerca de vinte rabinos das regiões vizinhas de Aragon, incluindo os rabinos: Rabi Zerachiá Halevi, o ministro Don Vidal ben Benveniste, Rabi Mathias Hayitsharí, Don Shmuel Halevi, Rabi Moshe ben Musa, Don Todros (Theodoros) el Constantín, Don Yosef ben Ardot, Don Meir Jaligua, Don Estrug Halevi, Rabi Yosef Albo, Don Yosef Halevi, Rabi Yom Tov-Carcusa, Abu Ganda, Don Yosef Albalag, o sábio Bonjueu e Rabi Todros ben Yijya de Girona.
Os rabinos foram convocados a abandonar suas comunidades e viajar para o local da disputa, sob a ameaça de serem severamente multados se não chegassem a tempo. A primeira sessão foi realizada no dia 07 de fevereiro de 1413 e a 67ª – e última – sessão, em 13 de novembro de 1414.
Tudo indica que o Papa Luna, pelo menos na primeira parte da disputa, se comportou corretamente com os judeus, como um juiz justo, criticando Geronimo (e também os rabinos) cada vez que desviavam do assunto ou transgrediam as regras a disputa. Os rabinos também tiveram disputas entre eles, uma vez que alguns deles, como o Rabi Estrug, Don Todros e o Rabi Mathias, se aventuraram a proferir exclamações que enfureceram o Papa Luna, arriscando, assim, a vida de todos. Portanto, eles tiveram que estabelecer regras de participação entre si, com as quais definiram que apenas um rabino lideraria o debate e os outros deveriam permanecer no papel de espectadores.
A grande questão era se jesus nazarenho, era o verdadeiro Messias ou não, com base em textos bíblicos e na literatura talmúdica.
O primeiro tema discutido foi a famosa frase do profeta Eliyahu (Talmud, Tratado de Sanhedrin 97a), que afirma “o mundo durará seis mil anos, e no sétimo será destruído: os primeiros dois mil serão de caos, os outros dois mil de Torá, e os últimos dois mil, serão os tempos de Mashiach”. Os cristãos queriam concluir, baseando-se nesta declaração, de que já o Messias já deveria ter chegado desde o início do quinto milênio, enquanto que os judeus argumentavam que até o fim do sexto milênio poderia aparecer o verdadeiro Messias. E assim, seguiram com outras questões talmúdicas.
A crônica, parcial, que possuímos hoje é a do rabino Shlomo Ibn Verga, que nasceu em Sevilha em 1460, escrita em um livro ‘Shevet Yehudah’ ou ‘Tribo de Judá’, que contém o testemunho de um certo rabino Yehuda Verga (talvez parente dele) que testemunhou a disputa.
Infelizmente, não temos toda a disputa por escrito, mas sabemos que causou muitos problemas para as comunidades judaicas, que já estavam em uma posição muito difícil. Tanto se a disputa terminasse favoravel aos judeus ou não, a ira dos cristãos cairia sobre eles: se perdessem, teriam que abandonar a sua fé e se converter ao cristianismo, e se ganhassem, seria por seus “truques” e “magias negras”, e, obviamente, não, simplesmente, por ter razão. Então, de qualquer maneira, tendiam a perder, como em todas as disputas.
De qualquer forma, presume-se que se tivessem perdido a disputa, teriam sido forçados a se converter ao cristianismo, o que pode dar crédito à versão judaica que diz que os rabinos conseguiram corretamente se defender contra as acusações do ‘Megadef’. Não nos esqueçamos de que estavam a somente, dois décadas e mea do ano sombrio de 1391, e o cheiro de fogo e sangue derramado, ainda pairava no ar. Faltavam menos de oitenta anos para a expulsão dos judeus daquelas terras, e os fanáticos como Vicent Ferrer e Geronimo de Santa Fe, já atiçavam o fogo que consumiu mais tarde todas as comunidades judaicas da Península Ibérica, que tanto contribuíram para a ciência, literatura, medicina e, é claro, a literatura rabínica.

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