A música desempenha na tradição judaica um papel que está relacionado com a revelação, com a alegria, com o prazer e com a cura.
Maimônides que era médico além de filósofo e halachista, trabalhou o conceito de uma mente saudável num corpo saudável, observando que o bem-estar físico de uma pessoa dependeria do seu bem-estar mental e vice-versa. Em seus tratados sobre saúde, algumas das primeiras descrições de medicina psicossomática, o pensador aponta que seria uma obrigação do homem direcionar a sua alma no intuito de obter o conhecimento divino. Nesse sentido, alguém que sofresse por exemplo de melancolia, poderia se livrar dela ouvindo e cantando música pois isso poderia dissipar esse clima de tristeza. A alma seria como que acariciada pela música agradável. Dessa maneira, a saúde poderia ser restaurada e a obtenção da real sabedoria, através do conhecimento de Deus, poderia ser desenvolvida pelo homem.
O mestre chassídico Nachman de Bratslav por sua vez, através de uma abordagem mística, mostrava que a tristeza e o mau-humor seriam fontes de doenças e nessa perspectiva dizia que estar alegre seria uma mitsvá. O mestre dizia ainda que a música seria essencial no processo de atingir a alegria como vemos no seguinte comentário: “através da canção vocês alcançarão a alegria e o êxtase”. O mestre judaico salientava a importância da alegria como estado emocional que ajudaria o homem a se aproximar de uma existência sagrada como vemos nesse outro comentário: “e quando o homem por fim atinge a alegria, o Todo Poderoso Ele mesmo o protege e preserva contra todas as impurezas...”
No movimento cabalista que se instalou na cidade de Sfat no século dezesseis da era comum, e que teve uma marcante influência sobre todas as comunidades judaicas do mundo, várias poesias com temas sagrados foram escritas para serem cantadas (ex. Lecha Dodi).
Poetas desse movimento religioso, influenciados pelo líder Isaac Luria, criavam textos que tinham como tema por exemplo, a esperança pela redenção divina e toda a simbologia do Shabat como um dia sagrado. Ao serem musicalizadas, essas poesias podiam ser cantadas como simples canções populares por todas as pessoas. Ou seja, esses conceitos, tão especiais para esses mestres, não estavam mais restritos aos eruditos e puderam ser espalhados e cantados por toda a comunidade.
É interessante notar que essa é uma época sob os efeitos de uma das maiores catástrofes na historia judaica que foi a expulsão da comunidade judaica da Espanha em 1492 e a instauração dos tribunais de Inquisição. Foi nesse contexto perturbador que o centro judaico de Sfat, mostrou ser receptivo à música e ao seu efeito fortificador da vida religiosa e espiritual que ajudaria a disseminar a alegria, a esperança e a crença na redenção divina, que nesse período, eram tão importantes.
Atualmente ainda podemos ouvir composições desse período histórico tais como Lecha Dodi. Podemos inclusive verificar que existem diversas melodizações para essa poesia que abre a chegada do Shabat na sexta-feira ao entardecer. De modo geral comprovamos que enquanto os textos religiosos apesar de variarem, não mudam tanto de comunidade para comunidade, a música que acompanha a prece, varia significativamente.
Às vezes ouvimos na sinagoga melodias de músicas judaicas contemporâneas (ex: melodia de Yerushalaim Shel Zahav) sendo utilizadas para acompanhar textos sagrados que possuem vários séculos de existência. Ou seja, enquanto que os textos litúrgicos funcionariam como uma continuidade com o passado, as melodias representariam uma conexão com o presente.
Também podemos encontrar melodias que acompanham determinadas preces sendo utilizadas para cantar outras preces. Esse uso livre da melodia é chamado de contrafacta. Esse processo ocorre quando uma melodia de uma música é transportada e utilizada para melodizar um outro texto. De fato, vemos que a retirada de uma melodia de uma reza para outra reza, exemplifica uma particular abordagem do que seria o som na liturgia judaica onde a melodia teria uma autonomia para ser livremente utilizada.
Reparamos que no judaísmo a música desenvolve uma função própria na manutenção da tradição. A música como um meio de comunicação que cada um tem e que todos podem acessar. Como vemos no seguinte comentário judaico: “está escrito, vocês não serviram Deus com alegria e prazer do coração (Deut 28:47). Qual é o culto que inclui a alegria e o prazer? Onde há a canção” (Talmud).
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Daniel Spitalnik é músico, economista e mestre em comunicação pela ECO-UFRJ tendo escrito a dissertação sobre música judaica Um Canto Para O Infinito (e-mail: dspitalnik@terra.com.br ).