Você teria de ser menos que humano para não se comover com as imagens que temos visto sobre a crise dos refugiados ameaçando tomar conta da Europa: as cenas desesperadas na estação em Budapeste, os setenta e um corpos encontrados no caminhão abandonado na Áustria, as duzentas pessoas afogadas quando seu barco naufragou na costa da Líbia, e o mais triste de todos, o corpo de Aylan Kurdi de três anos, sem vida numa praia turca; uma imagem que durante muito tempo ficará gravada na mente como símbolo de um mundo enlouquecido.
Este é o maior desafio humanitário enfrentado pela Europa em muitas décadas. Ângela Merkel não estava errada ao declarar: “Se a Europa falhar na questão dos refugiados, sua conexão próxima com os direitos civis universais será destruída.”
O influxo de refugiados invadindo partes da Europa é uma crise maciça, mas é exatamente em tempos como esse que vale a pena lembrar que o ideograma chinês para “crise” também significa “oportunidade”. Agora é uma oportunidade única para mostrar que os ideais pelos quais a União Europeia e outros organismos internacionais como as Nações Unidas foram formados ainda são obrigatórios, compassivos e humanos.
Muitas das convenções e protocolos estabelecendo direitos legais para refugiados surgiram no final da Segunda Guerra Mundial, bem como a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um dos momentos mais sombrios da história ocorreu em julho de 1938, quando representantes de trinta e dois países se reuniram na cidade francesa de Evian para discutir o desastre humanitário que todos sabiam estava a ponto de afetar os judeus da Europa onde quer que a Alemanha de Hitler chegasse. Os judeus estavam desesperados para partir. Sabiam que suas vidas estavam em perigo e os políticos e agentes na conferência também sabiam. Porém um pais atrás do outro fechou suas portas. Nação após nação na verdade disse que não era problema delas.
Em tempos assim pequenos gestos humanitário podem furar a escuridão e acender uma chama de esperança. Foi isso que aconteceu em Kindertransport, a iniciativa lançada, entre outras, pelo falecido Sir Nicholas Winton que resgatou dez mil crianças judias da Alemanha Nazista. Meio século depois cheguei a conhecer muitos daqueles que foram resgatados. Eles amavam o Reino Unido e procuravam contribuir ricamente a ele. Eu e muitos outros judeus da minha geração crescemos com aquele amor, sabendo que sem a disposição do Reino Unido em prover refúgio a nossos pais e avós, eles teriam morrido e nós não teríamos nascido. À medida que a história humana é contada, esses atos de humanitarismo permanecerão como um triunfo do espírito sobre expediente político e indiferença moral.
Sessenta anos após Kindertransport uma reunião ocorreu em Londres, com mais de mil pessoas que tinham sido resgatadas. Foi um dia muito emotivo à medida que um após o outro contava sua história. Mas o discurso que nos levou todos às lágrimas não veio de uma das crianças resgatadas, mas do falecido Lord Attenborough, cuja família estava entre os salvadores.
Ele falou sobre como seus pais chamaram seus três filhos meninos e disseram a eles que queriam adotar duas meninas judias da Alemanha, Helga e Irene. Explicaram os sacrifícios que todos teriam de fazer. Seriam agora uma família de sete e não de cinco pessoas, o que significava que teriam de compartilhar mais, e que, disseram, incluía seu amor, porque “Vocês têm a nós, mas elas não têm ninguém.”
Os meninos concordaram, e as duas meninas se tornaram parte da família. Enquanto contava essa história, Lord Attenborough chorava, e disse que era o dia mais importante da sua vida. De repente entendemos que são os sacrifícios que fazemos em prol de altos ideais que nos tornam grandes, e isso se aplica também às nações além dos indivíduos.
Mesmo no caso do melhor cenário, a Europa sozinha não pode resolver os problemas dos quais os refugiados são vítimas. Os conflitos que têm levado o caos ao Oriente Médio continuam a desafiar qualquer solução óbvia. Toda opção que foi tentada tem parecido falhar: intervenção militar no Afeganistão e no Iraque, zonas sem vôo na Líbia, e de não-intervenção na Síria. Nenhuma delas tem acabado com o fogo da discórdia religiosa e étnica e com a guerra civil. É muito fácil dizer que não é problema nosso, ou argumentar que além disso, está acontecendo há muito tempo em locais distantes.
Nada em nosso mundo interconectado está longe. Tudo que poderia ser global é global, do terror ao extremismo religioso a sites pregando paranóia e ódio. Nunca antes as palavras de John Donen foram mais verdadeiras: “A morte de qualquer homem me diminui, porque estou envolvido na humanidade.”
Uma forte reação humanitária por parte da Europa e da comunidade internacional poderia conseguir aquilo que a intervenção militar e a negociação política não tem conseguido atingir. Isso iria constituir a prova mais evidente possível de que a experiência européia das duas Guerras Mundiais e o Holocausto ensinaram que sociedades livres, onde pessoas de todas as crenças e etnias abrem espaço umas para as outras, são a única maneira de honrar nossa humanidade compartilhada, não importa se entendemos a humanidade em termos seculares ou religiosos. Se isso falhar, teremos falhado em um dos testes fundamentais da humanidade.
Eu costumava achar que a linha mais importante da Torá era “Ama teu próximo como a ti mesmo.” Então entendi que é fácil amar teu vizinho porque ele ou ela é como você. O difícil é amar o estrangeiro, aquele cuja cor, cultura ou credo é diferente do seu. É por isso que a ordem “Ama o estrangeiro porque vocês já foram estrangeiros” ressoa tantas vezes em toda a Torá.
Isso está nos chamando agora. Um ato firme de generosidade coletiva mostrará que o mundo, especialmente a Europa, aprendeu realmente a lição de seu próprio passado obscuro e está pronta a assumir uma campanha global para construir um futuro com mais esperança. Guerras que não podem ser vencidas com armas, às vezes podem ser vencidas pelo puro poder de atos de generosidade humanitária para inspirar os jovens a escolher o caminho da paz em vez da guerra santa.
POR RABINO JONATHAN SACKS
Lord Rabino Jonathan Sacks, antigo Rabino Chefe da Grã-Bretanha e da Comunidade Britânica, além de famoso escritor e palestrante sobre Chassidismo. É fundador e diretor do Meaningful Life Center (Centro para uma Vida Significativa).