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Uma História de Amor

Uma História de AmorO homem, por natureza, é uma criatura egoísta. Até em seus relacionamentos com os outros ele tende a concentrar-se basicamente em si mesmo ou, na melhor das hipóteses, na visão colorida que tem de si mesmo. “Amor” é o esforço para transcender esse egoísmo intrínseco e relacionar-se realmente com o próximo, de ser sensível e devotado às suas necessidades como um indivíduo distinto de si mesmo, e a própria base do relacionamento.
Porém, quando a Torá fala sobre a mitsvá “Ama teu próximo como a ti mesmo”, o faz no contexto do dever humano de influenciar, e até mudar, o comportamento e natureza de seu próximo. Em Vayicrá 19, versículos 18-19, a Torá ordena:
Não odeia teu irmão em teu coração; admoesta repetidamente o teu próximo, e não atribui pecado a ele. Não toma vingança, nem abriga ódio em teu coração para com teu povo, e ama teu próximo como a ti mesmo; Eu sou o Eterno.
Como explicam os comentaristas, há duas reações possíveis que uma pessoa pode ter para com alguém que cometeu um erro, ou a quem veja se comportando de maneira moralmente falha: 1) Pode desprezá-lo em seu coração, considerando-o “pecador” e talvez até persegui-lo por causa de seus “pecados”; 2) pode admoestá-lo, no esforço de convencê-lo da tolice de seus atos e procurar influenciá-lo para que os mude. O caminho do amor, diz a Torá, não é “odiar teu irmão em teu coração”, mas “repreendê-lo repetidamente” e procurar melhorá-lo. Obviamente, o desejo de influenciar é consistente com a ideia de amor.
Ninguém ficaria impassível vendo um ente querido passar fome ou ser ameaçado de violência; assim também, se uma pessoa vir alguém que ama sofrendo de desnutrição espiritual ou cegueira moral, fará todos os esforços para ajudá-lo, esclarecê-lo, oferecer orientação e assistência. Porém este aspecto de comportamento amoroso encerra um paradoxo inerente. Por um lado, o esforço de influenciar e modificar implica um afastamento do “eu” e preocupação com o bem-estar do outro. Por outro lado, implica numa opinião aparentemente egoísta do outro; uma rejeição do outro como ele é, e um desejo de impor a própria percepção daquilo que é bom para ele sobre o outro.

Quatro Protótipos Bíblicos

Uma exploração da história da humanidade, como relatada na Torá, revela quatro vultos que personificaram quatro diferentes pontos de referência no relacionamento entre a pessoa e seu próximo.
Cada um desses indivíduos foi considerado o mais justo de sua geração. Assim, a vida deles pode ser vista como refletindo quatro estágios no desenvolvimento espiritual da humanidade – quatro estágios no movimento a partir de uma identidade instintiva até a completa abnegação do ser, e auto-interesse em relação aos outros. Nosso exame desse processo também esclarecerá o dilema da aceitação/não aceitação inerente no relacionamento de amor.
O primeiro desses indivíduos excepcionais foi Enoch, um tataraneto de Ada, que nasceu no ano 622 (3139 AEC). Naquele tempo, a humanidade tinha abandonado o Único D’us de seus pais e sucumbido à idolatria e à perversidade pagã. Somente Enoch “ainda caminhava com D’us”.
Porém, a integridade de Enoch era completamente egoísta; ele estava preocupado apenas com o refinamento e perfeição de seu próprio ser espiritual. O Midrash chega a relatar que, durante muitos anos, ele se dissociou de sua geração corrupta e isolou-se numa caverna.
Não apenas Enoch deixou de ter um impacto duradouro sobre sua sociedade, como também estava em perigo de ser influenciado pelo comportamento corrupto daquelas pessoas. É por isso que Enoch faleceu na “tenra idade” de 365 anos (comparados aos 800 e 900 da vida de seus contemporâneos): “D’us levou-o para Si” antes do tempo, para que o único justo de sua geração não se perdesse.” Pois assim é o relacionamento de um indivíduo com seu ambiente: não há um equilíbrio sustentado. Onde há contato há um fluxo, em uma ou outra direção; nem a pessoa influencia sua sociedade nem é influenciada por ela.

O Fracasso de 120 Anos

Muitas gerações mais tarde, encontramos outro homem justo numa geração corrupta: Nôach, construtor da Arca e regenerador da humanidade após o Dilúvio. Em Nôach, encontramos os primeiros pruridos de um afastamento do “eu” para melhorar e reabilitar o próximo caído em desgraça. No ano 1536 (2225 AEC), D’us disse a Nôach que “o fim de toda a carne está perante Mim, pois a terra está repleta de violência” e que portanto Ele pretendia “trazer um dilúvio de água sobre a terra, para destruir toda a carne” e começar de novo com Nôach e sua família. Nôach é instruído a construir uma arca para que eles possam sobreviver ao Dilúvio. Nossos Sábios relatam que Nôach trabalhou na construção da arca durante cento e vinte anos; todo aquele tempo, ele conclamou sua geração a melhorar seus caminhos e evitar a catástrofe.
No entanto, o Zôhar critica Nôach pelo fato de que, apesar de seus esforços, ele não ter rezado pela salvação de sua geração, ao contrário de Moshê e Avraham que imploraram a D’us para poupar os perversos. Isso implica que, em última análise, para Nôach não era importante o que acontecesse a eles. Se tivesse realmente se importado, não teria apenas pedido a eles que se arrependessem, mas teria implorado ao Todo Poderoso para afastar Seu decreto de destruição – assim como alguém que é pessoalmente ameaçado jamais diria: “Bem, fiz o melhor que pude para me salvar” – e deixaria assim, mas suplicaria a D’us para ajudá-lo.
Em outras palavras, o envolvimento de Nôach com o próximo foi limitado ao seu senso de “o que ele poderia fazer por eles”, em oposição a uma preocupação real com o bem-estar deles. Seu “eu” tinha se ampliado o suficiente para incluir o imperativo de agir pelo bem de outro, reconhecendo que a falta de uma “consciência social” é um defeito no caráter de alguém; mas ele quase transcendeu o “eu” para se preocupar com os outros além da consideração de sua própria integridade.
Isso também explica um aspecto curioso dos esforços de Nôach para fazer contato com sua geração. Quando veio o Dilúvio, Nôach e sua família entraram na arca – sozinhos. Sua campanha de 120 anos não produziu um único báal teshuvá (arrependido)! Talvez Relações Públicas não fosse o ponto forte de Nôach, mas como explicar o fato de que, em todo aquele tempo, ele não tenha conseguido convencer um único indivíduo?
Porém, para influenciar os outros, os motivos da pessoa devem ser puros; nas palavras de nossos Sábios: “Palavras que vêm do coração penetram no coração.” Lá no fundo, uma pessoa sempre sentirá se você realmente se preocupa com ela, ou se está preenchendo uma necessidade sua ao procurar mudá-la. Se sua obra para esclarecer o próximo brota de um desejo de “fazer a coisa certa” – cumprir as mitsvot de “amar o próximo como a si mesmo” e “repreenda seu próximo” – mas sem realmente se preocupar com o resultado, seu chamado não terá a reação desejada. O eco da motivação pessoal, embora seja o mais louvável dos desejos pessoais, será percebido, mesmo que inconscientemente, pelo objeto de seus esforços, e isso terminará por desencorajá-lo.

O Afastamento do Eu

Dez gerações mais tarde, nasceu um indivíduo que elevou o conceito da devoção do homem ao bem-estar de seu próximo a novos cumes altruístas. Esse homem foi Avraham, o primeiro judeu.
Avraham, também, enfrentou um mundo corrupto e pagão; de fato, seu título, “O Hebreu”, está associado ao fato de que “o mundo inteiro ficou de um lado, e ele ficou do outro”. Após reconhecer o Criador, ele devotou a vida a levar a crença e a ética de um Único D’us à sua geração. Em todo lugar que ia, fazia “o nome de D’us ser conhecido no mundo”. Avraham também se preocupava com as necessidades mais mundanas do próximo, oferecendo-lhes sua tenda como um local aberto para
O altruísmo da preocupação de Avraham com seu próximo é demonstrado pela sua ousada intervenção em favor das cinco cidades pecaminosas do Vale de Sodoma. D’us tinha decidido destruir essas cidades por causa de sua perversidade. Avraham pediu a D’us em nome delas, usando os termos mais fortes para exigir de D’us que poupasse as cidades por causa dos poucos justos que elas poderiam conter: “Cabe a Ti não fazer tal coisa” – ele desafiou D’us – “assassinar os justos com os perversos… O Juiz do universo não deve agir justamente?!”
Avraham colocou em risco sua própria integridade espiritual pelo bem dos mais corruptos dos pecadores; ele estava preparado para incorrer na ira de D’us sobre si mesmo, dando precedência à vida física deles sobre seu próprio relacionamento com o Todo Poderoso.
E como as pessoas sentiam que ele se preocupava com o bem delas, corresponderam. Quando Avraham e Sarah deixaram Charan pela Terra Santa, foram acompanhados pelas “almas que tinham feito em Charan” – a comunidade de homens e mulheres que tinham trazido para sua causa. Sessenta e cinco anos depois, ele pôde dizer a seu servo Eliezer: “Quando D’us convocou-me da casa de meu pai, Ele era D’us dos céus mas não da terra: os habitantes da terra não O reconheciam, e Seu nome não era mencionado na terra. Porém, agora eu tornei Seu nome familiar na boca de Suas criaturas, Ele é D’us tanto no céu quanto na terra.”

Sem Cordões Presos

Porém, nem mesmo o amor de Avraham é o supremo amor. Levou mais quatro séculos para a epítome do amor altruísta ao próximo emergir na pessoa de Moshê. A virtude de Avraham sobre Nôach foi que seu objetivo ao se relacionar com outros não estava em realizar o potencial de seu ser social (como era o caso com Nôach), mas em atingir o resultado desejado: transformar o comportamento e caráter deles, trazendo à luz sua essência boa e perfeita. Mas aqui também jazem as limitações do amor de Avraham: em última análise, a bondade de Avraham tinha um motivo oculto. Certo, não era um motivo pessoal; certo, era um motivo que fala sobre o supremo bem do recipiente, sendo consistente com seu verdadeiro eu; porém, mesmo assim era um motivo oculto.
Nossos Sábios descrevem como a hospitalidade de Avraham era apenas um meio para ele atingir seu objetivo de converter os convidados a uma crença em D’us. O mesmo se aplica à corajosa prece de Avraham em favor dos sodomitas. Ele suplicou a D’us para poupá-los por causa dos justos no meio deles – enquanto indivíduos bons permanecem numa cidade, ainda há esperança para os perversos também. Num nível mais profundo, ele estava se referindo ao “justo” dentro do perverso, seu potencial intrínseco para o bem; poupe-os, estava dizendo Avraham, talvez o bem dentro deles consiga triunfar. Tão logo ele soube que os perversos de Sodoma estavam além da esperança, ele cessou suas preces.
Tanto amor e preocupação – pelo bem potencial que alguém vê em outra pessoa – é um amor manchado, embora minimamente, com o egoísmo: alguém está se relacionando com o próximo não como o próximo se vê, mas com um olho na visão do outro sobre ele. Isso faz surgir uma reação de sua parte (expressa, não expressa ou mesmo inconsciente) de que: “Você não se preocupa comigo como eu sou, somente com aquele em que você gostaria de me transformar. Portanto, de maneira alguma você se preocupa comigo.” Sim, o único desejo da pessoa é revelar o ser essencial do outro; porém este é um ser mais profundo, ainda não realizado. O amor deixa de se dirigir ao outro como é expressamente, em vez disso concentrando-se no conhecimento daquilo que ele é de maneira latente, e naquilo que pode e deveria fazer de si mesmo.
Em contraste, o amor de Moshê por seu povo era totalmente abnegado. Era um amor incondicional, sem se preocupar com aquilo que eles deveriam ser ou aquilo que são num nível mais profundo, embora ainda não realizado. Ele os amava como eram, e fez tudo ao seu alcance para satisfazer as necessidades deles, tanto materiais quanto espirituais.
Quando Moshê suplicou a D’us pelos adoradores do Bezerro de Ouro, ele não disse “perdoa-os porque se arrependerão” ou “perdoa-os porque possuem grande potencial” – disse apenas “perdoa-os. E se não o fizeres, apaga-me de Tua Torá.” Ou Tu aceitas o pecador como ele é, ou organizas Tua nação e Torá sem mim.
A diferença entre Moshê e seus predecessores também se reflete na extensão de sua influência sobre seus companheiros. Enoch, com sua integridade completamente auto-dirigida, não teve influência, e foi ele próprio sujeito à influência. Nôach – que estendeu-se até seu próximo, mas somente porque reconheceu que a preocupação com o próximo é parte integrante de um ser perfeito – não era influenciável, mas também não influenciou. O ensinamento e instrução de Avraham, livres desses preconceitos pessoais, foram abraçados por multidões de seguidores; porém como os esforços de Avraham não podiam ser completamente definidos como altruísmo, sua influência foi limitada de maneira correspondente. Atualmente, não temos herdeiros identificáveis dos discípulos de Avraham (o que, na verdade, foi feito das “almas que eles tinham feito em Charan”?) Porém, os efeitos do amor totalmente altruísta de Moshê são eternos: sua orientação e liderança de seu povo produziram uma nação cuja resistência e continuidade ininterrupta, até os dias de hoje, desafia todas as leis da História.

Redefinindo o “Contato”

Para influenciar realmente o próximo, devemos nos dedicar a ele sem considerar se será ou não influenciado. É simplesmente um ser humano que precisa de ajuda. Portanto, ajude-o. Se precisa de algo material, ajude. Se está espiritualmente perdido, ajude.
Muitos consideram importante influenciar um judeu a fazer uma boa ação, uma mitsvá – colocar tefilin, fazer um ato de caridade, evitar uma transgressão moral – se isso levar a um maior envolvimento, e, em última análise, a uma completa transformação.
Mas quando se defrontam com “um caso perdido”, sentem que é um desperdício de tempo. Por que se incomodar? Porque você se preocupa com ele, não somente sobre o que ele deveria ser, o que será, ou aquilo que você enxerga nele. Ele precisa de algo agora mesmo, e você tem o privilégio de poder ajudar. Se você se preocupa com ele porque espera influenciá-lo, então é provável que ele não corresponda. Mas se você se preocupa, corresponda ele ou não, então ele corresponderá.

POR YANKI TAUBER,

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