Por
Sheila Sacks
“Uma
nação é, antes de tudo, um sistema de segredos.” (José Ortega Y Gasset,
escritor e filósofo espanhol, 1883-1955)
Um pouco mais de uma
semana após a morte do promotor argentino Alberto Nisman, em 18 de janeiro, o
autor do livro “Matar sin que se Note”, o também argentino Gustavo Perednik,
doutor em filosofia, escritor e conferencista, revelou que o título da obra
sobre a vida e o trabalho de investigação do promotor não foi a preferida pelo
seu principal personagem. Diante das quatro ou cinco opções de títulos
apresentadas pelo autor, Nisman escolheu a terceira possibilidade, de acordo
com Perednik. Com um sorriso irônico, o promotor apontou o dedo para o título “O
assassinato de Alberto Nisman”, conta o escritor.
Publicado em 2009 e já com
uma quinta edição ampliada, o livro de Perednik é uma versão romanceada da vida
e do trabalho de investigação levado a efeito pelo promotor que há dez anos colhia
provas sobre o atentado ao centro judaico AMIA (Associação Mutual Israelita
Argentina), em 1994, que matou 85 pessoas e feriu mais de 300. Ele destaca que
nos seus encontros com Nisman pode conhecer todos os parâmetros e detalhes da
investigação. “No livro não existe um único dado que não seja real”, avalia. “E
se no título se fala de seu assassinato é porque o ameaçavam e por isso se
podia jogar com essa possibilidade”, explica Perednik que vive em Jerusalém.
Na entrevista ao jornal
“La Nacion”, de Buenos Aires ("Sin Nisman no habría escrito esta crónica
novelada", em 30.01.2015), Perednik também faz elogios ao caráter de
Nisman e afirma que o enxergava como “um indivíduo heroico, idealista, que
queria justiça e se empenhou até o final sem deixar-se deter por nada”. Sobre a
suposta participação do governo argentino na tentativa de encobrir os culpados
do atentado, tese defendida pelo promotor, Perednik garante que Nisman era
centrado na realidade. “Ele somente falava se tinha provas.”
Acordo
secreto
Encontrado morto com um tiro na cabeça no banheiro de sua residência,
Nisman, 51 anos, responsabilizava o governo pela tentativa de acobertar os
suspeitos iranianos apontados como autores do atentado à AMIA e sobre os quais
pesavam pedidos de captura internacional. Sua morte se deu quatro dias após
apresentar denúncia à Justiça contra a presidente Cristina Kichner, seu
chanceler Héctor Timerman e outros assessores, e na véspera de prestar
explicações sobre essas acusações ao Congresso.
A denúncia contida em um relatório de 300 páginas – rejeitada por um
juiz federal três meses depois e arquivada em definitivo pela Justiça em maio -
acusava formalmente o governo de negociar secretamente um acordo com o Irã para
enterrar a investigação em troca da venda de petróleo iraniano à Argentina. Em
2013, os dois países haviam assinado um memorando de entendimento presumivelmente
para revisar a causa judicial e interrogar os suspeitos em território iraniano
devido à negativa de Teerã de extraditá-los. Porém o acordo jamais entrou em
vigência porque apesar de aprovado pelo Congresso foi considerado
inconstitucional pela justiça argentina e tampouco obteve aprovação do parlamento
iraniano.
Nisman fundamentava suas acusações em uma série de escutas telefônicas
envolvendo autoridades, diplomatas e funcionários iranianos, pessoal da
inteligência argentina e políticos. Um dia após a sua morte, a jornalista
Natasha Niebieskikwiat, do jornal “Clarin”, especializada em temas políticos,
revelou que nos dois últimos contatos que teve com o promotor, na quarta-feira
e no sábado (Nisman foi encontrado morto no domingo), ele repetiu uma mesma
frase que a impressionou. “Eu posso sair disso morto”, preconizava a respeito do
conteúdo de suas denúncias. A colunista escreveu que apesar das pressões,
Nisman confiava na solidez de sua investigação e disse que naquele fim de
semana iria se concentrar na preparação de sua apresentação ante a Comissão de
Legislação Penal da Câmara dos Deputados (“Nisman:Yo puedo salir muerto de
ésto”, em 19.01.2015)
Niebieskikwiat falou com Nisman pela última vez no sábado, às 21h17,
através do Whatsapp. Ela conta que Nisman não quis dar nenhuma declaração e
comentou que sempre lia a coluna da jornalista. “No domingo, não respondeu a
nenhuma das mensagens do Whatsapp, apesar de aparecem como recebidas”,
observou, acrescentando que o promotor geralmente respondia às mensagens de
texto enviadas. Segundo a promotora que investiga o caso, Viviana Fein, a
Justiça registrou a morte de Nisman como “duvidosa”.
Jornalista ameaçado
Primeiro a dar a notícia da morte de Nisman, o jornalista Damián Pachter,
31 anos, hoje vive em Israel, depois de abandonar a Argentina seis dias após a
divulgação da morte do promotor e ao perceber que estava na mira de agentes dos
serviços de inteligência. Em entrevista ao jornal “El País”, ele afirmou que
vinha sendo ameaçado pelo Twitter, seguido por agentes policiais e que seu
telefone estava grampeado. Pachter, que tem dupla nacionalidade porque viveu
dez anos em Israel e serviu às suas Forças Armadas, trabalhava na capital
argentina no jornal de língua inglesa, “Buenos Aires Herald”, na versão
digital.
Em conversa com a correspondente Noga Tarnopolky, de Tel Aviv (“Primeiro
um tuíte, depois a fuga para Israel”, em 26.01.2015), Pachter contou que na
tarde de domingo, 18 de janeiro, foi contatado por uma fonte de sua total
confiança que lhe revelou que o promotor estava morto. Mas Pachter somente
tuitou a informação depois das onze da noite, ainda de forma velada, falando
sobre um “incidente” ocorrido na casa do promotor. Meia-hora depois, passando
um pouco da meia-noite, diante dos rumores que a notícia causou, o jornalista postou
uma nova mensagem pelo Twitter em que confirmava a morte de Nisman, com
detalhes: “Encontraram o promotor Alberto Nisman no banheiro de sua casa de
Puerto Madero sobre uma poça de sangue. Não respirava. Os médicos estão lá.”
Para o jornalista os seus tuites tornados públicos naquela noite devem
ter impedido que se fizessem alterações na “cena do crime”, na qual Nisman foi
encontrado morto, daí a insatisfação de setores do governo interessados na
hipótese do suicídio. Em um artigo para o jornal israelense “Haaretz”, logo
depois de sua chegada ao país, Pachter afirma que jamais irá revelar o nome de
sua fonte que assim ficaria vulnerável em sua integridade física. Apesar de até
aquele momento somente dispor de 420 seguidores (atualmente tem mais de 10 mil),
ele elegeu o Twitter pela velocidade e seu efeito de contágio. O que se mostrou
eficiente porque imediatamente vários jornalistas começaram a procurá-lo e a
notícia se multiplicou nas redes sociais.
Entretanto, a saída repentina de Pachter da Argentina ensejou
comentários de uma provável ligação do jornalista com o Mossad, o serviço
secreto israelense. A deputada Elisa Carrió justificou a hipótese ao assinalar
em entrevista que “todos os serviços secretos internacionais estavam seguindo
esse caso” (a denúncia do Nisman). Em sentido oposto, o semanário “Miradas al
Sur” afirmou que a fonte do jornalista foi um médico do “Swiss Medical”, o
primeiro a entrar no apartamento de Nisman. Esse profissional seria amigo de
Pachter, tendo constatado pela rigidez do corpo que a morte teria ocorrida 12 a
15 horas antes (“La teoria conspirativa”, em 25.01.2007).
Em meio às especulações, dois meses depois, de seu exílio em Israel
Pachter encaminha uma representação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
com sede em Washington, pedindo que o estado argentino garanta a sua
integridade física no retorno ao país para seguir exercendo a profissão de
jornalista. No documento de 45 páginas dirigido ao secretário executivo da
Comissão, o mexicano Emilio Álvarez Icaza Longoria, e ao relator especial para
a Liberdade de Expressão, Edison Lanza, do Uruguai, os advogados de Pachter
asseguram que o repórter está em perigo desde que tornou pública a informação.
“O risco que ele corre é grave, urgente e irreparável”, alertam.
Ajuda a Interpol
Designado em 2004 pelo presidente Néstor Kirchner (1950-2010) para atuar
especificamente como promotor especial da causa AMIA, Nisman já vinha
trabalhando nas investigações desde 1997. Em 2006, Nisman acusa formalmente o
Irã de planejar o atentado e o grupo libanês Hezbollah de executá-lo. Um ano
depois, o governo argentino aciona a Interpol (sigla do inglês International Criminal Police Organization) para a captura de cinco iranianos,
membros destacados da república islâmica: Ali Fallhijan, ex-ministro da
Segurança; Mohsen Rezai, ex-comandante da Guarda Revolucionária e atual membro
do conselho que assessora o líder supremo Alí Jamenei; Ahamad Vahidi, ex-chefe
da Guarda Revolucionária e ex-Ministro de Defesa; Mohsen Rabbani (que viveu na
Argentina por 14 anos, até 1998), ex-adido cultural da embaixada do Irã em
Buenos Aires e Ahmad Reza Ashgari, funcionário da embaixada ( “En qué consiste
la causa de la AMIA que investigaba Alberto Nisman”, BBC Mundo, em 19.01.2015).
Seis anos depois, com a reiterada recusa do governo iraniano de entregar
os acusados, Cristina Kirchner anuncia, em janeiro de 2013, um memorando de
entendimento com o presidente Mahmoud Ahmadinejad, do Irã, para que ambos os
países trabalhem juntos no esclarecimento da autoria do atentado. Acordo investigado
por Nisman e que através de seus contatos com os serviços de inteligência
americano, israelense e da própria Argentina pode se municiar de documentos
para embasar a denúncia. Segundo o promotor, o acordo permitiria ao Irã
interferir na investigação e também influir para que a Argentina pedisse a
retirada dos cinco iranianos da lista de procurados pela Interpol.
Entretanto, essa interação que o promotor mantinha com os órgãos de
inteligência foi alvo de críticas, principalmente de autoridades e políticos
governistas. Sua relação com o homem forte da SIDE (Secretaria de Inteligência del Estado, extinta após a morte de
Nisman e substituída pela Agencia Federal
de Inteligencia –AFI), Antônio
“Jaime” Stiuso, de quem obteve grande parte das informações, resultou questionada
em função da apresentação de escutas ilegais como provas. Trabalhando no órgão
desde 1972, Stiuso era diretor geral de Operações e responsável pelos contatos
com a CIA, o serviço secreto americano, o FBI (a polícia federal ligada à
Justiça americana) e o Mossad. Em novembro do ano passado, quebrando um
silêncio profissional de mais de 40 anos, o espião falou ao semanário “Notícias”
e denunciou que vinha recebendo ameaças. Um mês depois foi demitido e em
fevereiro deste ano aposentado compulsoriamente.
O
mesmo destino parecia reservado a Nisman. O promotor foi avisado de que
perderia o cargo na Promotoria por conta de reformas na Justiça, daí a pressa
em formalizar a acusação. Ele vinha recebendo ameaças de morte e vários e-mails
com mensagens intimidadoras foram revelados pela mídia argentina. Segundo a investigação policial, o promotor
manteve contato telefônico por 12 minutos com uma linha em nome de Stiuso, um
dia antes de morrer. O ex-espião deixou a Argentina após a morte do promotor,
alegando ameaças. O tablóide “Perfil” (03.05.2015) informou que suas três
filhas e um neto viajaram para os Estados Unidos sem data de regresso. Também
revelou que fontes do governo argentino confirmaram que Stiuso tem feito
viagens, com assiduidade, entre o Rio de Janeiro, São Paulo e Miami. Para
integrantes da equipe da presidente Kirchner, Stiuso interferiu no trabalho de
Nisman para prejudicar o governo e seria ele o verdadeiro autor da denúncia
sobre o acobertamento dos iranianos.
Em defesa de Stiuso falou o próprio Nisman, ao ser entrevistado pelo
canal de TV “TN” (Todo Noticias),
após tornar pública a sua denúncia contra Cristina Kirchner e poucos dias antes
de morrer. O promotor disse que conhecia o espião e que quando foi indicado
para comandar as investigações sobre o caso AMIA, o presidente Néstor Kirchner
recomendou Stiuso como a pessoa que mais somava informações sobre o ataque. “O
caso AMIA é um atentado terrorista internacional e tenho que trabalhá-lo com
organismos de inteligência”, justificou.
Segurança comprometida
Última testemunha a ver o promotor com vida, o técnico de informática e
auxiliar de Nisman, Diego Lagomarsino, disse à polícia que havia emprestado a
pistola calibre 22, encontrada ao lado do corpo, atendendo pedido da própria
vítima que quis a arma para a sua proteção. Um dia antes de ser encontrado
morto, segundo Lagomarsino, Stiuso tinha telefonado para Nisman e o havia
alertava sobre a possibilidade de seus guarda-costas não serem confiáveis. Disse
ainda para que tivesse cuidado com a segurança de suas duas filhas.
No vídeo da cena da morte feita pela polícia e exibido em primeira mão
no programa “Periodismo para Todos”, da TV argentina, em 31 de maio, o jornalista
Jorge Lanata detalha as irregularidades cometidas pela perícia como a falta do
uso de luvas no tratamento das provas e o descuido no recolhimento das
evidências, com os peritos pisando no sangue do promotor e usando papel
higiênico para limpar o sangue da arma. Lanata, um dos jornalistas mais
conhecidos do país, também mostrou o vídeo para o médico legista americano
Cyril Wetch, consultor e autor de vários livros que envolvem mortes de pessoas
famosas, como o assassinato do presidente John F. Kennedy. Após analisar o caso
por um mês, o especialista concluiu pela probabilidade de homicídio. Em
entrevista ao programa de Lanata, em 12 de julho, ele concluiu que “as
evidências são muito fortes, cientificamente, contra a possibilidade de
suicídio”.
A afirmação de que Nisman foi assassinado já tinha sido feita por sua
ex-mulher, a juíza Sandra Arroyo Salgado, quando em março reuniu a imprensa
para apresentar a conclusão da equipe de peritos contratada por ela para avaliar
os resultados da autópsia. “O relatório descarta com contundência as hipóteses
de acidente e do suicídio”, disse. A juíza revelou que Nisman foi executado com
um tiro na cabeça, de joelhos. “Sua morte é um assassinato que exige uma resposta
das instituições do país.” Sofrendo ameaças e vivendo sob proteção policial, Arroyo
Salgado e suas duas filhas mudaram de residência após a juíza flagrar um
suposto fotógrafo tirando fotos de uma das meninas.
Para o jornalista Jorge
Lanata que manteve contato com Nisman na véspera de sua morte, esse caso não
seria o primeiro no país a ser dado como suicídio. Ele lembra que à época de
Carlos Menem, que presidiu a Argentina por dez anos (1989-1999), esta era a maneira
mais comum de desaparecer com as testemunhas. Convidado pela Abraji (Associação
Brasileira de Jornalismo Investigativo) para falar no congresso promovido pela
entidade em julho, na capital paulista, Lanata focou no caso Nisman e na
atuação da imprensa. Ele criticou a postura do governo kirchnerista que vê os
jornalistas como “inimigos” quando estes discordam da posição oficial.
Mas, passados seis meses da
morte que chocou o país, a imagem de Nisman vem sofrendo um sério revés ao se
tornar pública uma conta bancária não declarada em Nova York e detalhes de sua
vida privada vazados pela própria polícia. “Uma estratégia de enlamear o campo
que funcionou”, avalia Eduardo Fidanza, diretor de um instituto de pesquisas de
Buenos Aires.
Recentemente, uma ampla reportagem sobre a morte do promotor argentino
ganhou relevância nas páginas da revista “The New Yorker”, sob a assinatura de
Dexter Filkins, ex-correspondente das guerras do Iraque e do Afeganistão do
“New York Times”. O jornalista faz um apanhado de todo o histórico da novela
AMIA-Nisman, com depoimentos de jornalistas, juristas, colegas de trabalho, funcionários
americanos que acompanham o processo da AMIA, especialistas em economia e
política externa e da própria Cristina Kirchner, caracterizada por sua atenção
exagerado à aparência e ao uso de botox (“Death
of a Prosecutor”, em tradução livre, Morte de um Promotor, em 13.07.2015).
Sobre a personalidade de Nisman, fica-se sabendo que era um homem meticuloso, amante
da vida noturna de Buenos Aires, praticante de windsurf, vaidoso, regrado na alimentação,
disciplinado, organizado e empenhado, obsessivamente, nas investigações sobre o
atentado à AMIA e em desvendar a real natureza do controverso acordo do governo
argentino com o Irã.