Rabino Nissan Ben Avraham
No início deste Parashá, a Torá usa uma expressão especial: “Diga aos sacerdotes, filhos de Aharon, e lhes diga”. Se trata de uma redundância imperdoável na Língua Portuguesa. Mesmo no hebraico bíblico, que não economiza nas redundâncias, esta parece especialmente estranha.
Isso fez com que os comentaristas aplicassem um significado especial, já no Midrash, e reafirmado pelo grande comentarista Rashi: Esta redundância nos ensina “a alertar os maiores sobre os menores.”
O significado desta frase é que, recai aos adultos a responsabilidade de educarem seus filhos. Isto é óbvio, uma vez que todos entendem que os adultos devem educar as crianças. A obrigação de “ser frutífero e multiplicar-se”, como orienta a Torá no primeiro capítulo do Gênesis, não se limita a dar à luz a uma criança, e, em seguida, deixá-la crescer selvagem. Os pais têm a obrigação de educar seus filhos, para incutir nestes, valores e, ajudá-los a descobrir os poderes e as qualidades que possuem.
Este comando inclui a obrigação de avisar as crianças quando elas desviam do caminho certo, sempre com boas palavras para que estas estejam dispostas a aceitar as instruções paternais. Os pais devem se tornar bons conselheiros dos quais os filhos estão sempre dispostos a ir quando têm problemas ou dúvidas.
Portanto, é evidente que os pais são responsáveis pela educação dos filhos. Por que, então, se repete esta obrigação neste contexto?
Responsabilidade social
Prestando atenção ao trecho do Talmud, no Tratado de Yevamot, de onde Rashi aprendeu este ensinamento, podemos ver que tal frase aparece após uma longa discussão rabínica que devemos examinar.
Em primeiro lugar, está claro nesta discussão, que não estão se referindo aos pais, mas sim ao Tribunal de Justiça, ou a aquilo que poderíamos chamar de “sociedade”.
A sociedade que nos rodeia é certamente parte integrante da educação de nossos filhos e tem um peso inegável sobre estes. A questão é se os vizinhos podem, ou devem, se tronar ativos na educação dos nossos filhos, ou se devem ficar em silêncio, sem interferir no que não lhes diz respeito.
Uma Aula de Talmud
Analisemos aquilo que diz o Talmud (Yevamot 114a). Aproveitemos a oportunidade para aprender um pouco como estudar o Talmud no que se refere a um longo debate rabínico, e as conclusões que devemos tirar dos argumentos contrários e dos favoráveis.
O Talmud começa com uma história ilustrativa no qual descreve uma situação em que se perderam as chaves de um Centro de Estudos e as encontraram no Shabat, num “lugar público”. Sabemos que é proibido transportar qualquer objeto na rua quando não existe um “Eruv” (uma cerca pré estabelecida), ou em qualquer lugar considerado “público” pela Halachá (lei judaica), no dia do Shabat. Portanto, eles não poderiam levar as chaves. O Rabino Yitschac bar Bisna, que havia perdido as chaves, foi então perguntar ao Rabino Pedat o que fazer, e este respondeu que ele poderia levar com ele duas crianças pequenas que ao ver as chaves, por iniciativa própria, as pegariam para levar para casa. Diz o Talmud que o Rabino Pedat é aquele que sustenta a idéia de que “se o tribunal vê uma criança comendo uma carne não-kosher, o tribunal não é obrigado a detê-los”. Em outras palavras, os adultos (pais) não são obrigados a interferir na educação das crianças, ou impedi-los de fazer atos que são proibidos para os adultos. Em seguida, outro rabino, Abaye, que parece não concordar, ou pelo menos não totalmente, afirma que para ele, esta omissão apenas é permitida no caso de transgressões rabínicas e não transgressões explícitas da Torá.
Assim, resumindo, parece que o Talmud apresenta uma situação em que está proibido dizer a uma criança para carregar uma chave no Shabat, mas está permitido que esta transgrida preceitos no Shabat, por iniciativa própria, porém, imediatamente intervém Abaye, dizendo que não devemos tirar conclusões precipitadas, pois está se referindo somente as proibições rabínicas, mas no caso de transgressões da Torá, temos a obrigação de detê-lo.
Contudo, o Talmud procura uma outra prova. E encontra uma Barayta (um texto jurídico-rabínico antigo) que afirma que no caso de um incêndio começar e um não-judeu vier para apagá-lo, você não deve dizê-lo “apague” ou “não apague”, pois seu descanso no sábado não é nossa responsabilidade e, assim, ele o faz por sua própria iniciativa. Mas caso um judeu, menor de idade, vem para apagá-lo, têmos a obrigação de detê-lo, pois sua educação é nossa responsabilidade. E aqui intervêm um outro, grande sábio, Rabi Yochanan, dizendo que talvez se trata de um caso de um menor que o faz pelo bem de seu pai, que o está observando, e assim é como se ele estivesse sendo ordenado. E assim, a sociedade, então, é obrigada a impedir-los de cometer esta transgressão.
O Talmud traz um outro caso, sobre o filho de uma pessoa religiosa que visita seu avô, que não é religioso, e o Talmud diz que não devemos suspeitar que o avô vá alimentá-lo com alimentos proibidos, mesmo caso encontramos uma fruta em sua mão, nós não devemos suspeitar (embora tenhamos dúvida se foram retirados, corretamente, os dízimos necessários para poder comê-la). E novamente intervém Rabi Yochanan dizendo que isto somente nos casos que envolvem proibições rabínicas, mas caso, sejam transgressões mais graves, devemos detê-lo.
E o Talmud traz mais um exemplo, dizendo que um bebê pode mamar leite de uma mulher não-judia ou mesmo de um mamífero não-kosher, e não devemos nos preocupar com isso, mas quando está maior, está proibido. Mas o próprio Talmud questiona, dizendo que talvez seja o caso de um bebê que está em perigo, em que sem esta amamentação ele pode morrer, e, portanto, permite-se mamar o leite de um mamífero proibido, mas quando se trata de alguém mais velho, que não está correndo perigo, ou, pelo menos, pode-se desconfiar que não esteja, não podemos permitir algo assim, sem antes verificar seu estado.
Três versos
Em seguido, o Talmud oferece três situações, no qual examinam os textos da Torá Escrita (no livro de Vayicrá) de acordo com as interpretações da Torá Oral. A primeira refere-se a um versículo (11:42) que diz “não a comemos, pois são detestáveis” no sentido de que não somente não devemos ‘comer’ mas também não devemos permitir que os outros (as crianças) comam. A segunda é no capítulo 17:12 que diz que “ninguém entre vós comerás sangue”, orientando os adultos a impedir que as crianças o façam. E a terceira, no capítulo 21:1, com o verso no qual abrimos este artigo. E em todos estes, diz o Talmud, a sociedade (o tribunal) pode, apenas proibir que os instiguem a cometer proibições, ou encorajá-los a não fazê-lo, mas quando o fazem por conta própria, não está proibido. E cada um dos exemplos que mencionamos possui suas propriedades especiais, uma vez que os animais proibidos têm a particularidade de que alguns deles são proibidos, mesmo em quantidades mínimas, e o sangue é uma proibição cujo o transgressor é punido severamente com o “Caret”, e o versículo desta nossa Parashá, que parece focado apenas nos Cohanim (sacerdotes), e, assim, os três textos são necessárias para nos ensinar que, em nenhum caso, estamos obrigados a evitar que as crianças cometam estas transgressões.
E esta é a conclusão do Talmud, ao final de um debate que leva metade de uma página.
Conclusões
O Shulchan Aruch, no capítulo 343 do livro Orach Chayim, afirma precisamente que, ‘uma criança que come comida não-kosher, ou transgride e profana o Shabat, e etc., se o faz por iniciativa própria, o tribunal não é obrigado a detê-lo, mas seu pai (ou mãe) estão obrigados a repreendê-lo para afastá-lo da proibição. Rabi Moshe Iserlez afirma que tudo isso quando a criança é muito pequena, mas quando idade já está maior, todos estão obrigados a mantê-lo longe da proibição.
E o Rabino Israel Meir Hacohen acrescenta que, o que vimos anteriormente, refere-se aos casos que a criança o faz por iniciativa própria, mas quando somos nós que o alimentamos com um alimento proibido, se trata de uma transgressão, mesmo que seja uma proibição rabínica, e, incluindo um bebê que não entende nada. E também está proibido de dizer a um não-judeu que alimente a criança com algo proibido, e ainda mais, dizer a própria criança que coma algo proibido.
E dissemos que tudo isto se refere aos “vizinhos”, mas os pais certamente estão obrigados em educar, ativamente, as crianças desde tenra idade e prepará-los para que, quando cresçam e, comecem a ser responsáveis por suas ações, saibam e estejam acostumados a guardar os mandamentos da Torá com amor e devoção.
Em nossa geração está se tornando uma tarefa difícil e complicada, com crianças que desde muito pequenas já protestam frente a qualquer imposição por parte dos pais, e, portanto, devemos aprender a fazê-lo com paciência, empatia, com calma e, é claro, com muito amor.