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De volta à Sefarad

De volta à Sefarad
Sefarad - Toledo

Por Sheila Sacks
“Esta singela e preciosa chave de ferro simboliza o magnífico lar de nossos antepassados espanhóis. Meu bisavô amarrou a chave em seu cinto e nunca mais se separou dela” (do livro “A saga do marrano”, de Marcos Aguinis).

Em 2015, judeus expulsos da Espanha e Portugal há 523 anos terão a oportunidade de reconquistar as suas nacionalidades ibéricas a partir das novas leis aprovadas em ambos os países.  A estimativa é que existam 3,5 milhões de judeus praticantes de ascendência sefardita (originários da Península Ibérica – Sefarad, em hebraico) vivendo em Israel, França, Estados Unidos, Turquia, México e em países da América do Sul.

No Brasil são 40 mil judeus sefarditas (que seguem a religião judaica) e outros milhares de descendentes de judeus originários da Espanha e Portugal que se afastaram do judaísmo há dezenas de gerações. Para essa grande maioria não será fácil preencher todos os requisitos burocráticos e legais para a obtenção das cidadanias.

As dificuldades para comprovar com documentos válidos uma origem familiar que remonta a um passado de cinco séculos certamente vão barrar a pretensão não só dos que se mantêm dentro das normas religiosas judaicas como principalmente daqueles descendentes de marranos (vocábulo espanhol depreciativo que designava os cristãos-novos) ou B’nei anussim (“filhos dos forçados”, em hebraico), que por razões diversas se distanciaram de sua religião nativa.

Busca de identidade

A identificação da Espanha com “Sefarad” se consolidou no século 1 através da obra “Targum Jonathan”, do rabino Yonatan Ben Uziel, uma tradução com comentários do livro dos profetas (Nev’im). O termo apareceu uma única vez na citação bíblica do profeta Ovadia (um dos 48 profetas de Israel) que viveu no século 9 antes da Era Comum e se refere a uma cidade bíblica de localização incerta. Ovadia foi contemporâneo do profeta Eliahu (Elias), o mais venerado profeta depois de Moisés. 

No livro “Nunca podras volver a casa” (Nunca voltarás a casa), o jornalista espanhol José María Carrascal, por muitos anos correspondente em Nova Iorque do diário “ABC”, de Madri, narra a busca íntima e pessoal de um professor universitário por suas origens na antiga Sefarad. Publicada em 1997, a história acompanha a viagem do americano Simon Told (Simón Toledano) à cidade espanhola de Toledo, logo após a morte da avó de origem sefardita. Ele parte ao encontro de um passado remoto de muito sofrimento, sangue e glória, levando consigo a chave da casa deixada para trás há centenas de anos e zelosamente guardada por seus antepassados.

Intolerância e exílio

Coube aos reis católicos Fernando II, do reino de Aragão, e Isabel I, de Castela editar o decreto de expulsão dos judeus da Espanha, em 31 de março de 1492, logo após obterem a rendição de Granada, o último bastião mourisco nas terras ibéricas. O historiador especialista em história judaica medieval, Yitzhak Baer (1888-1980), calcula que provavelmente existiam 300 mil judeus na Espanha nessa época. Pelo decreto, os judeus tinham três meses para sair do país ou optarem pela conversão. Cerca da metade dos judeus se tornou cristã e uma multidão em torno de 150 mil se lançou ao exílio.

Muitos judeus fugiram para Portugal – aproximadamente 80 mil -, mas quatro anos depois, em 5 de dezembro de 1496, o rei português Dom Manuel I promulga um decreto semelhante ao édito dos reis espanhóis, impondo a conversão como condição para a permanência da comunidade judaica no país. Tem início um novo êxodo e o rei fecha os portos, com exceção o de Lisboa, para tentar impedir a fuga em massa. Aqueles que ficam são batizados à força e embora publicamente se apresentem como seguidores da fé católica, uma grande parcela continua seguindo os ritos judaicos em segredo.

Entretanto, havia um clima de intolerância em relação aos “conversos” ou cristãos-novos que culminou no massacre de 1506, quando mais de dois mil convertidos foram mortos nas ruas de Lisboa por uma população assolada pela peste negra (bubônica) e pela fome que culpava os judeus recém-batizados por tais infortúnios. 

Depois da carnificina que durou três dias os remanescentes judeus partiram de vez de Portugal tomando o caminho para o norte da África (Marrocos, Tunísia, Argélia, Egito), Turquia, Grécia, Europa Central e as terras do novo mundo na esperança de se libertarem das perseguições e do medo.

Inquisição além-mar 

Na Espanha, antes mesmo do decreto de expulsão dos judeus, os reis Fernando e Isabel, com o apoio da Igreja, já tinham instalado oficialmente a Inquisição em 1478, nomeando o frade dominicano Tomás de Torquemada como Inquisidor Geral. Por mais de 300 anos a Inquisição espanhola (que se estendeu até 1834) perseguiu e matou judeus e conversos, sob a acusação de “prática secreta de ritos judaicos”.

Com a descoberta do novo mundo, vieram os missionários seguidos pelo aparato da Inquisição que implantou tribunais do Santo Ofício em Lima, no Peru (1570), na cidade do México (1571), e em Cartagena das Índias, na Colômbia (1608). No livro “A Inquisição” (1999), o pesquisador e escritor Michael Baigent (1948-2013) e seu parceiro Richard Leigh (1947-2007) detalham a presença dessa instituição no continente americano.
 

Segundo os autores, a jurisdição do tribunal do Peru estendia-se principalmente ao Chile e à Argentina, no sul, e às ilhas do Caribe, ao norte. Em relação ao tribunal do México, este exercia a jurisdição na América Central, possessões espanholas na América do Norte e também nas Filipinas sob o domínio espanhol, do outro lado do Pacífico. O de Cartagena abrangia o Panamá, Guianas, Antilhas, Colômbia e Venezuela.

Centenas de cristãos-novos de ascendência portuguesa acusados de serem judeus clandestinos tiveram as suas propriedades confiscadas, foram presos e condenados por esses tribunais a morrerem nas fogueiras dos autos de fé (execução coletiva dos sentenciados). A primeira dessas execuções teve lugar na cidade do México em 28 de fevereiro de 1574, mas foi em 11 de abril de 1649 que aconteceu o chamado “grande auto”, envolvendo 109 acusados de heresia, sendo que 20 deles foram queimados vivos em praça pública. Em Cartagena, o primeiro auto de fé se deu em fevereiro de 1614, com 30 condenados, e em Lima, uma execução ocorrida em 1639 arrolou 80 réus, dez dos quais foram imolados na fogueira acusados de prática de judaísmo. Entre eles, o médico Francisco Maldonado da Silva, nascido na província de San Miguel de Tucumán, na Argentina.

Chave de casa

Acerca desse personagem, um cristão-novo que reassume o judaísmo e é condenado à morte na fogueira pela Inquisição, documentos registram que Francisco Maldonado era filho de um cirurgião português converso, Diego Nuñez da Silva, de origem lisboeta, e de mãe católica, Aldonza Maldonado. Nascido em 1592, exatamente um século após a expulsão dos judeus da Espanha, ele é o protagonista do romance do escritor e médico argentino Marcos Aguinis.
Exibindo um retrato sem disfarces de um período colonial cruel e corrupto que se impôs nos territórios da América do Sul sob o domínio da coroa espanhola e da Inquisição, “A saga do marrano” (1991) também inclui em sua narrativa a tradição sefardita de preservar a chave da casa original, sempre sonhando com um possível retorno. Em um dos capítulos, Diego Nuñez revela a um Maldonado criança o segredo da chave escondida: “Meu pai entregou-a para mim, em Lisboa. E ele recebeu de seu próprio pai. Provém da Espanha, de uma formosa casa na Espanha. Nossos antepassados acreditavam retornar a essa casa. Por isso, guardamos a chave.”

Maldonado foi queimado vivo em um domingo, 23 de janeiro de 1639 (aos 47 anos). Com base em documentos do arquivo da Inquisição, o escritor Ricardo Palma (1833-1919), um dos intelectuais peruanos mais respeitados, descreveu o momento da execução em seu livro “Anais da Inquisição de Lima”, publicado em 1863. “Às 3 da tarde, no instante em que iam se lançados às chamas os dez condenados, armou-se um furioso furacão, fenômeno pela primeira vez visto em Lima. A violência do vento rompeu o toldo que recobria o palanque, levando o cirurgião Maldonado a exclamar: - Assim dispõe o D’us de Israel para ver-me cara a cara lá do Céu onde está!

Mais de 30 mil marranos foram condenados à morte e queimados vivos pela Inquisição. Outras dezenas de milhares foram submetidos à tortura física. Qualificação injuriosa, marrano significa em espanhol, segundo Aguinis, “porco jovem recém-desmamado”, referência irônica à proibição dos judeus de comer carne suína. A palavra se disseminou entre as populações espanhola e lusitana que a usavam como um insulto aos judeus convertidos ao cristianismo que mantinham em segredo laços com a sua antiga fé.

Brasil Colônia

Em Portugal, a Inquisição estabeleceu-se em 1536 e somente foi abolida 285 anos depois, em 1821. Contava com quatro tribunais instalados em Lisboa, Coimbra, Évora e Goa, a então colônia portuguesa na Índia. No Brasil Colônia, os culpados de crimes contra a fé católica eram levados para Lisboa para serem punidos. Cerca de 1.200 cristãos-novos foram presos nas capitanias brasileiras acusados de prática de judaísmo. O historiador português do século 19, José de Lourenço de Mendonça, informa em seu livro “A Inquisição em Portugal” que ocorreram 760 autos de fé, com 31.349 sentenciados e 1.813 execuções, resultantes de mais de 40 mil processos.

Um dos processos mais conhecidos foi o que condenou o teatrólogo e poeta Antônio José da Silva, descendente de cristãos-novos.  Nascido no Rio de Janeiro em 1705, ele foi executados pela Inquisição, em Lisboa, depois de ser preso algumas vezes. Historicamente conhecido como “o judeu”, Antonio da Silva estudou direito na Universidade de Coimbra e escreveu poemas, sátiras, comédias e libretos para óperas. Acusado de “judaizante”, foi amarrado a um poste, degolado e depois jogado à fogueira no auto de fé de 18 de outubro de 1739. Tinha 34 anos.

Para os inquisidores, a família do poeta, pelo lado materno, ainda preservava algumas tradições judaicas como limpar a casa às sextas-feiras (para o descanso de sábado) e cumprir o “grande jejum de setembro” (referência ao Yom Kipur, o dia do perdão, quando os judeus permanecem até 25 horas sem comer e beber). A mãe e a esposa de Antonio da Silva também foram perseguidas e presas pela Inquisição.

Rabino marrano

Em 1957, um pouco mais de um século após a tragédia da Inquisição ser definitivamente extirpada na Península Ibérica, nascia em Palma, na ilha espanhola de Maiorca, aquele que seria o primeiro rabino marrano da história. Proveniente de uma família católica praticante que ia semanalmente à igreja, Nicolau Aguilo iniciou sua revolução espiritual ainda na pré-adolescência. A revelação da mãe de que eram descendentes de “chuetas” (termo pejorativo catalão que significa ‘porco’, equivalente ao termo marrano) abalou o menino, mas também o fez decidir a abraçar a sua herança judaica. Viajou para Israel, estudou profundamente o judaísmo, converteu-se formalmente e assumiu o nome hebraico de Nissam Ben-Avraham.

Em 1991, ele tornou-se rabino e 20 anos depois foi enviado à Espanha como emissário religioso da organização “Shavei Israel” (Retorno ao povo Israel). Desde 2010, o rabino Nissam, de 58 anos, atende as comunidades marranas de Barcelona, Alicante, Sevilha e Palma de Maiorca, ministrando aulas de religião e de conhecimento da cultura e tradições judaicas a todos que o procuram. Mas, a sua principal missão é ajudar aqueles que pretendem assumir oficialmente a “perdida” identidade judaica.  

O diretor da “Shavei Israel”, Michel Freund, em entrevista ao jornal israelense “Jerusalem Post” (2.8.2010), falou da importância do trabalho da instituição, sediada em Jerusalém, que mantém atualmente emissários na Espanha, Portugal, Polônia, Rússia, Itália, Colômbia e El Salvador. Disse ele: “Quando as pessoas descobrem que têm raízes judaicas, elas desenvolvem uma afinidade em relação a Israel e ao judaísmo, mesmo permanecendo católicas.”


A reportagem destaca a probabilidade de a Espanha e Portugal abrigarem mais de 100 mil descendentes de marranos, e o Brasil, mais de três milhões. Segundo a matéria do jornalista Mark Rebacz (“First ex-marrano israeli rabbi returns to Spain as emissary”), pesquisadores do tema avaliam que nosso país reúne a maior comunidade de B’nei anussim do planeta. (Em 07.02.2015)

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