Como a rosa entre os espinhos... (Cântico dos Cânticos - Shir HaShirim, 2:2)
Por Sheila
Sacks
Em 2006,
mais de duas décadas após a publicação de “O Nome da Rosa”, que até então
acumulava mais de 15 milhões de exemplares vendidos, o italiano Umberto Eco,
professor universitário de linguística e autor da façanha, ainda precisava
explicar aos jornalistas que o entrevistavam o real sentido e o significado do
título de sua obra. Publicado em 1980, quando o autor tinha 48 anos, o livro
foi levado às telas em 1986, o que contribuiu para popularizar um enredo
policial que discorre sobre estranhas mortes que se sucedem em um monastério
medieval que abriga uma antiga biblioteca.
Dois anos
depois da primeira edição, em atenção aos seus leitores mais curiosos, Eco
escreveu um pequeno livro de pouca mais de 60 páginas – “Pós-Escrito ao Nome da
Rosa” - onde faz considerações sobre o sistema de trabalho que utilizou para o
desenvolvimento de seu best-seller. Mas, em relação ao real significado do
título, ele manteve o suspense: “Um título, infelizmente, é uma chave
interpretativa. Um título deve confundir as ideias, nunca discipliná-las”,
afirmou no intuito de encerrar a polêmica.
Ambientado
no século 14, o livro inicialmente ganharia o título de “A Abadia do crime”, o
que foi descartado, segundo o autor, porque “fixaria a atenção do leitor apenas
sobre a intriga policial”. Eco reduz ao acaso a escolha do título, admitindo,
contudo, que a ideia de usar o nome da rosa o agradou devido à rica simbologia
e a mística religiosa que envolve a flor.
Para
embaralhar ainda mais a mente do leitor, o livro de mais de 500 páginas se
encerra com uma frase redigida em latim: “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus” (A
rosa antiga permanece no nome, nada temos além do nome). Emprestada do
monge beneditino Bernard Morliacense, que viveu no século 12, a frase original
presente no texto latino “De contemptu mundi” contém o vocábulo “roma”, ao
invés de “rosa”, em alusão à antiga capital do império romano. O que dá sentido
à frase, pois do histórico poder de Roma, em nossos tempos, só resta o
nome.
A rosa do “Zohar”
Coincidentemente,
em 1980, um mês antes do lançamento de “O nome da Rosa”, que ocorreu em
setembro, outro livro é publicado tendo a rosa como título. Escrito pelo rabino
e filósofo israelense Adin Even Steinsaltz, a obra de apenas 165 páginas
intitulada “A rosa de treze pétalas” traz como tema a teologia e a cosmologia
nativas do judaísmo conhecidas como Cabalá (‘receber’, em hebraico).
Steinsaltz
abre o livro com o trecho inicial do “Zohar” (‘esplendor’, em hebraico;
pronuncia-se zôhar), a obra de
referência da Cabalá, que dá nome à rosa e descreve a sua conexão com o povo de
Israel. Está escrito: “Quem é a rosa? É Knesset Yisrael, a
comunidade de Israel. Pois há uma rosa acima e uma rosa abaixo. Quanto à rosa
entre os espinhos, ela tem vermelho e branco, como Knesset
Yisrael tem justiça e piedade. Quanto à rosa de treze pétalas,
como Knesset Yisrael ela tem treze atributos de compaixão
envolvendo-a por todos os lados.”
Continuando
a sua descrição da rosa mística, o “Zohar” estabelece: “E há cinco pétalas
fortes sobre as quais a rosa é formada, e elas foram chamadas de salvações e
agora são conhecidas como os cinco portões. E esta rosa é chamada de cálice da
bênção, sobre o qual dizem: Eu beberei do cálice da salvação...”
(Salmos – Tehilim, 116:13).
Simbologia hebraica
Segundo os sábios de Israel, a rosa original tinha treze pétalas em cima
e cinco pétalas mais rígidas na base. As treze pétalas ao redor da rosa
corresponderiam aos treze atributos da misericórdia divina revelados ao profeta
Moisés (Êxodo – Shemot, 34:6-7) e que constituem a base das orações em Yom
Kipur (Dia do Perdão) e nos dias de jejum, quando são recitados. Ao nome divino
são associados a compaixão, piedade, verdade, purificação e principalmente o
perdão.
Ainda
sobre a simbologia hebraica da rosa, o cientista, filósofo e pesquisador
Michael Laitman, russo de nascimento e que vive em Israel há 40 anos, observa
que treze também são as palavras divinas que como pétalas cercam e protegem
Israel. Autor de 30 livros sobre a sabedoria da Cabalá, ele explica que os
vocábulos estão presentes nas duas frases iniciais do Gênesis (Bereshit),
inseridos entre o nome divino citado duas vezes. As palavras funcionariam
como uma preparação para a purificação e correção da comunidade de Israel,
preparando-a para receber os treze atributos da misericórdia.
Em relação às cinco pétalas, Laitman analisa o significado de seu
ensinamento: “As cinco folhas rígidas (sépalas) que cercam a rosa simbolizam a
salvação” (elas têm a função de guardar a rosa dos espinhos que são entendidos
como os nossos desejos egoístas). Ele lembra que a rosa também é comparada ao
cálice sagrado: “Assim como o cálice da benção deve se apoiar em cinco dedos e
não mais, também a rosa se assenta em cinco folhas rígidas (sépalas) que equivalem
aos cinco dedos.” A rosa corresponderia ao cálice mencionado nos Salmos (Eu
levantarei o cálice da salvação...).
Manuscritos
escondidos
Escrito no
século 2 pelo Rabi Shimon Bar Yochai (Rashbi), o “Zohar” reúne todo o
conhecimento espiritual judaico dos 3 mil anos anteriores, em especial os
ensinamento da “Torá” (Pentateuco ou os cinco livros de Moisés). Nascido na Galileia,
sob o domínio romano, Rashbi viveu em uma caverna onde escreveu a sua obra. Ele
tinha participado da rebelião judaica contra os romanos liderada por Simão bar
Kochba (ocorrida entre 132 a 135) e teve que se esconder para não ser
executado. Sessenta anos antes o Segundo Templo de Jerusalém tinha sido
destruído e os judeus condenados a um exílio que durou perto de dois mil anos.
Rashbi
faleceu em 160 da era comum, aos 80 anos, e foi enterrado em Meron, no norte de
Israel, perto de Tzfat (ou Safed), a cidade que se tornou o centro cabalístico
de Israel. Por mais de mil anos os escritos do “Zohar” permaneceram escondidos
em uma caverna sendo descobertos no século 13. Coube ao sábio espanhol Moses de
Leon (1238-1305) a tarefa de compilar e publicar o seu conteúdo. Segundo o
próprio “Zohar”, os segredos de sua sabedoria seriam revelados a todos, ao fim
de seis mil anos, período atribuído para a correção da
humanidade.
Missão e essência
No livro
“A Rosa de 13 pétalas”, Steinsaltz chama a atenção para a missão que cada ser
humano deve executar no mundo visando à correção da alma, uma tarefa específica
que ninguém mais pode cumprir, mesmo que existam pessoas melhores e mais
capacitadas para realizá-la. Contudo, somente àquela pessoa está destinada a
fazê-la, de uma maneira pessoal e nas circunstâncias que lhe pertencem.
Isso
porque o destino e a correção de uma
pessoa não estão ligados somente com as coisas que ela própria faz ou cria. As
existências anteriores de cada um têm influências consideráveis, visto que a
vida é uma continuidade e determinados elementos que parecem não pertencer ao
presente podem subir à superfície e será preciso completá-los ou corrigi-los. Cada
alma tem uma determinada essência fundamental e para evoluir e se elevar ao
nível correto é preciso pôr em ordem a parte que lhe cabe.
Leitura diária
Pelo
calendário judaico estamos no ano de 5775 (correspondente a 2015), menos de
três séculos do alvorecer messiânico, e apesar do conteúdo do “Zohar” se manter
incompreensível para a maioria, a obra de Rashbi
é acessada por milhões de pessoas que se dedicam a sua leitura diária, afirma
Laitman que é membro do “World Wisdom Council” (Conselho Mundial da Sabedoria),
ligado ao “Clube de Budapeste”, uma organização de pensadores e filósofos de
diferentes religiões e tradições.
Mas, assim
como o “Zohar”, outros documentos hebraicos foram escondidos em cavernas na
Terra Santa e lá permaneceram por centenas de anos. Um exemplo são “Os
Manuscritos do Mar Morto”, documentos com regras e recomendações religiosas
escritas por membros da seita judaica dos essênios do século 1 e descobertas em
1947. Em “O nome da Rosa”, o escritor
inspira-se nesses procedimentos milenares para montar a sua história e faz da biblioteca
do mosteiro uma espécie de caverna que esconde uma obra antiga e rara,
dada como perdida e condenada pela Igreja.
O livro em
questão seria uma continuação da “Poética” do filosofo grego Aristóteles
(384-322 antes da era comum), que trata da comédia e das
virtudes do riso, um tema que a Igreja julgava estar associado à frivolidade e
que dificultava a prática da fé. Aproximando a realidade da ficção, Eco
reforça a percepção de que, para determinadas gerações, livros podem ser
potencialmente perigosos e, portanto, passíveis de serem destruídos.
A rosa do paraíso
Historiadores
afirmam que a rosa é uma flor de origem oriental, com mais de cinco mil anos.
Porém, a partir de descobertas de folhas fósseis de rosas em diversos locais do
planeta, cientistas atestam que sua origem passa dos 25 milhões de anos, e é
anterior à humanidade. No século 3, o rabino Joshua ben Levi, descreveu o Gan
Eden (jardim do Éden) como uma paisagem de vales, rios e murtas, onde
crescem 800 espécies de rosas. A descrição está nos “Midrashim” (no singular,
Midrash, que significa estudo, em hebraico), manuscritos explicativos dos
ensinamentos divinos em forma de parábolas, enigmas e histórias. As narrativas
inicialmente orais, tendo como tema os versículos da “Torá”, foram compiladas e
redigidas por sábios judaicos no ano 500.
Atualmente,
a referência mais singular (e controversa) a associar as rosas ao judaísmo
situa-se na cidade de Roma, onde a prefeitura criou um jardim municipal de
rosas, o “Roseto Comunale”, sobre o cemitério judaico “L’Orto degli Ebrei”,
datado do século 17. A história, revelada em 2014 pelo jornal israelense
“Haaeretz”, começou em 1934, quando o governo fascista de Benito Mussolini
resolveu construir uma avenida atravessando o cemitério. As autoridades tinham
prometido à comunidade judaica remover às lápides, porém o cemitério foi
destruído.
Em 1950, dois
anos após o término da Segunda Guerra, a municipalidade obteve o acordo dos
judeus romanos que sobreviveram à tragédia da “Shoá” (Calamidade, em hebraico,
ou Holocausto) para que o antigo cemitério fosse transformado em um parque de
rosas. Uma pequena placa de pedra no formato das tábuas dos 10 mandamentos e
alamedas desenhadas em forma de uma menorá, o candelabro judaico de sete
braços, lembram a origem judaica do espaço.
Reunindo
mais de mil variedades de rosas de vários países, o “Roseto Comunale”, hoje com
10 mil metros quadrados, é procurado por turistas e apreciadores de
flores. Porém, um aviso alerta para o fato de que milhares de restos
mortais jazem no subsolo, o que faz com que a maioria dos judeus, por motivos
religiosos ou por decisão pessoal, sinta-se impedida de visitar esse paraíso
terreno no coração de Roma.
Em
21.01.2015