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A mulher na tradição judaica

A mulher na tradição judaica
por Rabino Alexandre Leone

Ao longo na nossa milenar historia, o papel da mulher na comunidade judaica tem evoluído em paralelo com os costumes e praticas da várias sociedades e épocas, em que se constituiu o povo judeu. No entanto, em geral a condição da mulher numa época da Antiguidade ou Idade Media, sob domínio cristão ou muçulmano, era melhor entre os judeus do que entre os povos circundantes. 

Mesmo nas épocas quando dominava o patriarcado, que se fazia refletir na Halachá, o direito judaico, a tendência das decisões rabínicas eram a de dignificar e proteger a condição feminina. Com a chegada da modernidade, a condição social da mulher tem passado por muitas transformações e isso tem se refletido nas diferentes posturas que as varias correntes do judaísmo contemporâneo tem tomado com relação a esse assunto. Portanto, para se entender o papel da mulher judia no contexto atual uma rápida olhada pela historia judaica deve ser feita.

Existem duas narrativas da criação da mulher na Tora Escrita. Na primeira (Gen. 1:27), a mulher foi criada juntamente com o homem, os dois criados a imagem de Deus. A eles dois juntos, o homem e a mulher, foram dados o domínio dos animais e a tarefa da procriação. Na segunda narrativa (Gen. 2: 21 – 25), é relatado que a mulher foi criada ao lado do homem para ser sua parceira. Ao homem é dito que deveria deixar seu pai e sua mãe e unir-se a sua esposa. Desse modo o pensamento judaico dos tempos bíblicos reconhecia que a condição inferior da mulher, naquela época, não era a vontade original de Deus. Na Antigüidade o judaísmo formou-se no contexto das sociedades patriarcais do oriente médio daquela época. 

Segundo o texto bíblico o sacerdócio e a monarquia eram tarefas masculinas. A tarefa principal da mulher consistia em cuidar da casa e criar os filhos. Por outro lado, o texto bíblico descreve mulheres desempenhando papeis proeminentes como os das matriarcas, de Miram a profetisa, de Débora a juíza, de Hulda também profetisa, Ruth, Yael, de Ester a rainha.

No mesmo período, as mulheres israelitas em vários aspectos eram tratadas de modo mais equânime pela lei bíblica do que as mulheres dos povos circundantes. A mulher na Grécia, por exemplo, tinha um status muito mais inferior em sua cultura, do que a mulher judia na Antigüidade tardia. Muitos dos direitos da mulher judia eram salvaguardados e sua liberdade respeitada e preservada. A mulher deveria ser propriamente mantida por seu marido, e ainda que a poligamia fosse legalizada, a monogamia era tida como o ideal judaico.

Durante o período talmúdico (séculos II a te o IX) apesar de opiniões negativas com relação à mulher por parte de alguns rabinos, os direitos das mulheres eram protegidos pelos códigos rabínicos. O Talmud declara que o homem é incompleto sem a mulher. Os rabinos também declararam que cada época deveria ser redimida pelas mulheres justas daquela geração. Da mesma forma que no período bíblico, sob a halakhá, a lei judaica rabínica, as mulheres tinham um tratamento muito melhor do que suas contemporâneas não judias. Por exemplo, uma mulher judia não poderia casar contra sua vontade. Uma ketubá, um contrato formal de casamento, deveria ser-lhe providenciada para salvaguardar os seus direitos no caso de ela se divorciar. Um marido não poderia deixar de satisfazê-la sexualmente por longos períodos de tempo.

De acordo com a halakhá medieval, a condição feminina era considerada como tendo um estatuto jurídico separado com seus direitos e deveres específicos. Os rabinos prescreveram três mitzvot, que eram especialmente designadas para as mulheres: A chalá, a separação da massa do pão; o acendimento das velas de Shabat e a taharat mishpachá, o cuidado com a pureza familiar e as leis de nidá e mikve. Como principio geral as mulheres foram liberadas, não proibidas, da performance dos mandamentos positivos que possuem um horário fixo (mitzvot shel zeman grama), tais como tocar o shofar, morar na suká, usar o talit e os tefilin e recitar o Shemá. Porém deveriam acender as velas de Chanuká, participar da leitura da Meguilá. O propósito de tais regulamentos era evitar o incomodo para as mulheres de terem que se responsabilizar com estas mitzvot, e em resultado se ausentarem do lar.

É interessante notar, no entanto, que na mística judaica, desse período, desenvolveu-se uma projeção da Divindade na forma feminina como Shekhiná, assim como no período bíblico a Sabedoria Divina era personificada na forma feminina.

A isenção das mulheres das mitzvot com tempo fixo tornou-se um problema na atualidade, na medida em que um crescente número de mulheres vem buscando igualdade na observância judaica. Em geral a halakhá sugere que a mulher poder escolher voluntariamente cumprir essas mitzvot ainda que ela não seja obrigada.

As mudanças do papel das mulheres nas sociedades ocidentais, que tem conseguido igualdade jurídica e uma sensível melhoria de seu status social e civil, tem influenciado um crescente numero de vozes femininas a clamarem por igual consideração dentro da comunidade judaica. O papel feminino tradicional está deixando de ser aceito como natural nas sociedades ocidentais, e passa a ser encarado como uma condição histórica superada pelas mudanças ocorridas ao longo de século XX.

A ortodoxia tem sido muito reticente com relação às mudanças básicas necessárias. Principalmente nos círculos ultra-ortodoxos uma posição reativa tem sido assumida proibindo terminantemente quaisquer mudanças como heresias. No entanto, entre os ortodoxos modernos (corrente sem representação no Brasil) as mulheres tem incrementado sua participação nos serviços religiosos e envolvendo-se mais no estudo da Torá. Em muitas sinagogas ortodoxas modernas nos Estados Unidos e Israel a separação feminina no culto, mechitzá, tem sido revista de forma a dar para elas mais participação. Em muitas sinagogas dessa linha agora as mulheres sentam-se ao lado dos homens na sinagoga, não mais atrás como entre os ultra-ortodoxos. Mesmo assim os papeis sexuais têm sido mantidos e os serviços continuam sendo não igualitários, mesmo que estas mulheres e homens vivam esta igualdade na sociedade geral. Em Israel mulheres têm sido escolhidas por rabinos ortodoxos moderados para servir em tarefas de grande responsabilidade mesmo que objeções muito fortes tenham surgido entre os círculos ultra-ortodoxos. Há mesmo a notícia de mulheres que foram ordenadas rabinas por grupos ortodoxos moderados.

Os movimentos não ortodoxos têm sido muito mais abertos às novas demandas e a influencia do feminismo. As mulheres tem ampliado sua participação no ritual judaico em congregações reformistas, conservativas e reconstrucionistas. Os reconstrucionistas permitem mulheres no rabinato desde 1967. O Hebrew Union College, reformista, ordenou a primeira mulher, como rabina, em 1973. E, em 1983, o Jewish Theological Seminary, massorti, votou uma resolução para aceitar mulheres no rabinato. Em todos esses três grupos as mulheres são contadas no minian. 

Os massoratim (conservativos), desde o final do século XIX permitiram que homens e mulheres se sentassem juntos nas sinagogas norte-americanas, decisão esta que depois se espalhou pelo mundo, sendo que 90% das congregações conservativas hoje em dia no mundo todo adotaram o costume de homens e mulheres sentarem-se juntos durante o serviço religioso. No final da década de 1950, uma resolução da Assembléia Rabínica permitiu que mulheres façam aliat tora, baseada na noção que kavod ha tzibur depende a época e do local. 

As mulheres foram incluídas na contagem do minian no inicio da década de 70, em 1973. E foi permitido a elas liderarem um serviço religioso na primeira metade da década de 80, em 1984. A implementação dessas decisões da Assembléia Rabínica Massorti foi deixada a cargo de cada congregação, porém, hoje em dia 80% das congregações conservativas norte americanas e israelenses, além da quase totalidade das congregações conservativas europeias e argentinas, já são igualitárias.

As modernizações no serviço religioso na liturgia reformista são vistas como naturais, uma vez que este é o mote dessa corrente. Mas o que dizer das modernizações dentro da liturgia conservativa/massorti? Os reformistas propunham um serviço religioso no idioma local, o abandono das leis de cashrut e de muitos outros costumes, baseados na noção de que vivemos numa era pós halákhica, desse modo o judaísmo se resumiria a um conjunto de verdades éticas eternas. Os conservativos, por outro lado, entendem que a tradição judaica, e por conseqüência a Halakhá, é fruto de um desenvolvimento histórico. Não é o caso, portanto, de se pensar em uma era pós halákhica, mas antes em uma Halakhá que pensa a evolução natural do Povo Judeu em cada época.

Dessa forma, a corrente conservativa se caracterizou por manter o hebraico e o aramaico na liturgia judaica, manter as mitzvot como cashrut, shabat e etc. A evolução da Halakhá e feita levando-se em conta um estudo muito profundo da tradição, da Halakhá e de sua evolução natural. Não há sistema jurídico que não admita modificações com o passar do tempo, nem mesmo a Halakhá, o direito judaico, que se baseia na Tora. A adaptação da tradição à modernidade é possível olhando-se os exemplos retirados da historia judaica, que sempre perseguiu o ideal de moderação e flexibilidade.

Especialmente no caso de normas que se referiram à melhora da condição humana, de homens e mulheres, a evolução da Halakhá tem sido o ideal, exemplos no Talmud e entre os rabinos medievais não faltam. Um exemplo medieval foi a decisão tomada no ano 1000 e.c. por rabeinu Guershon proibindo o casamento poligâmico entre os judeus, que tinha sido a norma até então, mas que com a evolução dos costumes já não era mais moralmente aceitável. Essa foi uma decisão em prol da dignidade da mulher judia, que levou em conta o ideal humano do judaísmo e renovou o direito judaico.

Em seu prefácio para a nova edição do sidur italiano, de 1995, o rabino David Prato, um dos grandes rabinos europeus, de linha ortodoxa moderna, comenta certos ajustes feitos no sidur afirmando que: “Aquilo que a sabedoria não modifica o tempo modificará”.  Essa sabedoria vale tanto para ajustes na liturgia quanto para ajustes que elevam a condição humana de homens e mulheres.

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