
Rama Burshtein continua filmando uma tradição que oprime as mulheresQuem viu Kadosh, de Amos Gitai, guarda a lembrança do virulento ataque do autor às tradições da religião ortodoxa em Israel. Gitai filmava um mundo em que a posição da mulher era secundária e o sexo, uma imposição do homem. O sexo dos ortodoxos está de volta em Preenchendo o Vazio, mas, desta vez, existem sutilezas que é preciso levar em conta.
O filme que venceu o prêmio Bandeira Paulista como melhor ficção de diretor (a) estreante no ano passado foi realizado por uma mulher, a primeira cineasta do sexo feminino ortodoxa de Israel. Vai nisso uma diferença de olhar. Rama Burshtein continua filmando uma tradição que oprime as mulheres, mas, assim como afirma-se como autora logo no primeiro filme, a personagem de seu filme, Shira, também é confrontada com escolhas. Enfrenta a violência, mas não é física e na cama, como a de Kadosh.

A caçula vai desistir do casamento e se unir ao cunhado, assumindo os encargos de esposa e mãe da irmã. Para isso, terá de abrir mão de seus sonhos, de sua identidade. Compreensivelmente, ela vacila, mas há a pressão da família, da comunidade.
Como é possível que a sociedade possa ser tão moderna em certos aspectos e, ao mesmo tempo, tão arcaica em outros? É a pergunta que Rama Burshtein se faz e repassa ao espectador.
Shira, interpretada por Hadas Yaron, não quer ser uma propriedade da família, mas também, por sua formação, hesita em se rebelar. O próprio cunhado parece um enigma – nunca sabemos muito bem o que está pensando ou desejando. O homem pode ser dominante nessa estrutura social, mas também é dominado por um sistema de valores que o ultrapassa.

Rama Burshtein e seu diretor de fotografia Asaf Sudri usam a luz para criar uma aura em torno de Shira. É como se o movimento do filme, para a diretora, fosse captar a alma da personagem e oferecê-la ao espectador.
É curioso, mas outro filme em cartaz, que também trata de religião – e com outra protagonista de quem a família dispõe como se fosse um objeto -, a nova versão de A Religiosa, por Guillaume Nicloux, também parece buscar a alma (e a aura) de Suzanne Simonin, e ela é uma vítima do catolicismo Há que colocar vítima entre aspas, porque Rama Burshtein, como mulher, quer sugerir que existem escolhas, sim. Para a própria vítima é fácil aceitar-se como tal e dobrar-se. Difícil é resistir. Sem resistência, não há mudança.
A Religiosa
Em 1966, A Religiosa, de Jacques Rivette, foi um escândalo. Proibição de venda ao exterior e discussões sobre o caráter imoral da obra.
Quase 50 anos depois, A Religiosa, de Guillaume Nicloux, é apenas uma adaptação literária do prestigioso texto escrito por Diderot no século 18 sobre a sorte de moças destinadas à vida monacal.
Quem assistir à versão de 1966 partilhará a sensação de enclausuramento de Suzanne Simonin no primeiro convento: o horror está lá, visão bem menos acentuada na versão de 2013.
Percebe-se o centro da distância entre a nova e a antiga: na primeira versão o que se observa é da ordem da vida religiosa e, mais amplamente, da forma de sociedade que, no final do século 18 francês, chegava à agonia.
Já a versão nova investe muito mais na psicologia das personagens, por um lado, e nas belezas que a fotografia e a direção de arte podem produzir (além de boas interpretações, em especial a de Pauline Etienne, uma Suzanne menos física do que Anna Karina, mas não menos forte).
Essas diferenças desembocam num final muito mais suave, mais palatável, acomodatício mesmo: não invalida o espetáculo, mas resume bem o espírito do tempo.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir