POR TEV DJMAL
"Um salmo de David: rendei tributos ao Senhor, Ć³ filhos de gigantes" (Salmo 29). O 17o dia do mĆŖs hebraico de Tamuz dĆ” inĆcio a um perĆodo de trĆŖs semanas de luto nacional, para os judeus, que culmina em TishĆ” b'Av - o nono dia do mĆŖs de Menachem Av.
O Talmud enumera cinco eventos trĆ”gicos que se abateram sobre nossos antepassados nesse mesmo 17 de Tamuz, a comeƧar pela quebra do primeiro conjunto de TĆ”buas dos Dez Mandamentos. O incidente ocorreu pouco depois da RevelaĆ§Ć£o Divina, no Sinai. ApĆ³s D'us ter-Se revelado, proclama os Dez mandamentos e sela um pacto com cada um dos membros do Povo Judeu. Ele diz a MoshĆ© para ascender ao Monte Sinai, onde Ele mesmo lhe transmitiria toda a TorĆ”. Quarenta dias mais tarde, em 17 de Tamuz, quando MoshĆ© retorna ao acampamento dos judeus com as TĆ”buas contendo os Dez Mandamentos, ele se depara com o povo praticando idolatria, rendendo louvores a um bezerro de ouro. Por inĆŗmeras razƵes, o profeta reage Ć cena quebrando as TĆ”buas. Tendo sido informado, por D'us, de que os judeus mereciam ser aniquilados pelo pecado do bezerro de ouro, MoshĆ© novamente sobe o Monte Sinai, para, dessa vez, implorar por nosso povo. AtravĆ©s de muita oraĆ§Ć£o e argumentaĆ§Ć£o, e atravĆ©s de um exemplo de coragem e auto-sacrifĆcio inĆ©ditos, ele consegue revogar o Decreto Divino de extermĆnio.
O episĆ³dio do bezerro de ouro - primeira falta grave do Povo Judeu, que continua sendo o arquĆ©tipo de todos os pecados de Israel, ao longo de todas as geraƧƵes Ć© simbĆ³lico do relacionamento, turbulento, entre D'us e o Povo a quem Ele escolheu para Si. E traz Ć baila a pergunta: teria D'us feito um "mau negĆ³cio" ao escolher os judeus? William Norman Ewer, jornalista inglĆŖs que foi espiĆ£o para a UniĆ£o SoviĆ©tica, expressou sua opiniĆ£o - que Ć© tambĆ©m a de vĆ”rios outros - com a famosa frase, que em inglĆŖs, tem interessante rima: "How odd of G-d to choose the Jews", isto Ć©, quĆ£o estranho que D'us tenha escolhido os judeus.
Anti-semita ou nĆ£o, a frase rimada levanta uma pergunta vĆ”lida: por que, de fato, teria D'us escolhido os judeus? Em toda a TorĆ” Escrita, e especialmente no Livro de IsaĆas, ouve- se nĆ£o apenas da boca dos profetas, mas diretamente de D'us, alertas e castigos contra o Povo Judeu por idolatria e outros pecados. O Talmud, ao explicar os motivos para a queda de JerusalĆ©m, a destruiĆ§Ć£o do Templo Sagrado e o subseqĆ¼ente exĆlio de nosso povo, subscreve a nossos antepassados uma longa e variada lista de pecados: idolatria, assassinato, imoralidade, falta de respeito Ć TorĆ”, abusos contra os fracos e os humildes, difamaĆ§Ć£o, Ć³dio gratuito, e tantos mais. Durante as trĆŖs semanas que tĆŖm inĆcio em 17 de Tamuz, devemos vasculhar nosso Ćntimo para tentar corrigir os pecados cometidos, nĆ£o apenas por nossos antepassados, mas por nossa prĆ³pria geraĆ§Ć£o. Esse perĆodo de luto para o Povo Judeu se inicia com um jejum - no dia 17 de Tamuz - e termina com outro - no dia de TishĆ” b'Av. O de 9 de Av, dia mais triste do calendĆ”rio judaico, Ć© o Ćŗnico, alĆ©m do de Iom Kipur, que dura a noite e o dia inteiros. A razĆ£o para jejuarmos nesses dois dias, no perĆodo mencionado, Ć© que todas as tragĆ©dias que se abateram sobre nosso povo, desde sua expulsĆ£o da Terra de Israel, sĆ£o uma conseqĆ¼ĆŖncia de dolorosos eventos ocorridos, hĆ” dois milĆŖnios, durante aquelas TrĆŖs Semanas, entre os quais se incluem a queda de JerusalĆ©m e a destruiĆ§Ć£o do Templo Sagrado.
Mas, fazendo justiƧa a nosso povo, deve-se levantar a questĆ£o, especialmente Ć luz dos 2.000 anos de sofrimento judaico. Teriam sido os judeus do Antigo Israel piores do que qualquer um dos povos que viviam Ć Ć©poca? Teriam eles sido piores do que os romanos, sanguinĆ”rios, que os massacraram e destruĆram a Morada de D'us? Teriam sido os judeus, de fato, ao longo da HistĆ³ria - mesmo em seus momentos de comportamento mais desprezĆvel - piores do que aqueles que os caluniavam e oprimiam?
A resposta Ć© Ć³bvia. No entanto, isto Ć© irrelevante. No livro, Revolta das Massas, o filĆ³sofo e sociĆ³logo espanhol, JosĆ© Ortega y Gasset, escreveu que a nobreza de carĆ”ter Ć© melhor expressa na expressĆ£o francesa, "noblesse oblige", que significa que ser nobre nĆ£o significa ter mais direitos ou posses ou privilĆ©gios; mas, sim, implica ter mais obrigaƧƵes, mais responsabilidades e um nĆvel mais elevado de moral e conduta. Quanto mais importante Ć© a pessoa, mais dela se espera. O Midrash nos ensina que D'us julga cada uma das pessoas de acordo com o que ela Ć© e o que dela se espera. Em outras palavras, cada um de nĆ³s Ć© julgado de acordo com seus atos, mas tambĆ©m considerando o seu potencial - o que poderĆamos ter realizado e nĆ£o o fizemos. O Povo Judeu, como proclama o Salmo 29, Ć© composto por filhos de gigantes; eles sĆ£o os filhos dos trĆŖs patriarcas - Avraham, Itzhak e Yaacov. Tal heranƧa, uma linha espiritual tĆ£o nobre, significa que temos dentro de nĆ³s um tremendo potencial; mas, tambĆ©m, uma enorme responsabilidade a cumprir. E, conseqĆ¼entemente, significa que D'us espera muitĆssimo de cada um de nĆ³s.
Mas, D'us, que Ć© o Senhor de tudo, sabe exatamente o que fez ao escolher os judeus entre todas as naƧƵes. Ele nĆ£o nos escolheu apenas por sermos filhos dos trĆŖs patriarcas. Ele nos escolheu porque conhece nossas fraquezas enquanto povo e sabe que, ironicamente, sĆ£o a prĆ³pria fonte de nossa forƧa. Se os judeus foram atraĆdos para a idolatria, foi porque sua sede de espiritualidade e transcendĆŖncia Ć© tĆ£o grande que chega a ser desorientada. Se os judeus fizerem mal um ao outro, Ć© porque eles sĆ£o muito mais do que um povo que comunga de uma histĆ³ria e uma religiĆ£o comuns: eles sĆ£o uma famĆlia intimamente entrelaƧada e, como o restante da humanidade, lamentavelmente tĆŖm a estranha noĆ§Ć£o de terem liberdade de agir contra um membro de sua famĆlia da forma como nĆ£o ousariam fazer com um estranho. A histĆ³ria de Caim e Abel, que nĆ£o apenas pertence ao povo judeu, mas a toda a humanidade, comprova que crimes sĆ£o, com freqĆ¼ĆŖncia, cometidos contra nossos prĆ³prios irmĆ£os.
Na TorĆ”, D'us se queixa, vĆ”rias vezes, de que os judeus sĆ£o um povo teimoso e obstinado - uma naĆ§Ć£o que nĆ£o vacila, facilmente. Mas, por estranho que seja, logo apĆ³s o episĆ³dio do bezerro de ouro, quando MoshĆ© ora a D'us, pedindo-Lhe que perdoe o seu povo, ele diz: "Ki Am Kishei Oref Hu...Visalachta... pois Ć© um povo obstinado, e Tu hĆ”s de perdoar..."
Sem dĆŗvida, uma estranha linha de argumentaĆ§Ć£o defensiva. Por que razĆ£o MoshĆ© rogaria em nome dos judeus apontando a D'us um traƧo de nosso carĆ”ter que, ao que tudo indica, Ele considera deplorĆ”vel? Rabi MoshĆ© ben Nachman, NachmĆ¢nides, sĆ”bio espanhol do sĆ©culo 13, explica: MoshĆ©, com aquelas palavras, dizia a D'us: "Tu conheces Teu povo. SĆ£o terrivelmente obstinados. TransformĆ”-los, requereria muito tempo e esforƧo. Deves lembrar- Te de que eles viveram no Egito, sociedade que era o epicentro da idolatria, durante sĆ©culos. Tu nĆ£o podes esperar deles grandes mudanƧas em tĆ£o curto espaƧo de tempo. LevarĆ” muitos anos, ainda, para que possam transformar-se". Assim sendo, MoshĆ©, que sabia exatamente o que fazia, conclui: "Mas quando eles se transformarem, a mesma teimosia estarĆ” a Teu lado. Eles jamais hĆ£o de Te abandonar".
Foi esta a razĆ£o para que D'us escolhesse o Povo Judeu. Pois que nada nem ninguĆ©m, nem mesmo um Holocausto conseguiu fazer-nos vacilar. Em dois mil anos, nosso povo foi submetido a sofrimentos sem paralelo na histĆ³ria - a destruiĆ§Ć£o de dois Templos, o exĆlio aos quatro cantos do mundo, perseguiƧƵes e expulsƵes em massa, discriminaĆ§Ć£o e Ć³dio, tudo emanando de povos e pessoas a quem nunca maltratamos, massacres e pogroms, uma InquisiĆ§Ć£o e um Holocausto. E, contudo, nosso povo como um todo nĆ£o deixou de lado sua identidade judaica. HĆ” histĆ³rias incontĆ”veis sobre judeus, muitos dos quais nĆ£o declaradamente religiosos, que se atiraram Ć s fogueiras da InquisiĆ§Ć£o ou foram
assassinados durante o Holocausto por se terem recusado a abandonar sua fƩ ou a realizar sacrilƩgios, tais como violar um Sefer TorƔ ou comer em Iom Kipur.
Mas, perguntamos, terĆ” compensado permanecer judeu? TerĆ” valido a pena tentar viver como filhos de gigantes, com todas as inevitĆ”veis obrigaƧƵes e responsabilidades? As respostas a esta e a outras perguntas semelhantes nĆ£o sĆ£o fĆ”ceis nem simples. Uma destas encontra-se no Talmud, em uma passagem que discute as conseqĆ¼ĆŖncias do pecado do bezerro de ouro. A passagem detalha os argumentos utilizados por MoshĆ© para demover D'us de Seu decreto de aniquilaĆ§Ć£o. Seu argumento final foi: "Mestre do Universo, caso Tu venhas a destruir Israel, as naƧƵes do mundo dirĆ£o: 'Seu poder se enfraqueceu... e Ele jĆ” nĆ£o consegue salvar-nos. Quando se tratava de um Ćŗnico rei, no caso, o FaraĆ³, Ele ainda pĆ“de enfrentar e sair em nossa defesa. No entanto, Ele nĆ£o tem como enfrentar trinta e um soberanos, isto Ć©, todos aqueles que reinam sobre a Terra de CanaĆ£". O que MoshĆ© disse a D'us naquele malfadado dia, quando o futuro do Povo Judeu pendia por um fio, foi: "Tu escolheste para Ti o Povo Judeu. Tu e Teu Nome ligaste a eles. Se deixarem de existir os judeus, as naƧƵes do mundo dirĆ£o que o D'us de Israel nĆ£o teve poder suficiente para preservar seu prĆ³prio povo, e deixarĆ£o de acreditar que Tu Ćs Uno e o Ćnico Senhor do Universo. A derrota do Povo Judeu Ć© a Tua derrota". E como reage D'us a tal argumentaĆ§Ć£o?
D'us volta atrĆ”s em Seu decreto de aniquilar o Seu povo, dizendo a Seu profeta: "MoshĆ©, com tuas palavras, tu Me mantiveste vivo entre todos os povos". NĆ³s, o Povo Judeu, somos as testemunhas Divinas. Isto significa, como D'us admitiu a MoshĆ© logo apĆ³s o incidente com o bezerro de ouro, que a existĆŖncia do Povo Judeu Ć© o que O mantĆ©m, por assim dizer, vivo entre os povos do mundo. A razĆ£o para isto Ć© que fomos nĆ³s, a comeƧar por nosso patriarca Avraham, quem ensinou o monoteĆsmo Ć Humanidade.
A pedra fundamental da civilizaĆ§Ć£o humana - a responsabilidade perante um Poder Superior e um elevado cĆ³digo de Ć©tica e moralidade - estĆ” calcada na RevelaĆ§Ć£o Divina no Sinai. HĆ” pessoas que podem se perguntar por que teria D'us nos escolhido. Mas, para aqueles que crĆŖem na BĆblia, nĆ£o hĆ” dĆŗvidas de que foi a nĆ³s que Ele escolheu. Na TorĆ”, D'us diz a Seu povo "E serĆ”s para Mim um reino de sacerdotes e uma NaĆ§Ć£o Santificada" (Ćxodo, 19:5).
Somos uma naĆ§Ć£o que leva a mensagem de D'us ao mundo. O Livro de Ezequiel claramente explica que todo o Povo Judeu, um a um, sem faltar ninguĆ©m, somos representantes e emissĆ”rios de D'us neste mundo. Pois que os judeus levam em si o Nome de D'us e Seu Nome estĆ” intimamente ligado a nĆ³s. E, assim sendo, quando um de nĆ³s vacila espiritualmente - ou seja, se nos assimilamos ou demonstramos um enfraquecimento em nossa fĆ© ou agimos de uma maneira desrespeitosa perante o restante da humanidade - estamos maculando o Nome de D'us e Sua PresenƧa neste mundo. Quando os gigantes do espĆrito tĆŖm um comportamento inadequado, eles sĆ£o inevitavelmente seguidos pelo restante
da humanidade e o resultado Ć© corrupĆ§Ć£o e decadĆŖncia. Assim, apesar do Ć“nus inerente Ć noblesse oblige, apesar dos inĆŗmeros desafios e tentaƧƵes e inimigos, temos que continuar judeus e tentar desempenhar da melhor forma possĆvel a nobre missĆ£o que D'us confiou a cada um de nĆ³s. As TrĆŖs Semanas de Luto sĆ£o um momento de introspecĆ§Ć£o e de busca interior, nas quais precisamos lidar com nossas falhas, quer como indivĆduos, quer como povo, para que possamos levar uma vida que honre os Filhos de Israel e o D'us de Israel. NĆ£o se trata de tarefa fĆ”cil. A histĆ³ria de vida do Povo Judeu - e, de fato, de cada um de nĆ³s, judeus - nĆ£o deve ser um diĆ”rio pessoal, repleto de trivialidades e fantasias e buscas inconseqĆ¼entes - mas, pelo contrĆ”rio, "O Livro das Guerras do Senhor" (NĆŗmeros, 21:14). Uma vida assim, de grandes desafios e enormes responsabilidades, Ć© aquela em que, diariamente, sĆ£o travadas batalhas verdadeiras. Mas, tambĆ©m, em que as verdadeiras vitĆ³rias da vida sĆ£o vencidas.
Talmud Bavli - Tratados: Ta'anit, Berachot e ChaguigĆ”
Rabbi Steinsaltz, Adin (Even Israel), artigo "It Takes a Giant", 11 de marƧo de 2003;
Rabbi Steinsaltz, Adin (Even Israel), "Bar Mitzvah, The Aleph Society", www.steinsaltz.org
Traduzido por Lilia Wachsmann
The Aleph Society - www.steinsaltz.org
Bibliografia:
Rabbi Steinsaltz, Adin (Even Israel), "We Jews - Who Are We and What Should We Do" Jossey-Bass Publisher.
Da Revista MorashĆ” – EdiĆ§Ć£o 57 – Junho de 2007
www.morasha.com.br
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