Rabino Eliahu Birnbaum
Um camponês de uma vila no sul da Itália teve uma revelação, que levou à conversão em massa de seu grupo de seguidores e sua Aliya para Israel. As mulheres, que não se converteram, mantiveram a tradição por mais de cinco gerações.
San Nicandro, Itália
O sul da Itália é uma bela região. Belas paisagens, agricultura simples e gentis aldeões que criam uma atmosfera agradável e pastoral para qualquer um que vem para uma estadia. Esta semana, gostaria de descrever sobre uma das experiências mais interessantes e poderosas que tive durante minhas viagens entre as comunidades judaicas afastadas, ao redor do mundo.
Esta descrição é sobre o que aconteceu em torno da cidade de San Nicandro, que hoje possui cerca de 15 mil habitantes. A cidade está localizada na ponta da famosa “bota” italiana, não muito longe da cidade de Fuja.
A história dos conversos de San Nicandro é única. Constitui um símbolo e um exemplo não só em observar o judaísmo, mas também, principalmente, na sua transmissão de uma geração para a outra, sob condições de incerteza e até mesmo em famílias “mistas”.
Volto duas semanas para um Shabat que passei em San Nicandro. O acendimento das velas era um pouco antes das oito horas da noite. Desde as sete e meia, os membros da congregação já começavam a fluir em direção a pequena e pura sinagoga da comunidade. A sinagoga está localizada na rua principal da cidade. Em sua parede oriental está um grande quadro dos Dez Mandamentos.
Meus anfitriões me informaram que cerca de 30 pessoas vêm para o Shabat, nas orações da noite e cerca de 40 vêm para as orações da manhã. Apenas, se esqueceram de me dizer que destes, 37 eram mulheres e apenas três, homens…
Então, na verdade, havia um “quorum de Mulheres”, com uma cantora do sexo feminino, Constantina, uma viúva de cerca de 50 anos de idade. Ela sabia como envolver toda a congregação com melodias cativantes, com passagens de oração e músicas que foram adicionadas à oração clássica, pelo líder espiritual e fundador da comunidade, o Sr. Donato Manduzio, mais tarde conhecido como Levi Manduzio.
As orações do Shabat de manhã duraram cerca de quatro horas. As mulheres começaram a oração com a parte das ofertas de sacrifício, depois os ‘Versos de Louvor’, a leitura do Shemá e a Oração Silenciosa. Este foi o Shabat do novo mês, mas estes leram toda a oração de ‘Hallel’ (louvor), sem pular nada e cantando cada trecho. Algumas orações foram lidas em hebraico e outras em italiano.
Quando chegou o momento de retirar o rolo da Torá, entoaram todos o cântico de ‘Vayehi Binsoa’ – “Quando a Arca viajou…” e sete mulheres, leram cada uma, uma seção da porção semanal fazendo um breve sermão sobre a parte lida. No serviço vespertino as mulheres voltaram à sinagoga até encerrar o Shabat com a reza noturna e a ‘Havdalah’. Desta maneira, todas as mulheres da comunidade se reúnem três vezes na sinagoga, para as orações do Shabat.
A comunidade de San Nicandro de 5767 é uma continuação da de 5706 (1946), que depois de muitas lutas, converteram-se e tornaram-se parte do povo judeu. O que causou com que 74 homens e mulheres que não conheciam o judaísmo ou mesmo como os judeus eram, decidiram se converter de maneira haláchica e fazer Aliyah para Israel?
Um discípulo de Abraão
Toda mudança requer uma faísca. No nosso caso, esta apareceu na pessoa de Donato Manduzio (1885-1948). Donato era um camponês e um inválido da Primeira Guerra Mundia. Até seus 33 anos, não sabe ler e nem escrever. Quando completou 45 anos, descobriu a Bíblia.
Manduzio primeiro deixou sua aldeia, quando foi recrutado para o exército em 1915. Quando ferido e hospitalizado em 1918, começou a aprender o alfabeto italiano. Assim que aprendeu a ler, a sede de ler e aprender apenas havia começado. O dia em que Manduzio começou a ler a Bíblia é chamado de “The Birthday” (O Aniversário) por seus seguidores, porque um novo nascimento espiritual começou naquele dia.
A vida espiritual de Manduzio estava repleta de constantes aparições e visões. Estas visões aparecem no diário de Manduzio em um rascunho com mais de 400 páginas, que tive o privilégio de segurar na minha mão. Ele esta armazenado na casa do presidente da comunidade de San Nicandro (estes diários, principalmente as visões, foram curiosamente pesquisados por Noa Hartum, de Kvutzat Yavneh, para um artigo).
Os diários descrevem a biografia espiritual de Manduzio, aonde sua primeira visão foi a que o levou a descobrir o judaísmo e divulgá-lo aos seus seguidores, na cidade de San Nicandro .
Os diários abrem com as palavras únicas e emocionantes do autor: “Nestas páginas, uma história curta e simples será relatada. Você lerá nelas como a luz se mostra ao longo da escuridão, a luz que dissipou as trevas da noite e distanciou as sombras da morte. Você, meu caro leitor, não rirá de minha escrita perversa e falha, porque em todos os dias da minha existência eu nunca passei sequer um dia numa sala de aula. Meu mestre e professor era o D´us de Abraão, que resgatou nosso antepassado, Abraão, da idolatria, e mostrou-lhe o caminho para a terra de Canaã”.
Em seu sonho , Manduzio vê a si mesmo em um campo arado no escuro. Enquanto ainda estava de pé ali, confuso e assustado, um homem aproximou-se dele segurando uma lamparina apagada e disse “Venha Manduzio e acenda a lamparina”. “Como posso acendê-la? Eu não tenho nenhum fósforo”, respondeu Manduzio. O homem estende a mão e retira um fósforo aceso de entre os dedos da mão de Manduzio. O homem ergue a lamparina, Manduzio a acende, e então se viu luz … Deste sonho, Manduzio percebeu que estava destinado a “difundir a palavra do Senhor ao público”.
E assim Manduzio que, sem dúvida, era uma personalidade carismática, começou a ensinar a Bíblia para seus amigos e vizinhos, juntamente com os mandamentos da religião judaica e se tornou o ímã das pessoas da cidade que desejavam sentido nas suas vidas. Muitas pessoas viram em Manduzio um homem sábio e conselheiro em muitos assuntos e se voltavam a ele para receber conselho e bênção.
Manduzio via-se como o mensageiro de D’us e começou a difundir a luz da Bíblia e do judaísmo. No entanto, ele não sabia que havia qualquer outros judeus no mundo. Uma certa vez, um policial que visitava a cidade em 1936, revelou-lhe que haviam judeus vivendo em Roma. Manduzio, animado, escreveu uma carta para o rabino-chefe de Roma, numa linguagem rebuscada , dizendo: “Encontrei meus irmãos perdidos!”.
Hoje, a comunidade de San Nicandro vive a sua sombra. Conheci uma senhora idosa de 80 anos que me contou como em sua juventude Manduzio a repreendia se não tivesse o cuidado de se vestir modestamente e com mangas compridas. Quando a perguntei se se lembrava dealgum ensinamento de Manduzio, ela começou a citar “o versículo diário”, o Salmo do dia para cada dia da semana, que Manduzio escreveu para ela. Ela segue murmurando-os até hoje.
Manduzio faleceu pouco tempo antes de seu rebanho fazer Aliya para a Terra de Israel. Ele foi enterrado no cemitério [local], distante das sepulturas cristãs. Há uma estrela de David em seu túmulo. Gravado em sua lápide está: “Donato Manduzio, nascido em 1885, viveu como um idólatra até 1930 mas, neste ano, recebeu uma revelação divina, foi chamado de Levi pelo Senhor, ou seja , um padre, e começou a espalhar sobre esta pedra escura, a unidade de D’us e o descanso do Shabat”.
Conversão Autodidática
Uma das primeiras pessoas a descobrir este grupo, e entrar em contato com eles foi Pinhas Lapid, um sargento da Brigada Judaica, na Itália. Mais tarde, ele escreveu um livro sobre a comunidade e sobre Manduzio (Reuven Mas Publishers, 1952).
Durante 1943, a Brigada Judaica da Palestina, que lutou a serviço do exército britânico para libertar a Itália da ocupação alemã, chegou ao sul da Itália. Toda vez que a brigada passava pela cidade, os membros da comunidade agitavam bandeiras israelenses em sua honra. Até que um dia, os soldados pararam perto deles e tentaram entender quem e o que eles eram. Foi assim que Pinhas Lapid começou a conhecer o grupo.
Mesmo que existam muitos casos na história judaica de conversões em grupo, dois fatores fizeram de San Nicandro algo tão especial e, na realidade, único.
Em primeiro lugar, esta foi uma conversão de um grupo de pessoas que não foram preparadas de antemão para a conversão. Ao contrário, estes se autoensinaram. A Conversão Autodidática foi uma inovação no campo das conversões de judeus. A conversão não é apenas um processo pessoal e íntimo, esta exige um tribunal religioso que aceite que o convertido abrace do povo judeu.
A pessoa que se converte sozinha, sem a presença de um tribunal rabínico, não é um convertido. E por isso havia, em San Nicandro, um tribunal rabínico que cuidava de todas as diversas fases necessárias de conversão (a aceitação dos mandamentos, a circuncisão, a imersão e etc).
Manduzio estava ciente de que o caminho que tinha traçado para o judaísmo tinha sido feito por conta própria, até mesmo comparando sua trajetória com a que nosso pai Abraão tomou. Em uma de suas cartas ao rabino-chefe de Roma, ele escreve, “Eu respondi que não tinha ouvido nada de ninguém, mas aceitei a revelação celestial, como fez nosso pai Abraão…”
Portanto, uma vez que não têm um professor da própria comunidade judaica, adotaram costumes um tanto quanto estranhos. Manduzio e “seu rebanho” no começo, apenas observavam os mandamentos baseados no texto bíblico literal. Eles leeiam a Torá e a partir disso definiam o que era permitido e o que era proibido, sem qualquer explicação da Lei Oral, que, não estava disponível para eles.
Eles cumpriam os versos, “Você não ateara fogo em nenhuma das vossas moradas no dia do sábado” ou “…não sairá ninguém do seu lugar no sétimo dia”, em seu significado literal. Eram inclusive cuidadosos em sacrificar o cordeiro Pascal no décimo quarto dia de ‘Nissan’, no período da tarde.
Outra maravilha é o tempo e o lugar em que ocorreu todo este episódio. Durante a Segunda Guerra Mundial e durante o reinado de Mussolini, não foi fácil ser judeu, não na Europa e não na Itália. Neste período em que os judeus tentavam sobreviver e salvar suas famílias, ocultando suas identidades, um grupo de pessoas surgia em San Nicandro que não só buscava unir o povo judeu, mas também declarava publicamente que eram judeus!
Mesmo na escola cristã, onde as crianças da comunidade estudavam, os filhos insistiam em ser chamados pelos seus nomes hebraicos.
Uma noite de Seder
Após Manduzio enviar algumas cartas para o rabino-chefe de Roma, o Rabino Angelo Saccardetti escreveu, “Devido às leis que foram aprovadas pelo governo de Sua Majestade (isto é , o governo de Mussolini) e a relação hostil da autoridade para com os judeus, vejo como meu dever aconselhá-los a adiar a conversão para um momento mais apropriado…”
O rabino-chefe finalmente escreveu para o grupo. Apesar de haver recebido várias cartas, ele se absteve de responder até receber a quarta carta. Ele tinha certeza de que alguém estava fazendo uma brincadeira com ele, pois nunca havia ouvido falar de tantos cristãos querendo se converter, especialmente vindo de uma cidade abandonada do sul da Itália. O rabino alertou tanto Manduzio quanto aos membros do grupo de que a conversão não era uma coisa fácil, que os judeus são um povo perseguido e discriminado em muitos países.
No entanto, as palavras de Manduzio e a seriedade do grupo manteve-se forte. O Rabino de Roma ouviu seu pedido e começou o processo de conversão do grupo. No entanto, a conversão não ocorreu de imediato, e sim somente após a Segunda Guerra Mundial ter chegado ao fim e a paz restaurada em todas as questões relativas aos judeus. E, em agosto de 1946, 74 pessoas foram convertidas por um tribunal rabínico enviado pelo rabino-chefe de Roma.
Em 1949, o grupo fez Aliya para Israel e estabeleceu-se no Moshav Alma. De lá, se dispersaram para vários outros lugares na Galiléia, Safed e arredores. Manduzio não chegou a ir para Israel, pois faleceu duas semanas antes da data da Aliya. No entanto, também não está claro se ele havia se convertido, uma vez que estava doente e não podia ser circuncidado.
Até hoje, uma tocha judaica arde em San Nicandro, bastante original e sem precedência ou instância semelhante em qualquer outro lugar do mundo. Os membros da comunidade que vivem em San Nicandro hoje se baseiam nas mulheres que não se converteram em 1946 e não imigraram para Israel em 1949. A comunidade de hoje ainda possui relações familiares e estão relacionados entre si, seja paternalmente ou maternalmente. As mulheres, ainda hoje, se encontram na noite do Seder, mantendo o Seder de Pessach juntos, como uma família.
Mesmo que não tenha sobrado nenhuma família judia em San Nicandro (nem mesmo uma) de acordo com a Halachá, as mulheres e as famílias dos convertidos continuam a viver como judeus em todos os sentidos. As mulheres guardam o Shabat e as festas, comem carne kosher trazida de Roma (depois de muito esforço), separam o leite da carne, preparam a Chala e as velas para o Shabat, rezam na sinagoga todos os sábados e festas, jejuam no Dia da Expiação (Yom Kippur) e são casadas com homens não-judeus…
Cinco gerações já mantem fiel este fenômeno da crença em um só Deus, observando os mandamentos e repassando a tradição judaica de geração em geração. O Comitê Italiano de Congregações [judias] continua a acompanhar o grupo, enviando-lhes um rabino a cada poucas semana, que permanece lá para o Shabat e continua a ensinar-lhes a Torá, tanto para as mulheres quanto para os poucos homens que desejam continuar mantendo a sua trajetória judaica.
O poder das mulheres
Qual é o segredo da existência e da observância deste grupo de convertidos que permaneceram em San Nicandro? Como se explica que os indivíduos continuam, particularmente, mantendo seu judaísmo? Como que a comunidade continua a observar uma vida religiosa, a guardar os mandamentos, as orações, as festas e manter uma sinagoga ativa sem nenhuma liderança espiritual? Na minha opinião, só há uma resposta: O poder das mulheres! Uma pessoa precisa ter que viajar todo o caminho até o sul da Itália para entender o poder dos mulheres.
Pelo que se sabe hoje em dia, mesmo no início, a maioria dos seguidores de Manduzio eram mulheres. Elas eram as únicas que começaram a estudar, rezar e observar os mandamentos e, foram verdadeiras discípulas em seu caminho judaico. Hoje, as filhas da comunidade se sentem judias. Apenas há alguns anos atrás, um rabino veio e revelou-lhes que eles não eram judeus, uma vez que nunca haviam se convertido.
Nas longas discussões que tive com as mulheres da comunidade e os poucos homens, que pertencem a elas, as mulheres repetidamente relatavam e salientavam sua fé judaica e o fato de serem parte do povo judeu, em todos os sentidos. “Você pode dizer o que quiser… Somos judias! Crescemos e fomos criadas como judias. Nascemos para o judaísmo desde o ventre de nossas mães… Recebemos o judaísmo como um tesouro de nossas mães e avós… Estaremos felizes em se converter, mas somos judias!”
Seu fervor e sua crença me convenceram de que este é um fenômeno verdadeiro e profundo.
Hoje, as mulheres membros da comunidade são casadas com homens não-judeus, como eles se chamam, “italianos” e não “hebreus”. “Mesmo que os homens não sejam da fé mosaica, eles respeitam a crença das mulheres e estão dispostos a dar-lhes a escolha de viver a sua vida judaica, observar o Shabat: não cozinhar para a família e os maridos, passar meio dia na sinagoga e etc. Assim como manter os feriados judaicos, não batizar seus filhos e, é claro, não se casar na igreja.
Às vezes, as mulheres judias de San Nicandro escondem seus costumes judaicos de seus maridos para “manter a paz na família” e não contam a seus maridos que estão indo à sinagoga para rezar ou que estão indo observar outros mandamentos; um tipo de cripto-judaísmo dentro da família…
Um dos mandamentos que as mulheres decidiram não observar para “manter a paz na família” foi a circuncisão de seus filhos, pois entendem a necessidade de respeitar o lado não-judeu da família e manter suas vidas “neutras” no seio da casa.
Geralmente, as filhas na família continuam a se identificar com a “Yiddeshe Mamma”, ao passo que os filhos optam por se identificar com o pai não-judeu e não aceitar a continuidade da tradição judaica dentro da sua família. Na verdade, temos aqui um fenômeno de uma “fé judaica feminina”, uma tradição que é passada de geração em geração, de mãe para filha, de avó para neta, um tipo de culto feminino que guarda um tesouro de uma geração para a próxima.
O lugar da mulher e sua força nesta região da Itália não é um fato tão óbvio. A sociedade italiana na época, especialmente a rural, possuia uma mentalidade patriarcal e não matriarcal. No entanto, apesar de tudo, essas mulheres encontraram a maneira de definir a sua influência no seio da família, uma espécie de – ‘A sabedoria das mulheres edifica a sua casa’ !