Por Arlindenor Pedro

As duas irmãs vivem problemas recorrentes para as mulheres
da comunidade : uma tem que se sujeitar a um casamento arranjado pelo líder
espiritual, embora esteja apaixonada por um cantor de fora da comunidade, e a
outra é obrigada a se afastar do marido a quem ama , pois após 10 anos, não
conseguiram ter filhos.
Através deste fio condutor, vamos tomando contato com os
hábitos da comunidade, que se prepara avidamente para o Amargedon e para
esperada chegada do Messias, o qual fará a redenção do povo judeu, através da
vingança imposta a seus inimigos que os sujeitaram à escravidão durante séculos
de história .
No desenrolar da trama as duas mulheres agem de forma
diferente à opressão dos homens : uma se rebelando, abandonando a comunidade e
o marido imposto, e a outra se submetendo as leis religiosas , passando a viver
uma vida mais subalterna ainda, fora do casamento que foi desfeito por
imposição do rabino.
Talvez por seu realismo, ou mesmo por penetrar tão fundo nos
mistérios dos ortodoxos judeus , Amos Gitai não tenha conseguido na época os
recursos oficiais para concluir a película, tendo que se capitalizar fora de
Israel, com seus contatos na Europa .
Concluído, o filme teve grande êxito , pois trouxe à tona um
debate sobre as características e o poder do fanatismo religioso em Israel, um
Estado que erroneamente parece laico para muitos, trazendo -nos a lembrança de
pontos em comum com outros tipos de fanatismo existente nas duas outras
religiões monoteístas – a cristã e a muçulmana : todas dominadas por práticas
preconceituosas e belicosas, com a total sujeição das mulheres a um domínio
patriarcal inconteste.
Nos filmes dirigidos durante a sua carreira , Amos Gitai,
tem implementado a eles uma característica peculiar, pelo seu realismo e
coragem de colocar a nu as questões do Estado Judeu e a sua explosiva relação
com a comunidade palestina, sendo visto como diretor polêmico , aplaudido por
muitos, mas duramente criticado pelos grupos radicais da direita israelense .
Ao trazer para as telas o tema religioso ele nos mostra o
papel que as seitas religiosas vão adquirindo em Israel, onde deixaram de ser
quadjuvante e vão assumindo claramente a vanguarda política no país ( uma
tendência que ocorre nos países vizinhos, no Oriente Medio , e em todo o
planeta, na contemporaneidade).
Penso então, que caminhamos para grandes embates religiosos,
onde neste campo, os novos profetas disputarão a hegemonia do pensamento do
homem globalizado.
Sobre este tema, o professor inglês John Gray, em seu livro
“Missa Negra-Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias,” recentemente abordou a
política do neoconservadorismo do grupo do ex-presidente George Bush e do seu
principal aliado na época , o britânico Blair e o seu novo trabalhismo, que
levou à invasão do Iraque e o confronto com
os movimentos radicais islâmicos, numa guerra de característica plenamente religiosa. Esta política se fez presente após o 11 de setembro e molda hoje o pensamente de amplas parcelas conservadoras em todo o mundo. Nesta obra ele faz uma extensa análise deste movimento de direita, influenciado pelo pensamento de F. Fukuyama acentuando, inclusive, a sua diferença de outro movimento de direita contemporâneo, o neoliberal de Margareth Thatcher, que ele classifica como um movimento utópico.
os movimentos radicais islâmicos, numa guerra de característica plenamente religiosa. Esta política se fez presente após o 11 de setembro e molda hoje o pensamente de amplas parcelas conservadoras em todo o mundo. Nesta obra ele faz uma extensa análise deste movimento de direita, influenciado pelo pensamento de F. Fukuyama acentuando, inclusive, a sua diferença de outro movimento de direita contemporâneo, o neoliberal de Margareth Thatcher, que ele classifica como um movimento utópico.
“Os neoliberais que moldaram as políticas ocidentais na
década de 1990 eram em sua maioria economistas bem pensantes com uma fé ingênua
em sua própria versão da razão. O avanço do livre mercado podia precisar de
ajuda-por exemplo, com programas de ajuste estrutural de impostos a muitos
países emergentes pelo Fundo Monetário Internacional; mas haveria de se
disseminar e ser aceito em decorrência da crescente prosperidade que
propiciasse. Este inocente credo não se adaptava às duras realidades do mundo
posterior à Guerra Fria, e logo seria substituído pela fé mais militante do
neoconservadorismo. Os neoconservadores entenderam que os mercados livres não
haveriam de se disseminar pelo mundo num processo pacífico: ele teria de ser
assistido por uma aplicação intensiva de força militar. O mundo posterior à
Guerra Fria seria uma era de sangue e ferro, e não de paz.” (in, “Missa Negra”,
John Gray, 2008).
Continuando…
“Muitos dos neoconservadores que constituem a base de poder
de G. W.Bush esperam um Fim promovido por intervenção divina. Encaram os
conflitos mundiais – especialmente os que ocorrem em terras bíblicas-como
prenúncio do Armageddon, uma batalha final da luta entre a luz e as trevas.
Outros esperam ser poupados dessas provações numa Estase em que serão
conduzidos ao céu. Em ambos os casos, o mundo imperfeito em que a humanidade
tem vivido logo chegará ao fim” (idem).
Esta influência crescente das forças neoconservadoras nos E.
Unidos, segundo ele seria um fato novo e, na minha opinião, poria em perigo uma
característica do capitalismo americano que Marx tinha acentuado na sua obra de
juventude – " A questão judaica, onde proferiu a célebre frase:- “só nos
Estados livres da América do Norte [EUA] perde a questão judaica seu sentido
teológico, para converter-se em verdadeira questão secular” .
Marx não conheceu o Estado de Israel, mas todos sabemos que
na sua primitiva fundação prevaleceu a ideia de um Estado secular, oriundos do
sionismo do século IX.
Mas, desde que o partido direitista Likud chegou ao poder em
Israel, em 1977, a influência dos inúmeros grupos religiosos ortodoxos
aumentaram consideravelmente, enquanto as posições laicas do sionismo de
esquerda foram cada vez mais empurrada para fora do governo , deixando de ter
peso na sociedade judia, que vem mudando suas características de forma
acelerada . As instituições onde os trabalhistas obtinham seu maior prestígio ,
como os sindicatos, as corporações , a Central Sindical; as comunidades autónomas
como os kibuts, são pálidos arremedos da força que desfrutavam, perdendo a sua
importância social, muito por obra da globalização e da entrada de Israel no
mercado global que cobrou importantes dividendos (sua juventude,por exemplo,
hoje despolitizada , entregou-se a lógica do consumo de massas).
Isto se deve, em grande parte , as sucessivas ondas
migratórias ( do oriente e mais tarde dos antigos países do Leste Europa,
notadamente da antiga União Soviética) que deram um novo perfil ao Estado
judeu.
O sociólogo e pesquisador brasileiro, José Maurício
Rodrigues, na seu trabalho “A Sociologia Israelense e a Crise do Consenso
Sionista, apoiando-se nas teses do importante sociólogo israelense Shmuel
Eisenstadt, nos diz que :
” Em meados dos anos de 1990, Shmuel Eisenstadt (1995)
assinalava a “desintegração” do molde trabalhista-sionista, cujos elementos de
nacionalismo primordialista e revolucionário fundamentaram a construção
ideológica de Israel. Este processo, que se iniciara décadas antes, abriu um
vazio ideológico, a que se somou um pluralismo crescente na sociedade
israelense, levando a um reforço das identidades étnicas entre os próprios
judeus e ao aumento da influência da religião. Associou-se a isso, ainda, a
emigração de um milhão de judeus da antiga União soviética, com perspectivas
bastante distintas das ondas de emigração anteriores. Esta crise do sionismo
trabalhista tem um momento fundamental na chegada da direita, o partido Likud,
ao poder em 1977. Baruch Kimmerling (2007a, pp. 1-3ss) chegaria a conclusões
semelhantes: Israel enfrenta a decomposição da “hegemonia” trabalhista-sionista
e, com forte pluralidade social emergindo, mergulha em “guerras culturais”
desprovida de um modelo multicultural. Em contrapartida, mantêm-se os
arraigados códigos culturais do “militarismo civil” e de um judaísmo genérico,
bem como um Estado forte interna e externamente". ( José Maurício
Rodrigues,in A Sociologia Israelense e a Crise do Consenso Sionista ).
Esta nova aliança entre o partido Likud e as forças políticas
mais a direita levou a um fortalecimento dos grupos religiosos que embora em
muitos casos não aceitem a existência do Estado de Israel são intensamente
subsidiados por esse mesmo Estado , mantendo suas próprias escolas , serviço
médico, etc, portando -se muitas vezes como um estado dentro do Estado. Em suma
: a falência da política secular levou cada vez mais a expansão da religião
como expressão do Estado Judeu , fato idêntico ao que ocorre com seus vizinhos
árabes, onde os movimentos dominados por seitas religiosas vão ocupando o
espaço dos antigos movimentos políticos de caráter laico.
E mesmo se olharmos para a outra grande religião – o
cristianismo, nas suas diversas versões ( católica e protestantes ) em todo o
mundo, veremos que ocorre movimentos semelhantes, com o fortalecimento de suas
vertentes mais ortodoxas.
Parece-nos, então, que está em curso o fortalecimento das
forças militantes das diversas religiões , preparando-as para os grandes
embates religiosos-militares que virão !
Robert Kurz, em 2003 publicou o livro “A Guerra de
Ordenamento Mundial”, e no seu capítulo IV, O Oriente Próximo e Síndrome do
Anti-Semitismo , faz uma reflexão sobre o entendimento do Estado de Israel e
seu caráter peculiar no âmbito das nações e, não abrindo mão de acentuar o
atual caráter fascista do Estado Judeu, lamenta a submissão das forças das
esquerdas ao anti-semitismo , racista e excludente desenvolvida pelos países
mercantilistas e capitalistas em relação ao povo judeu.
Kurz vê o anti-semitismo como uma válvula de escape a que
burguesia lança mão toda vez em que o capitalismo entra em crise. A lógica
capitalista ( da apropriação da mais valia que se faz através da dimensão
ideológica da conexão da forma social, que vai para além das classes e das
nações e é objectivada em termos históricos, do trabalho abstracto, do valor,
da forma da mercadoria, do dinheiro, da produção em regime de economia
empresarial, do mercado mundial e do Estado ) , necessita em momentos de crise
de objetivar um sujeito, causador ( pela sua existência) dos males que afligem
a sociedade. E isto sempre ocorreu em relação aos judeus ,desde a Antiguidade
(Babilonia, Egito, Roma,etc) até a Modernidade ( onde o holocausto nazista se
destaca), por tempos imemoriais.
A questão judaica sempre esteve presente, em maior ou menor
grau, na histórias das Nações . No caso do Brasil ela é um elo importante na
construção do Estado Nacional que tentamos erquer no processo da nossa
existência . A perseguição aos judeus para mim, e muitos autores, foi um dos fatores
determinantes que moldaram a característica do povo português e por extensão o
povo brasileiro. A princípio duas mentalidades foram formadas, viciosas e
inimigas. Assim eram, segundo o historiador José Hermano Saraiva:
“… a do cristão-velho, detentor da verdade, inimigo da
inovação, farejador de erros alheios, dogmático e repressivo, e a do
cristão-novo, dissimulado, messianista, acosado, intimamente revoltado, não
solidário com o conjunto da comunidade nacional que o repele e a que ele no
fundo não reconhece como sua…” (in, Historia Essencial de Portugal, Jose
Hermano Saraiva ).
E tal fato se faz presente, até a modernidade .
Sobre isto nos diz Kurz:
“Assim, a esquerda do movimento operário e marxista, tal
como mais ainda a esquerda radical (e não menos a esquerda anarquista), nem
sequer se aperceberam de que elas próprias tinham assumido positivamente partes
essenciais da ideologia burguesa, como "legado" da história
ideológica e intelectual protestante e iluminista na formação do sistema
produtor de mercadorias. Incluindo em especial a canonização da abstracção
trabalho que, com o seu carácter de fim em si repressivo, tinha passado
directamente do ideário do protestantismo e do chamado Iluminismo do século
XVIII para a ideologia do movimento operário. Ao invocar precisamente o
trabalho como ponto de referência central pretensamente oposto ao capital, a
esquerda mais não fez que jogar um estado de agregação do capital contra outro.
Deste modo, o trabalho; não se apresentava como aquilo que de facto é, ou seja,
a forma de actividade especificamente capitalista (o trabalho abstracto em
Marx), portanto um conceito inteiramente pertencente ao capital e uma relação
real correspondente, mas como uma categoria ontológica da humanidade.( R.Kurz,
in A Guerra de Ordenamento Mundial).
Ainda, e mais adiante:
” Esta crítica do capitalismo notoriamente truncada sempre
apresentou pontos de contacto com a ideologia anti-semita. Pois o
anti-semitismo pôde ascender ao estatuto de uma perigosa ideologia de crise
precisamente pelo facto de exteriorizar e naturalizar em termos
socio-biologistas as contradições internas da sociedade constituída de forma
capitalista e de todos os seus sujeitos:os judeus tornaram-se a representação
negativa do capitalismo financeiro improdutivo e a encarnação de todas as
manifestações destrutivas da moderna sociedade produtora de mercadorias,
entroncando em atribuições desse género oriundas já da Idade Média e dos
primórdios da modernidade (como fora o caso, por exemplo, das tiradas de
agitação anti-semita de um Martinho Lutero). Ao que se devia contrapor, como
pólo oposto e positivo, o trabalho honesto e o capital produtivo; no caso dos
nazis, tal acontecia, como é sabido, sob a forma da contraposição do capital
rapace judeu ao capital criador alemão ou nacional. Em lugar da crítica das
formas reais e transversais às classes do sistema produtor de mercadorias surge
assim a culpabilização maliciosa imputada a um grupo de sujeitos específico,
definido pela raça segundo o mote: o trabalho, o valor, o dinheiro e a forma do
capital seriam maravilhosos e uma bênção se não fossem os judeus. Esta
atribuição, que fingia explicar a relação sistémica, já de si irracional, com
recurso a uma dimensão adicional de irracionalidade, ascendeu ao estatuto de
explicação do mundo ideologicamente assassina por excelência. ( Idem )
Robert Kurz nos faz pensar na crise mundial do sistema
produtor de mercadoria e na falência dos Estados Nacionais que não sobrevirão a
catástrofe da disolução da atual ordem mundial. Mas, ao mesmo tempo, nos
adverte da característica peculiar do Estado Nacional Judeu na época da sua
fundação : um Estado que surge como forma de defesa ( anti- liquidacionista) de
um povo que insiste em sobreviver no âmbito da humanidade.
” Certamente também ao Estado de Israel, que é evidentemente
parte integrante da economia mundial capitalista, pode ser atribuída a forma do
Estado moderno e do sistema produtor de mercadorias moderno com todos os seus
atributos negativos. Mas, devido ao seu carácter singular, já que constitui em
última instância um produto involuntário dos nazis e da lógica de aniquilação
da subjectividade capitalista na sua derradeira agudização, este Estado é o
primeiro, o último e o único a conter um momento decisivo de justificação que
aliás faltou desde o início a todos os Estados revolucionários nacionais do
terceiro mundo (os quais, afinal, todos muito rapidamente começaram a assumir
expressões bem feias). Trata-se de um Estado capitalista que é assim expressão
da forma de sujeito capitalista, mas que simultaneamente e de modo
paradoxalmente articulado representa a extrema necessidade e a última legítima
defesa contra essa mesma forma de sujeito” ( idem).
Ao abandonar estas características, que no início foram
libertárias, Israel atola-se nos infortúnios dos demais Estados contemporâneos
, afundando- se na corrupção , no totalitarismo e na insanidade radical
religiosa, apresentando -se meramente como vanguarda dos interesses do capital
nesta área estratégica , tornando-se , por seu dispendioso modo de vida,
próprio da sociedade da mercadoria , um país inviável economicamente ( a não
ser pela ajuda externa do grande capital que atua na região).
Salta aos olhos, que tanto a política belicosa de Israel
quanto o reacionarismo medieval das oligarquias árabes , são faces de uma mesma
moeda : a política de manipulação dos grandes grupos financeiros internacionais
que movimentam seus cordéis de acordo com seus interesses.
Não é impossível imaginar que o próprio Estado de Israel
seja, mais adiante, abandonado à própria sorte , cessada a sua importância no
tabuleiro da política internacional. Nesse sentido , morte da Utopia do
sionismo de esquerda resultou em criar uma nova diáspora , onde intelectuais e
jovens comprometidos com a emancipação humana abandonam Israel, tomado por
" novos bárbaros " que levam o país para uma política suicida.
E é esta imagem final do filme Kadoch, onde uma das irmãs
abandona Jerusalém e a outra submete-se aos ditames da religião, deixando de
existir como pessoa.
O cineasta Amos Gitai é conhecido por suas ideias e pela
luta pela união dos povos judaicos e palestinos, e nesse sentido, utiliza a sua
arte como instrumento de propagação de suas concepções . Certamente, ele
acompanha a a tragédia dos palestinos que mesmo antes de constituírem o seu
Estado já o vêem carcomido pelas contradições da corrupção e da decadência da
política laica da OLP e o assédio crescente da ortodoxia suicida dos grupos
religiosos que ocupam o espaço dos desmoralizados líderes palestinos.
Infelizmente, o ainda- não existente Estado Palestino afunda-se na divisão e no
desmantelamento dos valores éticos do que seria a sua constituição.
Mas, seria este um elemento impeditivo da união desse dois
povos ?
No Oriente Médio temos uma visão efetiva da tragédia que
assola humanidade mas, ao mesmo tempo, por ali se explicitam com agudeza as
contradições do mundo contemporâneo, nos dando a oportunidade de exercitar nossa
imaginação no novo mundo que virá após a debacle do capitalismo.
Num momento de crise dos Estados Nacionais ( que a crise na
política de representatividade nos acentua ) não será pela formação de mais um
Estado que se fará a redenção do povo palestino. E também isto não se fará pelo
fanatismo de Estados religiosos. Afinal, o conceito de Estado Nacional é uma
visão moderna, iluminista, que está num franco processo de superação. A
existência e o bem estar do povo palestino e do povo judeu passa pela emancipação
da emancipação da humanidade , dentro daquilo que propunha Marx na ” A questão
judaica”
E certamente a união desses povos só será feita fora da
lógica do capital e da sociedade da mercadoria!
Serra da Mantiqueira , abril de 2014
Arlindenor Pedro
Blog: arlindenor.com Veja o trailer: