SÃO PAULO - Havia apenas dois anos que Antonio Gonçalves Pereira, mercador de secos e molhados de Minas Gerais, tinha começado a usar casaca, peruca e espadim, quando tentou fazer parte do quadro de “funcionários” da Inquisição no Brasil. Filho de lavradores do Norte de Portugal, ele conseguiu mudar de vida em terras brasileiras com o comércio em Minas e tinha, em 1755, “boas casas”. Mas faltava-lhe destaque na sociedade e prestígio. Em busca de status, candidatou-se a um cargo civil no Santo Ofício, conquistado depois de três anos de um processo de apuração sobre suas origens. Com o título de “Familiar do Santo Ofício”, estava apto a investigar o passado de quem queria um cargo na Inquisição e a prender os suspeitos de “heresia”, acusados de fazer pacto com o demônio e ter outra fé que não a cristã.
Pereira foi um dos 1.907 civis - não clérigos - que foram empossados no cargo de “familiar” da Inquisição entre 1713 e 1785 no Brasil, atraídos principalmente pelo status que a função proporcionava, segundo o pós-doutorando em História da Universidade de Campinas (Unicamp) Aldair Carlos Rodrigues.
Em sua premiada tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), intitulada “Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social”, Rodrigues revela um lado menos conhecido da Inquisição: o dos brasileiros que queriam trabalhar para o Santo Ofício. E mostra que, diferentemente do que muitos livros didáticos ensinam, a Inquisição esteve, sim, muito presente no Brasil.
- A Inquisição foi muito importante para a formação da elite colonial no Brasil. Os novos ricos pressionavam para entrar na Inquisição, pois era uma forma de ascender socialmente - diz Rodrigues, cuja tese recebeu os prêmios Capes 2013 e Grande Prêmio Capes Tese Darcy Ribeiro, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação.
Atestado de “sangue puro"
Ter um cargo na Inquisição significava ter um dos atributos mais desejados na época: um atestado de que seu sangue era “puro”, ou seja, que a pessoa não pertencia a raças consideradas “infectas” pelo Santo Ofício, como judeus (inclusive os recém-convertidos), muçulmanos, negros e indígenas.
A perseguição da Inquisição na Península Ibérica a pessoas de outras religiões tem relação com a ocupação histórica da região. Em Portugal, a Inquisição foi estabelecida em 1536 e na Espanha no final do século XV, num contexto em que a Península Ibérica, durante boa parte da Idade Média, foi ocupada pela população islâmica, oriunda do Norte da África e do Oriente Médio. Também havia no local muitos judeus, devido à diáspora judaica.
No final da Idade Média, os Estados foram criados profundamente identificados com a fé cristã, expulsando a população islâmica. O judaísmo também passou a ser considerado um grande “problema” na Península Ibérica. Muitos judeus foram expulsos da Espanha e de Portugal. Outros foram convertidos à força ao catolicismo: eram os chamados “cristãos-novos”. Mas mesmo quem se convertia era considerado suspeito de praticar o judaísmo em segredo.
- A “limpeza de sangue” começa a ser uma questão de honra nessa sociedade, num contexto de ortodoxia (da fé católica) e da eliminação do islamismo e do judaísmo. Os Estatutos de Limpeza de Sangue, em todas as instituições, principalmente as que tinham maior prestígio, impediam a entrada de descendentes de judeus, muçulmanos e mulatos - conta Rodrigues.
Antes de permitir que civis integrassem seus quadros, o Santo Ofício fazia uma grande investigação sobre o passado do candidato ao cargo de “familiar”, que durava entre um e seis anos em sua maioria. Eram ouvidas testemunhas e analisados documentos até de gerações anteriores dos candidatos. Tanto rigor na apuração fazia com que a sociedade não ousasse questionar a “limpeza de sangue” dos quadros da Inquisição. Os próprios civis pagavam os processos, que eram caros.
- Através dos “familiares” é que a Inquisição se enraizou no Brasil. A sociedade da época aderiu à Inquisição - afirma Rodrigues.
Segundo o pesquisador, uma vez empossados no cargo de familiar, os “familiares” recebiam uma medalha para provar sua função, que eles usavam todos os dias (apesar de isso não ser o recomendado).
- Havia vários “familiares” corruptos. Alguns prendiam pessoas sem que a Inquisição tivesse ordenado ou usavam seus cargos para perseguir inimigos e suas famílias - revela
Rodrigues conta ainda que os “familiares” recebiam um pequeno salário por dia de trabalho, de valor inexpressivo, mas além do status, tinham vários outros benefícios: ganhavam direito a foro privilegiado para crimes como agressões físicas e não pagamento de dívidas, podiam usar armas de defesa e de ataque e roupas especiais e eram isentos de alguns impostos.
Os “familiares” ajudavam os funcionários eclesiásticos do Santo Ofício - os chamados comissários, que chegavam a 198 no século XVIII no Brasil. Além de prenderem acusados de delitos pela Inquisição, eram os “familiares” que, quando algum civil se candidatava a um cargo no Santo Ofício, ouviam testemunhas e os próprios candidatos no processo.
Ação sob o controle de Portugal
A pesquisa de Rodrigues, que será publicada em forma de livro em fevereiro, mostra que, de Portugal, a Inquisição tinha total controle sobre os suspeitos de delitos e o trabalho de seus funcionários no Brasil: a troca de correspondência era intensa. Da Europa, o Santo Ofício sabia até sobre os comunicados que eram pendurados nas portas das igrejas brasileiras.
Segundo a professora Anita Waingort Novinsky, do Departamento de História da USP, nos 300 anos de atuação da Inquisição no Brasil a instituição prendeu mais de mil pessoas. Como não havia tribunal do Santo Ofício no país, elas eram levadas para serem julgadas em Portugal.
- A Inquisição matou e queimou 21 brasileiros. Alguns eram estrangulados e depois queimados. Nos casos mais severos, eles eram queimados vivos. De oito pessoas que foram condenadas mas não foram encontradas, o Santo Ofício fez bonecos de pano, que foram queimados - lembra Anita.
A professora conta que os condenados que não eram mortos perdiam os seus bens (tomados pela Inquisição e muitas vezes pelos próprios “familiares”) e tinham a família amaldiçoada.
- Homens com dinheiro eram reduzidos à miséria e acabavam mendigando. Miguel Teles da Costa, que era capitão-mor de Paraty, Itanhaém e Ilha Grande, ou seja, era dono dessas terras, acabou mendigando - relata a historiadora.
Na opinião de Anita e Rodrigues, os livros didáticos brasileiros deveriam ser alterados, para eliminar a falsa ideia de que a Inquisição praticamente não esteve presente no Brasil.
- Como é que pode estar correta uma História do Brasil que omite um dos fenômenos mais fortes que existiu na vida econômica, politica e cultural do pais? - questiona Anita.
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