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A rosa e o tirano

“Esta é a história de uma rosa que um tirano condenou a morrer por mil anos. Os tiranos passam, as rosas ficam. Mas é preciso repetir a história por mil anos, para que as rosas não passem e os tiranos não fiquem” .

Em 21 de setembro de 1939, quase três semanas após o início da II Guerra Mundial, Reinhardt Heydrich, chefe da Polícia de Segurança do Terceiro Reich, enviou uma circular aos seus subordinados, com instruções para o que os nazistas chamavam de “Solução Final” – o extermínio da população judaica nos territórios ocupados. Em 20 de janeiro de 1942, ao encerrar a mais importante conferência realizada no Departamento Central de Assuntos Raciais, Heydrich determinou que a “Solução Final” fosse apressada. 

No cumprimento das ordens, o “gauleiter” da Polônia, Hans Frank, recusou-se a fornecer alimentação às 450 mil pessoas confinadas no Gueto de Varsóvia, em um espaço que só comportava 150 mil. Tinha 15 anos. Chamava-se Rosa, como muitas mulheres do seu povo. No Gueto, todos passavam fome e tinham medo. Rosa sentia-se só e aturdida. 

Quando olhava para cima, o universo era feito de sol, de azul, de nuvens brancas. Quando olhava para frente, o mesmo universo ficava cinzento e escorria pelo chão coberto de detritos, para terminar abruptamente junto ao muro. Foi ali que ela encontrou a roseira quase murcha e coberta de pó. A partir de 22 de julho de 1942, os nazistas acionaram ao máximo a máquina de horrores. Em menos de um ano, somente 60 mil pessoas sobreviviam no Gueto. As demais tinham morrido de fome ou sido assassinadas quando procuravam pular o muro em busca de comida. E também enviadas às câmaras de gás. Schmilek a viu ajoelhada junto ao muro. Pensou que ela enlouquecera. “Rosa, que fazes? – perguntou aflito”. Ela sorriu. Apontou a roseira. “Estava quase morta. Acho que a salvei”, disse Rosa. Schmilek respirou fundo e movimentou as mãos num cacoete de impaciência muito próprio dos homens de seu povo. 

Ficou só no gesto. Aquele sorriso apagava o muro cinzento e os seios de Rosa arfavam, na esperança da vida ressurgente. Em janeiro de 1943, Himmler fez uma visita-surpresa a Varsóvia. Não ficou satisfeito ao saber que lá ainda restavam 60 mil judeus. Suas ordens foram intransigentes: liquidação total até 15 de fevereiro. 

Rosa o chamou alvoroçada: “Schmilek!... a roseira!...” Ele olhou a planta. Um pequeno botão despontava. Tentou falar, dizer o que estava acontecendo no Gueto, mas desistiu. 

Dentro dos olhos de Rosa só havia flores. Ela não se sentia mais só nem aturdida. Então Schmilek sorriu com muita dificuldade, a custo contendo as lágrimas. Os alemães encontraram dificuldades para cumprir as ordens de Himmler. O desastre de Stalingrado e as contínuas retiradas do exército nazista da frente russa provocaram escassez de transportes. Era impossível retirar os judeus do Gueto em tão pouco tempo para conduzi-los aos campos de extermínio. Só em março a operação pôde ser iniciada. Mas sobreveio novo obstáculo: os judeus começaram a resistir. 

Então, foi ordenada a destruição do Gueto e o massacre de seus habitantes. Quanto o botão desabrochou, a rosa apareceu muito vermelha. Ela pediu: “Colhe a rosa, Schmilek. Colhe e me oferece”. Havia muito de céu nos olhos de Rosa. E também um apelo de amor. Era o momento de contar a verdade. “Rosa, nós vamos morrer”. A dor brotou dos olhos da menina, apagando o céu e o apelo de amor. 

O silêncio desceu entre os dois. Schmilek tomou-lhe a mão. Caminharam até onde havia uma fenda no muro. “Olha”. Rosa viu um soldado alemão. Ansiosa, buscou alguma coisa que o fizesse diferente. Só podia ver que o soldado era de carne e osso como eles. “Ele não gosta de rosas?” perguntou, sem conseguir entender. Schmilek aconchegou-a junto a si, procurando algo que a consolasse. “Ele gosta de rosas”, murmurou. “Por que, então?” “Disseram-lhe que éramos maus. Que o odiávamos. Agora acha que somos maus e nos odeia”. “Vamos falar com o soldado, Schmilek. Vamos mostrar a rosa. Dizer que é mentira. Que somos bons, que amamos a todos. Ele nos amará também. Todos seremos felizes”. Schmilek sacudiu os ombros em desânimo. Falou quase sem inflexão na voz: “Inútil. Não acreditaria”. Rosa calou-se. Voltou para a roseira. Começou a acariciar a flor recém-desabrochada, como se a estivesse gerando em suas próprias entranhas. 

De repente, irrompeu em alegria: “Vai nascer outro botão! Vai nascer outro botão, Schmilek! Preciso cuidar dele, também!” Schmilek não resistiu mais. Os soluços o sacudiam. Não pôde evitar que as palavras lhe saíssem aos gritos: “Mesmo sabendo que vamos morrer, insistes nesta idéia maluca de cuidar de rosas!?” Rosa não se alterou. Pelo contrário, estava calma. E eternamente calma, colheu a flor e beijou suas pétalas. “Só porque alguém não acredita em nosso amor, devemos esquecer as rosas?” 

Em 19 de abril, o general nazista Stroop atacou o Gueto com blindados, artilharia, lança-chamas e dinamite. Os judeus tinham somente alguns fuzis e duas metralhadoras. Assim mesmo, refugiados na rede de esgotos, lutaram até 16 de maio, quando foram vencidos pelo fogo que os nazistas atearam no Gueto. Toda a resistência cessou ao ser dinamitada a grande sinagoga da rua Tlomacki. 

 Não podiam esperar mais. “Vamos” convidou Schmilek, apontando o caminho dos esgotos. Ela vacilava. “E a minha rosa?” “Traze-a contigo. Estaremos juntos, os três”. “Não, a rosa precisa viver”. E sem que Schmilek entendesse o gesto, jogou a flor por cima do muro. Depois foi a escuridão dos esgotos. Hans Frank, gauleiter da Polônia, olhou feliz para a flor que estava em cima de sua mesa de trabalho. Um soldado a tinha encontrado, lhe dissera o general Stroop. 

Era tudo que restava do Gueto. Frank afagou o rosto com a flor, para sentir a maciez das pétalas. De alma leve, flutuando em bem-aventurança, começou o relatório: “O Gueto de Varsóvia deixou de existir...”. ... para que as rosas não passem e os tiranos não fiquem...

 Jayme Copstein

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