‘Hatufim’, série que deu origem a ‘Homeland
Criada por Gideon Raff, Hatufim estreou em
Israel em março de 2010 com uma temporada composta de dez episódios. Já
renovada para sua segunda temporada, a série foi exibida no Reino Unido
em maio de 2012, mesmo período em que foi disponibilizada em DVD no
mercado internacional, com o título de Prisoners of War.
Em 2011, a série ganhou uma versão americana com o título de Homeland,
a qual também conquistou a crítica e a audiência, tendo sido indicada
este ano ao prêmio Emmy de melhor série dramática. Como a maioria dos
remakes americanos, Homeland também apresenta história e personagens diferentes da série original.
A grande diferença é o foco da história. Hatufim é um drama sobre a readaptação de soldados que voltam traumatizados para a casa após uma longa ausência. Homeland é
um thriller de espionagem, o qual gira em torno de uma mulher
traumatizada com a possibilidade de ver seu país novamente atacado por
terroristas.
Tentarei ao longo do texto apontar a forma como a versão americana
adaptou algumas situações e personagens da série original. Em Homeland, dois soldados foram dados como desaparecidos. Um foi resgatado e o outro é dado como morto. Em Hatufim,
três soldados foram feitos prisioneiros. Dois foram resgatados e um é
considerado morto. Nas duas produções, as experiências em cativeiro são
mostradas através de cenas em flashbacks.
O texto abaixo contém spoilers.
Há dezessete anos, três soldados israelenses foram feitos
prisioneiros durante uma missão secreta para matar um membro da Jihad. A
história de Hatufim inicia quando o governo de Israel consegue
finalizar as negociações de troca de prisioneiros. Terroristas
islâmicos, responsáveis por um atentado à bomba que matou dezenas de
cidadãos serão entregues em troca dos dois soldados israelenses que
sobreviveram, Nimrod (Yoram Toledano) e Uri (Ishai Golan), bem como o
corpo do terceiro, Amiel (Assi Cohen), que faleceu durante uma sessão de
tortura.
No remake, o soldado americano é resgatado por uma força especial,
que não esperava encontrá-lo. As personalidades e histórias dos soldados
israelenses foram combinadas para criar Nicholas Brody (Damian Lewis), o
soldado americano.
Durante a ausência de Nimrod, sua esposa Talya (Yael Abecassis) se
tornou uma ativista, organizando passeatas, participando de reuniões com
políticos e fazendo barulho na mídia, criando assim um movimento social
para trazer os três soldados para casa. Artista gráfica, ela alimentou
essa campanha com painéis, cartazes, folhetos, outdoors, camisetas e
bonés que transformaram os rostos dos três soldados em heróis. Com isso,
o movimento cresceu levando o governo a priorizar o resgate desses
homens.
Quando os dois retornam, eles estão muito magros e fragilizados, com
baixa autoestima e assustados. Bem diferente da postura de Brody que tem
a aparência de um homem bem alimentado, com a atitude de alguém que
está pronto para deixar o cativeiro, embora psicologicamente ele esteja
alterado.
Nimrod é o que demonstra ter um comportamento mais aberto, sociável,
sorrindo de vez em quando, embora sufoque a revolta que sente pelo que
passou. Antes de ser preso ele era considerado um homem corajoso,
inteligente, com capacidade de comando. Alguém que poderia seguir uma
carreira na política. Algo que é sugerido para ele no final da primeira
temporada, o que leva a crer que, na segunda, ele siga este caminho.
Estas qualidades foram aproveitadas para compor Brody, que já na
primeira temporada começa a se envolver com o meio político.
Ao voltar para casa, Nimrod se reúne com a família: a esposa Talya e
dois filhos, Dana (Yael Eytan) e Hatzav (Guy Siniki). No entanto, ele
entra em constante conflito com a mulher, que assumiu uma atitude de mãe
severa, cobrando de Nimrod uma atitude que ele ainda não está em
condições de ter. Com isso ele passa a se sentir aprisionado dentro de
sua própria casa. Embora tenha uma atitude um pouco mais sociável com
estranhos, com a família Nimrod é reservado, tímido, assustado.
Preferindo dormir no chão, incapaz de manter relações com a esposa, ou
com quem quer que seja, ele não compartilha com a mulher seus segredos,
seus temores ou seus planos para o futuro.
Sentindo-se excluída da vida do marido e por vezes considerando-o um
intruso, Talya entra em conflito com seus sentimentos e com sua
trajetória. Depois de anos lutando para trazer o marido para casa, ela
agora não sabe como conviver com ele. A princípio paciente e tentando
compreender a situação do marido, Talya vai, aos poucos, se tornando
agressiva e exigente. A situação dela foi aproveitada para criar a
personagem Jessica (Morena Baccarin) na versão americana. Mas, tal como
Brody, Jessica também é a combinação de duas personagens da série
original: Talya e Nurit (Mili Avital), ex-namorada de Uri.
Dana, a filha mais velha de Nimrod, tinha dois anos quando ele foi
feito prisioneiro. Crescendo sem o pai e com a mãe dedicando todo seu
tempo livre para trazê-lo de volta, ela se tornou uma adolescente
rebelde. Viciada em sexo, Dana mantém relações com homens mais velhos,
muitos dos quais ela não sabe nem o nome. Sarcástica, Dana costuma fazer
comentários que causam embaraço para a família. Mesmo com o retorno do
pai, ela não muda seu comportamento, embora prefira a companhia dele que
a da mãe. Já seu irmão Hatzav não tinha conhecido o pai (a mãe estava
grávida quando Nimrod foi capturado). Por isso, ele representa para o
rapaz um completo estranho que se mudou para sua casa e com quem prefere
não ter qualquer relacionamento.
Enquanto isso, Uri tenta lidar com a notícia de que sua mãe faleceu
alguns anos antes dele ser resgatado. Sem nunca perder as esperanças de
rever o filho, ela lhe escreveu regularmente, embora as cartas nunca
tenham sido enviadas. Agora estas cartas se tornaram o único elo que Uri
tem com a mãe.
Quando ele foi feito prisioneiro, Uri estava noivo de Nurit que, a
princípio, lutou junto com Talya para tentar trazer os soldados para
casa. Mas, com o passar dos anos, ela foi perdendo as esperanças. Sem
saber se Uri estava vivo ou morto, ela passou a aceitar as atenções que o
irmão dele, Yaki (Mickey Leon), começou a lhe dar. Com o tempo, os dois
se apaixonaram e se casaram. Desta união nasceu seu filho, Assaf (Adam
Kenneth), que na volta do tio completa 13 anos.
Quando Nurit se casou, sua atitude chocou a nação. Tratada como
eterna noiva de um herói, o público não aceitou o fato de que ela o
traiu. Com isso, Nurit precisou lidar com a hostilidade constante do
público bem como o desprezo de Talya, que não a perdoou por isso. Esta
situação foi aproveitada pela produção americana na construção da
personagem de Jessica, que trai o marido com seu melhor amigo embora não
chegue a se casar com ele ou assumir sua relação em público. Já a
rejeição de Talya à atitude de Nurit é adotada por Jessica em relação à
esposa do soldado americano morto, que se cansou de esperar e se casou
com outro.
Uri já sabia que Nurit não havia esperado por ele. Enquanto era
prisioneiro, ele foi escolhido para dar aulas particulares ao filho do
líder do grupo que o torturava. O menino, desconhecendo a situação de
Uri, cria laços de amizade com seu professor. Assim, sempre que era
levado à presença do menino, Uri tomava banho, trocava de roupa e se
alimentava bem (o que lhe dava a oportunidade de roubar comida para
Nimrod). Em uma dessas ocasiões, Uri viu um jornal de Israel no qual era
divulgada a notícia do casamento de Nurit com seu irmão. Essa foi uma
das torturas que sofreu. A situação de Uri com o menino foi aproveitada
na série americana. No entanto, na série original, o menino não morre e
nem sofre um ataque aéreo.
Os personagens que serviram como referência na construção de Carrie
(Claire Danes), protagonista da série americana, são Yael (Adi Ezroni),
Iris (Sandy Bar) e Haim (Gal Zaid).
Um hábito de Ilan foi aproveitado pelos produtores americanos na
construção da personagem de Carrie. As paredes de sua casa são cobertas
por artigos e fotografias de cada soldado desaparecido ou morto sobre o
qual ele teve de informar. Na série americana, Carrie cobre uma das
paredes de sua casa com matérias de jornal que servem de pistas para
levá-la a identificar terroristas.
Em Homeland, Ilan poderia ser Virgil (David Marciano) que,
embora não se envolva romanticamente com Carrie, é o homem que ela chama
para lhe prestar serviços. Já a personalidade de Ilan foi emprestada à
Saul (Mandy Patinkin), que age como amigo e conselheiro de Carrie.
Haid é o psicólogo militar encarregado de interrogar Nimrod e Uri,
procedimento padrão para descobrir a que tipo de tortura os soldados
foram submetidos e se, de alguma forma, eles foram ou não convertidos.
Simpático e atencioso, Haid está convencido que os dois escondem algum
segredo. Obrigados a passar alguns dias na base militar para se submeter
a um programa de reabilitação, Nimrod e Uri são constantemente vigiados
através de câmeras, algumas das quais estão escondidas no quarto em que
eles dormem. Sem conseguir obter informações que comprovem suas
suspeitas, Haid é obrigado a liberá-los. Na série americana, Carrie
instala câmeras na casa de Brody e passa a vigiá-lo dia e noite na
tentativa de encontrar uma prova de que ele é um terrorista.
Enquanto estiveram na base, os soldados conversaram entre eles
utilizando um código com a batida dos dedos. Algo que foi visto na série
americana ao final do primeiro episódio. Assistindo Brody na TV, Carrie
percebe que ele movimenta os dedos em um ritmo que parece ser um
código. Na série original, Haid consegue decifrar esse código, mas não
percebe nos diálogos travados entre os dois informações que comprovem
suas suspeitas.
Assim, em busca de provas, ele chama Iris, uma agente especial que
faz amizade com Uri, o soldado que está psicologicamente mais
fragilizado e sozinho. Ela se envolve romanticamente com ele (da mesma
forma que Carrie se envolveu com Brody) para tentar descobrir a verdade,
mas acaba se apaixonando por Uri. Esta relação de trabalho de Haid e
Iris foi aproveitada por Saul e Carrie, embora os personagens da série
original não sejam amigos como na versão americana.
Nesta primeira temporada, o único segredo que os soldados parecem
esconder é a forma como Amiel morreu. Os terroristas colocaram Nimrod em
uma situação na qual ele precisou escolher qual dos dois amigos
sobreviveria. Ele escolheu Uri. Assim, foi obrigado a torturar Amiel até
a morte. Mas, nos dois últimos episódios da primeira temporada, Nimrod e
Uri descobrem que Amiel ainda está vivo, convertido ao islamismo. Mesma
situação vista na versão americana.
A segunda temporada de Hatufim deve girar em torno da
situação de Amiel, da decisão de Nimrod de seguir carreira política, da
descoberta de Uri de que estava sendo vigiado por Iris e da tentativa de
Haid de provar que os dois soldados que retornaram escondem algum tipo
de segredo.
A série estreou em seu país no mesmo período em que era negociada a
libertação de Gilad Shalit, soldado mantido prisioneiro por cinco anos
pelo grupo Hamas. Em 2011, pela troca de 1.027 prisioneiros palestinos,
Shalit foi solto. Com isso, o público associou Hatufim com a
história de Gilad. Alguns criticaram Gideon Raff, o autor da série, por
se aproveitar da angústia de uma família para conquistar audiência com
uma produção televisiva. Outros, parabenizaram Raff pela audácia em
abordar um tema considerado tabu em seu país.
Em entrevista ao Jewish Journal, Raff disse que criou Hatufim quando,
após viver em Los Angeles, voltou para Israel com a intenção de
trabalhar com roteiros para a TV. Logo ele percebeu que existiam poucas
produções que lidassem com a situação vivida pelos prisioneiros de
guerra, tema constantemente abordado em jornais e em livros. Mesmo
assim, essas histórias giravam em torno do trauma do cativeiro ou da
obsessão das famílias em resgatarem seus parentes. Mas as dificuldades
de readaptação não eram trabalhadas.
Hatufim não é melhor nem pior que Homeland. São
duas produções completamente diferentes contando a mesma história, sendo
que cada uma consegue explorar muito bem o gênero narrativo que
escolheu. Com um ritmo mais lento e intimista, mergulhando bem mais a
fundo na situação emocional e psicológica dos envolvidos, Hatufim traz um trabalho mais sensível de construção de personagens que Homeland.
Talvez porque o tema seja mais próximo de Israel que dos EUA. Muito
embora os americanos tenham vivido situação semelhante com a guerra do
Vietnã, onde soldados foram feitos prisioneiros, voltando para casa
traumatizados.