Sefaradi

Sefaradi

magal53
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Uma vez eu queria ser sefaradi. NĆ£o me perguntem por quĆŖ? Sei lĆ”? Eu queria e ponto.

AliĆ”s muitos membros das comunidades por onde passei me perguntavam se eu era sefaradi. Deixem-me explicar o que Ć© sefaradi, pois temos leitores que nĆ£o conhecem esta expressĆ£o. Sefarad Ć© um dos nomes mais usuais para Espanha. NĆ£o a Espanha moderna, mas a Espanha antiga e medieval. Os judeus que descendem dos membros da comunidade judaica de origem espanhola foram denominados, desde entĆ£o, como sefaradis. Eles foram expulsos da Espanha pelos reis catĆ³licos no mesmo ano em que Colombo saiu para sua primeira expediĆ§Ć£o Ć s AmĆ©ricas (1492).

O termo Sefarad jĆ” aparece num profeta bĆ­blico: Obadias. E no simbĆ³lico livro de Jonas, que Ć© lido na oraĆ§Ć£o vespertina do dia da ExpiaĆ§Ć£o (Iom Kipur), conta-se que o profeta quando intimado por D-us para profetizar contra os habitantes de NĆ­nive, ficou receoso e queria escapar deu Seu alcance, fugindo de navio para Tarsis (em hebraico Tarshish). Acreditava que D-us sĆ³ tinha poder na regiĆ£o de CanaĆ£, e saindo das redondezas estaria livre. Onde ficava Tarsis? Na atual Catalunha, nĆ£o muito longe da Barcelona de nossos dias. Era um “fim de mundo”, para onde o fugitivo estava se retirando. Uma colĆ“nia fenĆ­cia existia neste local. Pela segunda vez a Espanha aparece no texto bĆ­blico. Isso pode significar algo?

I. Baer (historiador israelense) acredita que havia judeus na Hispania antiga, desde remotas eras. HĆ” lapides muito antigas em hebraico que mostram que judeus habitavam na regiĆ£o nos primĆ³rdios da ocupaĆ§Ć£o romana. Uma relaĆ§Ć£o antiga unia os judeus e a Espanha (Hispania)
.
A relaĆ§Ć£o sempre se manteve. O cancioneiro sefaradi estĆ” repleto de mĆŗsicas e temas que mostram a antiga e intensa relaĆ§Ć£o dos judeus com a Espanha.

Sefarad nasce na vida judaica com algumas tragĆ©dias iniciais. Os romanos nĆ£o tardam a se converter ao Cristianismo. E antes da proteĆ§Ć£o imperial se consumar com o governo de Constantino o Grande (sĆ©culo 4 d.e.c), jĆ” havia leis que separavam judeus de cristĆ£os. O concilio de Elvira (c. 307) proibia os cristĆ£os de fazer ceias coletivas com os judeus, levar os rabinos e sĆ”bios para “benzerem” (abenƧoarem) seus campos e uma gama de relaƧƵes sociais que aproximavam os judeus de seus vizinhos cristĆ£os. Parece que havia boas relaƧƵes jĆ” que faziam ceias e outras atividades juntos, mas a Igreja lanƧa interditos.

A regiĆ£o da PenĆ­nsula IbĆ©rica foi invadida por vĆ”rios povos bĆ”rbaros. ApĆ³s um sĆ©culo, prevalecem os visigodos que nĆ£o sĆ£o catĆ³licos, mas professam uma heresia denominada ariana (nĆ£o hĆ” relaĆ§Ć£o direta com o arianismo dos sĆ©culos 19 e 20). HĆ” uma aproximaĆ§Ć£o entre hispano-romanos catĆ³licos e seus conquistadores visigodos-arianos. O resultado Ć© a unidade sob a Ć©gide do cristianismo catĆ³lico. Um rei, uma monarquia, uma religiĆ£o. Este lema se repetirĆ” como um “eco na histĆ³ria”, por vĆ”rias vezes.

Esta unidade almejada fortalecia a monarquia ameaƧada por uma nobreza revoltosa e por um processo de proto-feudalizaĆ§Ć£o. Para evitar o fracionamento da regiĆ£o, a Igreja e a monarquia se unem e buscam a unidade. O empecilho maior a esta unidade eram os nĆ£o cristĆ£os: pagĆ£os e judeus. Isto sem falar dos grupos herĆ©ticos cristĆ£os. O resultado desse processo foi a tentativa de conversĆ£o forƧada dos judeus pelo rei Sisebuto (c. 616).

Nas dĆ©cadas seguintes vemos o surgimento de novas leis repressoras. Mas se os judeus tiveram que optar pela conversĆ£o ou pela fuga, como se renovam as leis anti-judaicas? O que os estava reprimindo se haviam sido convertidos?

HĆ” algumas hipĆ³teses: a) Novos judeus imigraram apĆ³s as conversƵes; b) os judeus batizados retornaram ao JudaĆ­smo; c) Uma mistura das anteriores.

Isso burlava duas vezes a pressĆ£o cristĆ£. Seria uma negaĆ§Ć£o da validade do batismo. Se este era um sacramento nĆ£o podia ser desfeito, pois era um ritual simbĆ³lico e sobrenatural e sem chance de ser retroagido. FazĆŖ-lo era desacato e teria de ser punido. De 633 (data do IV ConcĆ­lio de Toledo) a 711 a vida dos judeus sefaradis foi uma terrĆ­vel perseguiĆ§Ć£o, sucedida por conversƵes coletivas forƧadas e restriƧƵes legais aos descendentes de “judeus” convertidos que mesmo se tornando cristĆ£os, eram discriminados. Essa difĆ­cil fase se encerra com a invasĆ£o muƧulmana na PenĆ­nsula IbĆ©rica e a queda do reino visigĆ³tico. NĆ£o tarda e se instala o califado: sua sede era em Damasco, mas a apĆ³s a queda dos omĆ­adas (califas de Damasco), viria surgir um emirado e depois um califado em CĆ³rdoba. O que isto significava para os judeus?

Os lĆ­deres muƧulmanos eram muito mais tolerantes com os judeus nos trĆŖs primeiros sĆ©culos do IslĆ£. Essa atitude muda depois de trĆŖs ou quatro sĆ©culos. Em principio, os muƧulmanos eram cordiais com os judeus, a partir do inĆ­cio da expansĆ£o do IslĆ£. Leis foram adotadas em favor das minorias denominadas os Povos do Livro: judeus e cristĆ£os. Haviam sido iluminados por AlĆ” atravĆ©s dos grandes profetas: MoisĆ©s (Mussa) e Jesus (Yeshu), os dois antecessores do Ćŗltimo e maior iluminado MaomĆ© (Muhamad). Utilizando-se de trechos selecionados do CorĆ£o (hoje a seleĆ§Ć£o Ć© outra), os primeiros califas adotaram uma polĆ­tica de tolerĆ¢ncia e de bom tratamento a seus sĆŗditos monoteĆ­stas: judeus e cristĆ£os. Ɖ sempre estranho relatar num jornal judaico, que hoje se alimenta de notĆ­cias e fatos, tĆ£o complexos e tensos que envolvem judeus e Ć”rabes muƧulmanos, que outrora houve uma agradĆ”vel e profĆ­cua relaĆ§Ć£o e convivĆŖncia entre judeus e Ć”rabes nos primeiro sĆ©culos do IslĆ£.

Esse perĆ­odo serviu de pano de fundo para certas novidades. Os Ć”rabes muƧulmanos e muitos dos intelectuais convertidos pacificamente ao IslĆ£ (religiĆ£o que se opunha Ć s conversƵes forƧadas de povos monoteĆ­stas), fizeram a traduĆ§Ć£o de manuscritos dos filĆ³sofos gregos: inicialmente PlatĆ£o e num estĆ”gio posterior, de AristĆ³teles. Surgia a Falsafa, ou seja a versĆ£o Ć”rabe da filosofia clĆ”ssica. O objetivo que se delineou foi comprovar a verdade da RevelaĆ§Ć£o CorĆ¢nica elaborada por MaomĆ©, atravĆ©s da RazĆ£o e da filosofia. Em BagdĆ” se instalou um centro de debates que ordenou as discussƵes e elaborou sĆ­nteses entre a crenƧa islĆ¢mica e a filosofia grega. Um dos termos usados Ć© Kalam. 

Influenciados por tal debate surgem os sĆ”bios judeus que imbuĆ­dos de profunda fĆ© e respeito a crenƧas judaicas tradicionais, elaboram sĆ­nteses e diĆ”logos entre o judaĆ­smo talmĆŗdico e a filosofia grega. Isso nĆ£o era novidade entre nĆ³s. O cĆ©lebre FĆ­lon (ou Filo), um sĆ”bio judeu de Alexandria, jĆ” o fizera antes do cristianismo surgir. Mas alguns sĆ©culos depois, temos algumas figuras de proa do judaĆ­smo que se aproveitam desta nova discussĆ£o, renovam nossos pensamentos e dialogam com a RazĆ£o (na sua versĆ£o neo-platĆ“nica e depois na versĆ£o neo-aristotĆ©lica). Um dos expoentes orientais desta linha Ć© o renomado sĆ”bio judeu egĆ­pcio denominado Saadia Gaon (pois foi gaon [espĆ©cie de lĆ­der espiritual] numa das academias babilĆ“nicas, em meados do sĆ©culo 10). Nos sĆ©culos seguintes esse diĆ”logo e as discussƵes foram para Sefarad. Inicia-se na Sefarad ou Al Andaluz (Espanha muƧulmana medieval) uma Era de Ouro do JudaĆ­smo.

Num clima de tolerĆ¢ncia das autoridades e num respeito pleno aos sĆŗditos infiĆ©is de origem judaica (e cristĆ£), os emires, califas ou pequenos reis de taifas permitiram autonomia, certas liberdades e uma imensa elaboraĆ§Ć£o religiosa-cultural aos judeus sefaradis.

Sefarad serĆ” palco de poetas (e filĆ³sofos) como Shlomo ibn Gabirol e JudĆ” HaLevi. De magnĆ­ficos pensadores como MoshĆ© e AbraĆ£o ibn Ezra. De um gĆŖnio como o incomparĆ”vel Rambam MaimĆ“nides. A lista seria enorme se comeƧasse a citar. Omiti de maneira consciente pelo menos duas dezenas de nomes de sĆ”bios e brilhantes pensadores. O leitor que conheƧa o tema me farĆ” inĆŗmeras observaƧƵes e criticarĆ” omissƵes. Este nĆ£o era meu objetivo: a apologia dos sĆ”bios sefaradis Ć© ampla e jĆ” a fizeram antes de mim.

A liĆ§Ć£o que leio deste momento Ć© a possibilidade do diĆ”logo: o diĆ”logo entre Oriente e Ocidente, entre judeus, cristĆ£os e muƧulmanos, entre as diversidades e as diferenƧas.
UtĆ³pico? Com certeza estou sendo utĆ³pico. Iludido e sonhador. Mas com que sonhar em nossos dias: com a classe polĆ­tica? Com a cretinice de lideranƧas internacionais? Ou com o fim das ideologias? O vazio que vivemos Ć© um convite Ć  busca de pseudo-valores como os dos skinheads ou dos “mauricinhos” hedonistas.

Buscar na histĆ³ria modelos e ideais Ć© uma velha forma de utilizaĆ§Ć£o de certos momentos e personagens, como pano de fundo de valores e sonhos.

Os gregos, os romanos ou mesmo nĆ³s, judeus, jĆ” o fizemos. Todos criam seus herĆ³is e seus modelos idealizados e idĆ­licos.

O meu sonho eu tive andando sozinho pelas ruas de Toledo e de CĆ³rdoba em 1994. Eu entrava e saĆ­a de prĆ©dios e perambulava pelas ruelas e alamedas. Via em cada canto imagens de um passado, no qual judeus, muƧulmanos e cristĆ£os souberam pelejar, mas tambĆ©m dialogar e ser muito mais respeitosos com a diversidade. Sefarad ou HispĆ¢nia, ou al Andaluz, foi depois o palco de conversƵes forƧadas de judeus e mouros, e da InquisiĆ§Ć£o. Nos sĆ©culos 11 e 12 penetram em Al Andaluz (ou Sefarad), mouros (muƧulmanos do norte da Ɓfrica). Em duas levas sucessivas, ambas permeadas de fanatismo: os almorĆ”vidas e depois os almĆ³ades. Tudo se altera: hĆ” restriƧƵes, pressƵes diversas e atĆ© tentativas de conversƵes forƧadas de sĆŗditos judeus.

Na seqĆ¼ĆŖncia os judeus migram para outros paĆ­ses muƧulmanos. Um exemplo Ć© a famĆ­lia de MaimĆ“nides que perambula pelo Marrocos e acaba se estabelecendo no Egito. Eram a primeira leva de exilados sefaraditas. Uma grande parte dos judeus migra para o Norte, para os reinos cristĆ£os: LeĆ£o, Castela, Navarra, AragĆ£o e Barcelona (ou Andaluzia). Mais tarde surge Portugal. Estes reinos precisam dos judeus e os recebem com regalias denominadas “privilĆ©gios”. Precisam de colonos e de administradores, comerciantes e artesĆ£os. Por mais dois a trĆŖs sĆ©culos, os judeus se integram e sĆ£o tolerados pelos reis cristĆ£os. Ocorre a Idade de Prata. Um perĆ­odo culturalmente inferior a Idade de Ouro, mas de relativa estabilidade e alguma dose de tolerĆ¢ncia. Isso perdura atĆ© 1391. Inicia-se entĆ£o o processo de conversƵes forƧadas e pressĆ£o sobre os judeus nos reinos cristĆ£os que jĆ” nĆ£o os tem como fundamentais para sua expansĆ£o. Surgem os cristĆ£os novos. Aproxima-se o triste perĆ­odo da InquisiĆ§Ć£o, e Sefarad passa a ser lembrada como o palco de autos de fĆ©, fogueiras e terror. Mas nĆ£o foi sĆ³ isto, como jĆ” vimos.

Sefarad nos ofertou nos sĆ©culos 8 e 9 um modelo de convivĆŖncia e diĆ”logo, de tolerĆ¢ncia e respeito. Ao passear pelas ruas de cidades como Tudela, Sevilha, SegĆ³via esbarro em memĆ³rias, sinais indelĆ©veis de uma presenƧa judaica em terras espanholas: Sefarad nĆ£o se extingue com a expulsĆ£o em 1492, nem com os rĆ©us da inquisiĆ§Ć£o sendo queimados em fogueiras e punidos em autos de fĆ©: Sefarad se eterniza em seus filhos e na obra de gigantes do pensamento e da cultura.

E ainda tem quem chame a era medieval de era das Trevas...

 
Entenderam por que eu queira ser sefaradi? Pensem nisto!

(SĆ©rgio Feldman Ć© doutor em HistĆ³ria pela UFPR e professor de HistĆ³ria Antiga e Medieval na Universidade Federal do EspĆ­rito Santo, em VitĆ³ria, e ex-professor adjunto de HistĆ³ria Antiga do Curso de HistĆ³ria da Universidade Tuiuti do ParanĆ”.)

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