por Sheila Sacks
O ano judaico de 5773 se inicia ao anoitecer de
16 de setembro de 2012 e, segundo o calendário lunar hebraico, daqui a 228
anos, no ano comum de 2240, terá início o 7° milênio (6001). Até lá, tudo pode
acontecer, quando se trata de Nostradamus e suas fatídicas profecias.
Por
que tanta gente, quando quer explicar o inexplicável, ainda cita esse obscuro
vidente, nascido há 500 anos e que, aparentemente, não dizia coisa com
coisa?
O
maior fenômeno midiático de todos os tempos tem nome e sobrenome: Michel de
Nostradame, codinome Nostradamus. Jogando por terra conceitos básicos da boa
comunicação, como a clareza e a objetividade, o mago é o exemplo mais radical
de que a desordem redacional dá ibope.
Valendo-se
de uma misteriosa e complexa fonte de informações – a mística judaica –
Nostradamus fez seu pé-de-meia junto aos poderosos e, de quebra, ganhou uma
cadeira cativa na galeria dos notáveis da História.
Interesse sobre o
mago aumentou depois do 11 de setembro
Já virou rotina na mídia: a cada
desastre natural, ato de terrorismo ou situação anormal no planeta, uma
multidão de curiosos e pseudoestudiosos surgem do nada para garimpar o seu minuto de fama, divulgando rocambolescas
teorias com base em obscuros versos de um médico-astrólogo que viveu na
Renascença. Nascido em 1503, na região da Provença, no sul da França, Michel de
Nostradame transformou-se no maior fenômeno literário e cibernético de todos os
tempos.
Segundo os pesquisadores de plantão,
depois do atentado ao World Trade Center, em 11 de setembro (2001),
Nostradamus ganhou status de ídolo, sendo uma das palavras mais acessadas na
Web. Também estão contabilizados milhares de livros, cujos autores recontam e
interpretam a seu bel-prazer os textos do vidente, muitos com a ressalva de que
dedicaram 30 a
40 anos de suas vidas em pesquisas full time. Talvez essa seja uma das
razões para que muitos afirmem que As Profecias seja o livro mais
editado de todos os tempos, depois da Bíblia.
Também conhecida como Centúrias,
a obra é uma sequência de 942 quadras (versos em quatro linhas), agrupadas em
conjuntos de 100. O primeiro fascículo foi publicado em 1555, e os demais, dois
e três anos depois. Em 1568, dois anos após a morte do vidente, apareceu a
versão que chegou até os nossos dias, com a inclusão de mais três centúrias.
Medo da Inquisição faz Nostradamus
fugir
Em seu livro “The Jewish Doctor: A
Narrative History”, o norte-americano Michael Nevins conta que ambos os avós de
Nostradamus eram médicos e o influenciaram em seus estudos de matemática,
astrologia, latim, grego e hebraico. “Eles participaram ativamente da educação
do neto, introduzindo-o na medicina, no trato com as ervas naturais e,
principalmente, no secreto estudo da Cabalá e da alquimia”.
Segundo o autor, que também é médico,
quando o rei da França, Luis XII, conhecido como o Pai do Povo (reinou de 1498 a 1515), obrigou os
judeus a se converterem, ameaçando com o confisco de bens e a pena de morte, a
família de Nostradamus obedeceu, mas secretamente continuou a professar a
religião judaica.
Formado pela Universidade de
Montpellier, Nostradamus começou a praticar medicina a partir de 1525. Ele
viajava bastante, exercendo a sua função de médico, ainda que praticasse uma
medicina pouco ortodoxa, com o uso de ervas e plantas. Isso durante o dia,
porque quando chegava a noite, ele reunia-se à rede secreta de alquimistas e
cabalistas em seus estudos, principalmente no campo da astrologia.
Nevins relata que Nostradamus, em 1537,
teve a Inquisição em seu calcanhar e durante seis anos ele vagou pela Europa, sendo
os seus passos, durante essa época, pouco conhecidos. Com a publicação de suas
primeiras profecias, ele conquista a fama e torna-se o favorito da
rainha da França, Catarina de Médici (1519-1589).
Profecias lembram textos de livros
hebraicos
Para o francês
Robert Benazra, fundador do Cahiers Kabbalah (revista de estudos sobre a
mística Judaica, na década de 1980) e pesquisador do Répertoire
Chronologique Nostradamique - um compêndio de 700 páginas com documentos e
publicações sobre Nostradamus - , o estilo literário das profecias lembra
os textos do Talmud (explicações e comentáriosrabínicos sobre a Torá/Pentateuco),
“sem uma ordem cronológica definida, saltando frequentemente de um tema para
outro, tendo por base a associação de ideias e apoiados em um jogo de palavras
somente compreensível para os iniciados”.
Benazra destaca que
o astrólogo, em carta ao seu filho César, dá a entender que é um estudioso da
Cabalá, ao afirmar que inúmeras obras escondidas ao longo do tempo lhe foram
reveladas. Os livros seriam Bahir, Zohar e Yetsirah (que
fala da criação do mundo), documentos fundamentais para o estudo da Cabalá. Os
trabalhos já seriam conhecidos na Provença, nos séculos 13 e 14, trazidos pelos
ancestrais judeus de Nostradamus.
Em outro trecho, o
vidente diz textualmente que “as revelações são recebidas em minhas continuadas
vigílias noturnas”, em alusão aos estudos da Cabalá que devem ser
feitos, preferencialmente, entre a meia-noite e a madrugada. Ele também escreve
que o “Deus imortal faz revelações aos profetas através de anjos bons e em meio
ao fogo”, lembrando Moisés no deserto e a sarça ardente (Êxodo 3.2).
Já na “Carta a
Henrique II, Rei da França” (marido de Catarina de Médici, que reinou de 1547 a 1559), Nostradamus
faz um registro da sua hereditariedade ao assinalar o instinto natural
recebido de seus antepassados.
Simbolismo da Cabalá é a principal influência
O caráter
conservador presente nos escritos e nas observações da quase totalidade dos
místicos é apontado pelo renomado historiador e teólogo alemão, Gershom Scholem
(1897-1982), como uma característica resultante da própria educação recebida
pelo aprendiz e da influência religiosa do seu guia espiritual, que vão
inspirá-lo e o irão conduzir pela vida afora (no caso de Nostradamus, os seus
avós).
Na obra “A Cabalá e
o seu Simbolismo”, Scholem observa que o místico sempre carrega dentro de si
uma herança antiga, permeada de elementos tradicionais, e com símbolos de seu
próprio mundo. “Por que um místico cristão sempre tem visões cristãs, e não as
de um budista?”, reflete o autor, que lembra ainda que a palavra Cabalá
significa tradição recebida.
Outro dado
importante é que Nostradamus nasceu no berço europeu da Cabalá, onde por volta
de 1180, apareceria o surpreendente documento cabalista conhecido como Sefer
Bahir (Livro Luminoso), escrito numa mistura de hebraico e aramaico.
Segundo Scholem, esse pequeno livro de 30 a 40 páginas é um texto difícil, cheio de
ditos e teses enigmáticas, que faz afirmações ambíguas acerca do problema do mal, a partir de um dos versículos do Velho
Testamento: “Do Norte irromperá
o mal sobre todos os habitantes da terra” (Jeremias1:14– Neviim/Profetas).
Coincidentemente, Nostradamus parece ter incorporado este conceito,
porque em suas Centúrias o
imprevisível também vem do norte: “Aparecerá,
no céu no norte, um grande cometa” (Cen.II-43); “De
repente ergue-se no céu uma enorme chama, quando os do Norte fizerem a sua experiência”
(Cen.VI-97). Scholem chama a atenção, ainda, para uma das características mais
marcantes entre os primeiros cabalistas que surgiram em Languedoc, na Provença:
a de sua postura diante do conceito do mal e
do demoníaco. Enquanto os filósofos judeus consideravam um problema menor, para
os cabalistas o mal sempre foi um assunto dos mais sensíveis e instigantes.
A associação com o número 7 nas
Centúrias
Outro livro que exerceu grande
influência no misticismo judaico europeu e nos estudiosos da Cabalá foi o Sefer há-Temuná (Livro da Configuração
ou da Imagem), que surgiu na Catalunha, por volta de 1250. Entre outros temas o
texto fala de 7 ciclos cósmicos de sete mil anos cada um, ao fim dos quais se
somariam mais mil anos, formando o 50º milênio do Jubileu (‘Santificareis o 50º
ano...’ - Levítico 25.10). Cada ciclo seria governado por um atributo diferente
de Deus, resultando em períodos mais austeros e outros menos severos.
Observa-se, ainda, que um dos maiores
mestres da astrologia na Europa Medieval, o rabino espanhol Abraham ben Meir
Ibn Ezra (1089-1167), ensinava que o sistema astrológico de tempo se
estruturava sobre 7 ciclos ou planetas (Saturno, Vênus, Júpiter, Mercúrio,
Marte, Lua e Sol). Cada um influenciaria o mundo por um período de 354
anos e 4 meses, repetindo-se ao término de cada conjunto de ciclos. Médico e
erudito, ele viveu na Provença quatro séculos antes do nascimento de
Nostradamus, e escreveu cerca de 200 livros sobre os mais variados assuntos -
religião, filosofia, astronomia, gramática hebraica e matemática -, nove deles
voltados à astrologia (o mais conhecido é o Sefer há-Olam – O Livro do
Mundo).
A freqüência do número 7 nas páginas do
Velho Testamento, número associado à própria Criação e a símbolos, eventos e
normas básicas do judaísmo, também pode ser observada na obra de Nostradamus.
Ele registra o número 7 em várias quadras de suas Centúrias e Presságios:
O cometa brilhará por 7 dias... (Cen.II-41); O ano de 1999 e 7
meses... (Cen. X-72); Outro que não o Papa ocupará o trono de São Pedro
por 7 meses...(Cen.VIII-93); Um outro (poder) restabelecerá a monarquia
até o sétimo milênio... (Cen.I-48); Por semearem a morte, 7 países da
Europa serão mortalmente feridos... (Pr. 40); A grande cidade de 7
colunas... (Cen.I-69).
Mas, é na quadra X-74, uma das mais
conhecidas e citadas, que se verifica uma clara transposição da mística judaica
quanto ao ciclo cósmico, ao ano do Jubileu e a era messiânica (com a
ressurreição dos mortos, presente na oração judaica diária da Amidá/18
bênçãos). Os versos da quadra dizem: “No ano do grande sétimo número
completado, aparecerá nesta ocasião os jogos da hecatombe, não longe da idade
do grande milênio, quando os mortos sairão de suas tumbas.”
Ano judaico começa no 7° mês bíblico
O rabino Chaim Zukerwar – nascido no
Uruguai e que estudou a Cabalá em seminários rabínicos em Jerusalém – lembra
que o número 7 costuma indicar os ciclos e os processos que abrangem a
dobradinha tempo e espaço, aparecendo nos textos judaicos de tradição
oral e escrita. Em sua obra “As 3 dimensões da Kabalá”, ele dá alguns exemplos:
“Em seis dias Deus criou os céus e a terra, e no sétimo dia descansou (Shabat/sábado);
Durante 7 dias é celebrada a festa de Pessach (Páscoa judaica/libertação dos
judeus no Egito); 7 semanas depois é Shavuot (Outorga da Lei-Torá); Sete meses
depois de Pessach é Sucot ( Festa das Cabanas)” etc.
Outro dado interessante é que o ano
novo judaico começa no sétimo mês bíblico (1º de Tishrei/podendo ocorrer em
setembro ou outubro), ainda que o primeiro mês do calendário judaico seja
Nissan (março-abril), quando se comemora a Páscoa Judaica (aniversário da
criação do mundo). O ano
regular tem 354 dias (ou 353/355), encerrando-se em 29 de Elul
(agosto-setembro).
Previsões se estendem até o ano de 2240
Além dos números, as datas incluídas em
seus versos também instigam e alimentam o mito Nostradamus. Benazra assinala
que na carta ao “Rei da França”, em 1558, Nostradamus é muito preciso quando
escreve que as suas previsões vão de 14 de março de 1557 até o início do 7º
milênio, em... 3797 (?), cobrindo um período de 2240 anos.
Para o pesquisador, o vidente
utilizou-se do calendário hebraico em seu enigma cronológico: o ano de 1557
corresponderia ao ano hebreu de 5318; o ano de 2001 equivaleria ao 5762; e 2240
ao ano 6001 do calendário judaico, ou seja, às portas do 7º milênio. Logo, as
datas de “julho de 1999”
ou “11 de setembro de 2001” ,
que provocaram acaloradas discussões e controvérsias (sobre a hipotética
previsão de Nostradamus de fim do mundo) estariam inseridas em uma contagem de
tempo alheia ao período da chamada Era Comum, já que Nostradamus, como
cabalista, não contabilizaria o fim dos dias pelo Novo Testamento.
Uma curiosidade: a médium mais famosa
da Inglaterra, Doris Collins (1918-2003), conhecida por reivindicar para si
poderes de clarividência e de cura, autora de três livros sobre o tema, afirmou
em uma de suas entrevistas na rádio e TV, que conseguiu manter contato com
Nostradamus uma única vez. Ele lhe teria dito que, embora tivesse mudado de religião,
isso não modificaria o fato real de que nascera judeu (site “Cristian
Answers.net’”).
Planetas determinam o destino do homem
No livro “Universo Kabbalístico”, o
inglês Z’ev ben Shimon Halevi – escritor e professor de Cabalá - afirma que a astrologia sempre esteve dentro
da Cabalá judaica, apesar de muitos negarem o fato. “Até no Talmud há
muita discussão sobre a influência do macrocosmo sobre o homem: por exemplo, um
rabino chamado Hanina argumentava que os planetas determinavam a sina de uma pessoa,
e um outro rabino, conhecido como Rava, declarava que a sorte de um indivíduo
não dependeria de merecimento, mas do seu planeta regente.”
Halevi assinala que nesses debates com
rabinos contrários à ideia do poder atuante dos astros, ninguém negava a
validade das influências celestiais, apenas o seu “governo” sobre Israel. “A
palavra mazalot, que significa zodíaco, tem a mesma raiz de mazal
(fortuna), e até hoje os judeus usam a expressão mazal tov (boa sorte)
nas festas e celebrações, sem se darem conta de que a palavra trata de
influências astrológicas”, explica o professor. E mais: o número 77 é o valor
da palavra hebraica mazal.
Nostradamus também previu a criação do
estado de Israel
Outro tema abordado por Nostradamaus em
suas Centúrias diz respeito ao retorno do povo judeu à terra de seus
antepassados. O pesquisador Robert Benazra lembra que na quadra III-97 o
astrólogo escreveu: “A nova lei ocupará a nova terra, em direção a Síria,
Judéia e Palestina, o grande império bárbaro desabará...”. O conteúdo dos
versos está em sintonia com as profecias de Zacarias (Eu farei chegar o meu
povo e ele permanecerá no centro de Jerusalém – VIII.8) e de Isaías (Nesse dia
os sobreviventes de Israel irão voltar- X.20; O Eterno juntará os exilados de
Israel e reunirá os dispersos de Judá, dos quatro cantos do mundo- XI.12).
“Deus faz os seres humanos
profetizarem”
Estudioso da mística judaica,
Nostradamus tinha conhecimento de que, segundo o Talmud, a era dos “Verdadeiros
Profetas” tinha chegado ao fim na primeira geração do Segundo Templo (515 antes
da Era Comum). Mas, provavelmente, também teria lido “O Guia dos Perplexos”,
escrito em 1190 por Maimônides. Na obra, o médico e filósofo judeu, nascido na
Espanha, expõe os Treze Princípios da Fé e fala sobre a crença de que “Deus faz
os seres humanos profetizarem”. Porém, o espírito da verdadeira profecia só
retornaria ao povo judeu um pouco antes da Era Messiânica e da total revelação
da Torá (o conteúdo dos espaços em branco, entre as palavras, seriam dados a conhecer).
Segundo o rabino Yossef Benzecry, da
sinagoga Beit Chabad, não se sabe como nem quando a era do Messias irá chegar.
Há uma data-limite que é o ano judaico de 6000 ( ano comum de 2240). Esse prazo
se deve ao fato de que cada milênio simboliza um dia da semana e o sétimo dia,
o sábado, corresponde ao período de paz, descanso, tranquilidade e
espiritualidade. Assim, a Era Messiânica
corresponderia ao Milênio Sabático.
Até lá, os Sábios levariam adiante a
Tradição e, apesar da inspiração, conhecimento, visões e previsões que poderiam
ser dotados, a percepção que se formou foi a de que a cada geração que se
sucedia, o nível espiritual tornava-se inferior à anterior, resultando em uma
frase muito usada pelos mestres aos seus discípulos: “Se nossos predecessores
foram como anjos, nós somos apenas homens.”
Investindo nessa máxima, Nostradamus
utilizou com sucesso a sua ancestralidade e os conhecimentos do hebraico e da Cabalá
- ainda uma fonte oculta e incompreensível para a maioria das pessoas – para ditar
as suas herméticas previsões. O efeito paradoxal e confuso de seus versos
funcionou a seu favor e a sua obra tem se mostrado um campo aberto a exercícios
de adivinhações e a teorias relacionadas com o fim do mundo.
Em 08.08.2012