
Por Sheila Sacks
A partir da visita do papa Bento
16 aos campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em 2006, o Vaticano vem
anualmente enfatizando, por ocasião das celebrações do Dia Internacional em
Memória das Vítimas do Holocausto (instituído pela ONU em 27 de janeiro de
2005), a importância da lembrança dessa tragédia humana que marcou de forma
ignominiosa o século 20.
Cruzando o portão de entrada do
campo principal sobre o qual havia o letreiro original em alemão “Arbeit macht
frei” ( o trabalho liberta) – roubado em 2009 e substituído por uma réplica- o
papa rezou, acendeu uma vela em memória às vítimas do nazismo e manifestou a
esperança de que “Deus não permita coisas como estas”, nunca mais. Ainda que,
segundo o pontífice em seu discurso, o horizonte político seja preocupante e
“que forças obscuras pareçam emergir de novo no coração dos homens”.
Em visita às celas dos
prisioneiros e as áreas onde funcionavam as câmaras de gás, Bento 16 lembrou do
teor das atrocidades cometidas naquele local que resultaram em mais de um
milhão de mortes e expressou todo o seu espanto diante da força do Mal: “Falar
neste lugar do terror é quase impossível. Neste local falham as palavras e só
pode haver um silêncio comovente – silêncio que é um grito interior a Deus. Por
que, Deus, o senhor permaneceu em silêncio? Como pôde tolerar tudo isso? Onde
estava Deus naqueles dias?”, indagou o papa diante de sua comitiva, convidados
e alguns sobreviventes presentes à cerimônia.
Símbolo extremo do Mal
Três anos depois, na residência
de verão de Castel Gandolfo, o papa
voltou a falar sobre o terror do nazismo, ao recordar o sacrifício da freira
carmelita Edith Stein (de pais judeus) e do padre franciscano Massimiliano
Kolbe que morreram no campo de Auschwitz e foram canonizados pela Igreja. “Os
lagers (campos de morte) nazistas como todo campo de extermínio devem ser
considerados símbolos extremos do Mal, do inferno que se abre sobre a terra”,
evocou Bento 16 para um grupo de fiéis.
Meses antes, em maio de 2009, o
pontífice já tinha ressaltado o papel da memória no combate ao esquecimento. Em
Jerusalém, ao lado do presidente de Israel, Shimon Peres, Bento 16 falou da
importância da lembrança “para impedir que um horror semelhante pudesse
desonrar novamente a humanidade”. Na sala dos Nomes do Museu do Holocausto Yad
Vashem, (até 2010 já haviam sido
identificados nominalmente quatro milhões de judeus assassinados pela Alemanha
nazista), o papa exortou os homens de bem a honrar aqueles que perderam a vida,
mas jamais perderam seus nomes. “Que os nomes dessas vítimas não pereçam nunca!
Que o seu sofrimento não seja nunca negado, diminuído ou esquecido! E que toda
pessoa de boa vontade vigie para erradicar do coração do homem qualquer coisa
capaz de acarretar tragédias semelhantes a essa!”, declarou, após conversar com
sobreviventes e depositar uma coroa de flores no local.
Repercutindo as palavras do papa,
o porta-voz do Vaticano e diretor da sala de Imprensa da Santa Sé, padre
Federico Lombardi, expressou o desejo de que “a lembrança da Shoá
(‘catástrofe’, em hebraico) leve a humanidade a refletir sobre a imprevisível potência
do Mal quando conquista o coração do homem”. Em editorial, no programa semanal
“Octava Dies” do Centro Televisivo do Vaticano (2009), padre Lombardi advertiu
que o extermínio de seis milhões de judeus se configura em uma “espantosa
manifestação da potência do Mal que desafia a fé na própria existência de
Deus”. Segundo o porta-voz, o papa não só condena toda forma de esquecimento e
de negação da tragédia do extermínio como também expõe as dramáticas
interrogações que esse evento tem proposto à consciência do homem e do crente.
A memória que confronta o Mal
Em janeiro de 2012, lembrando
mais uma vez a data da libertação do campo de Auschwitz, o Vaticano reafirmou a
importância das pessoas não se esquecerem, passados 67 anos, “da tragédia
infame do Holocausto”. Sob o título
“Preservar a Memória”, padre Lombardi redigiu a mensagem em que remete à
memória dolorosa do Holocausto como “o lugar teológico da pergunta mais radical
sobre Deus e sobre o Mal”. Segundo o religioso, “a memória do Holocausto é um ponto
de confronto crucial na história da humanidade para entender o que está em jogo
quando se fala em dignidade irrenunciável de toda a pessoa humana, da
universalidade dos direitos humanos e do compromisso por sua defesa”.
Sacerdote jesuíta de 69 anos, o
italiano Federico Lombardi estudou matemática e teologia na Alemanha. Em 1990
foi nomeado diretor Geral da rádio Vaticano e dez anos depois assumiu a direção
do Centro Televisivo. Indicado por Bento 16, em 2006, para chefiar a Sala de
Imprensa, Lombardi tornou-se responsável
pela gerência de todas as mídias do Vaticano.
Daí a importância de seu
comunicado que representa o pensamento oficial da Igreja Católica sobre a
tragédia. De acordo, ainda, com o porta-voz da Santa Sé, “se existiram homens
capazes de chegar a tão absurda atrocidade, ninguém nos assegura que no futuro
isso não possa se repetir”. Lembrando
que a geração das testemunhas, que viveu os tempos e horrores do Holocausto,
está diminuindo rapidamente, padre Lombardi acentuou que “a memória dolorosa se
torna advertência para o hoje e para todos os tempos”. E assume um compromisso:
“ Nós também continuaremos a fazer isso (lembrar as vítimas) neste dia, em
solidariedade, em primeiro lugar, ao povo de Israel e a todas as vítimas do
absurdo ódio homicida.”
O Mal na esfera do homem
A tocante indagação do sumo
pontífice sobre a ausência de Deus diante do horror de Auschwitz – um fato
histórico que ameaça a noção teológica tradicional do sentido do mundo e da
existência humana – mostra uma perplexidade que o pensamento filosófico já
tentou responder em tempos anteriores frente a outros eventos caracterizados
pela ascendência do Mal.
No século 18, o filósofo alemão
Immanuel Kant (1724-1804) já havia retirado Deus e outros enunciados
incompreensíveis presentes na metafísica (área da filosofia que busca dar
explicações sobre a essência dos seres e as razões de estarmos no mundo), dos
limites do conhecimento humano. Dessa forma, fora da perspectiva religiosa, a
questão do Mal não estaria intrinsecamente ligada a Deus, e questionamentos à
Sua presença (ou ausência) diante de males naturais, como terremotos e
tsunamis, e males morais - dos quais o Holocausto é um exemplo assustador
– soariam descabidos e alienados de propósito.
Na obra “Trabalho sobre o Mito”,
o filósofo Hans Blumenberg (1920-1966), que chegou a ser preso e levado a um
campo de concentração, em 1944, ao analisar o célebre poema “Prometheus”, de
Goethe (1749-1832), escrito em 1774, e seu impacto sobre a filosofia alemã,
observa que a ideia central transmitida pelo autor é a de que “ Deus teria que
organizar o mundo de forma diferente
caso houvesse se preocupado com o homem”. A tragédia de Prometeu, submetido ao
suplício diário por um poder despótico e arbitrário, reflete a impotência do
homem para entender ou explicar o Mal em
suas formas mais avassaladoras. Essa dificuldade de compreensão é sempre
profundamente perturbadora à consciência moral clássica que vincula o
sofrimento ao castigo e ao pecado.
Considerando uma situação como a dos campos de extermínio, onde seres
humanos, sob os auspícios do estado, violaram as normas da sensatez e da razão
praticando atos contra cidadãos inocentes que não deixam espaço para
justificação ou explicação, pode-se afirmar que Auschwitz revelou uma nova face do Mal ainda mais
espantosa: a da barbárie burocratizada, alienada,
e altamente desenvolvida.
Uma ameaça à alma humana
É o que observa a autora do livro
“O Mal no Pensamento Moderno”, a
norte-americana Susan Neiman, que dirige o “Eistein Forum” , instituição
alemã que discute os grandes temas universais : “O que choca e modifica nossa
compreensão do mal em Auschwitz é que os assassinos não eram bestas e demônios
e se comportavam como tais e sim seres humanos comuns, que levavam uma vida
mundana como qualquer outro. Isso foi conceitualmente devastador porque revelou
uma possibilidade na natureza humana que esperávamos não ver.”
Segundo Neiman,
Auschwitz modificou nossa compreensão sobre o problema do mal, já que as
condições de educação e cultura na Alemanha não deveriam conduzir a formas de
barbárie tão sofisticadas quanto avassaladoras, mas a uma genuína civilização.
As câmaras de gás foram introduzidas para, simultaneamente, matar o maior número de pessoas possível
poupando as vítimas de uma morte agonizante e os assassinos de visões que
atormentassem suas consciências. De acordo ainda com a pensadora, os agentes da
SS realizavam seu trabalho seguindo a ordem burocrática das atividades
cotidianas, paradoxalmente “despidos de sinais de má-intenção”. Para o filósofo judeu alemão Gunther Anders
(1902-1992) - que exilou-se nos Estados Unidos em 1936 e retornou à Alemanha em 1950 -
os crimes cometidos em Auschwitz
e nos demais campos de extermínio se
constituíram em ameaças, não
à humanidade em si, mas à alma humana, porque seria preciso um coração
muito duro (ou mesmo ausência de alma) para levar uma criança a uma câmara de gás.
E assim como o Talmud (livro milenar das leis judaicas
e comentários rabínicos) ensina que salvar uma vida é como salvar o mundo, o
escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821- 1881), de forma literária, adverte que
assassinar uma criança é suficiente para amaldiçoar o mundo. Porém, em
Auschwitz, “o pensamento parou, pois as ferramentas da civilização pareciam tão
impotentes para lidar com aquele acontecimento quanto o foram para evitá-lo. Dessa
forma, qualquer um poderia levar um tiro por fazer bem o seu serviço, assim
como outros poderiam escapar da seleção da morte fazendo o mesmo”(Neiman). Os
campos da morte, continua Neiman, distorceram os pressupostos mais básicos da
racionalidade que ordena os mundos normais, instituindo “assassinatos em massa no século 20 que não foram nem fruto da paixão, nem da ignorância”.
Ilógico e irracional
Sobrevivente do campo de
concentração de Buchenwald, na Polônia, e por mais de uma década exercendo a
função de grão-rabino de Israel, Israel
Meir Lau, de 75 anos, teve os pais e
irmãos assassinados nos campos da morte. Para o religioso, o fato do nazismo e
da solução final para a eliminação dos judeus terem como berço uma Alemanha
onde a população judaica se encontrava mais integrada e adaptada à sociedade
secular, mostra que o antissemitismo é ilógico e que não é possível
enfrentá-lo de maneira racional. “Alguns perguntam onde estava D´us durante o
Holocausto, mas nós devemos perguntar onde estava o homem durante o Holocausto.
Como foi possível que homens cultos, que amavam a filosofia e a música, cortassem
crianças em pedaços e à noite retornassem aos seus lares para beijar seus
filhos e regar suas flores? Essa é a pergunta que jamais deverá calar”, afirma
Lau.
Autor do livro de memórias “Lúlek
– a história do menino que saiu do campo de concentração para se tornar o
grão-rabino de Israel”, Meir Lau é atualmente rabino-chefe da cidade de
Tel-Aviv e presidente do Museu em memória das vítimas do Holocausto (Yad
Vashem), de Jerusalém.
Lembrança coletiva
Em 1953, cinco anos após a
fundação do estado de Israel, o então primeiro-ministro David Bem Gurion
instituiu o Yom HaShoá – Dia de
Memória do Holocausto, escolhendo a data de 27 de Nissan (calendário hebraico)
para a celebração por sua associação ao “Levante do Gueto de Varsóvia”, a
rebelião armada de jovens judeus contra
a ocupação nazista, ocorrida em 19 de abril de 1943. A homenagem acontece
geralmente cinco dias depois do término da Páscoa judaica (Pessach), quando o país para e seus cidadãos, onde estiverem, guardam
dois minutos de silêncio, honrando a memória dos que pereceram nos formos
crematórios ou foram covardemente fuzilados.
Enfim, uma data dolorosa a ser
lembrada ainda que a memória de fatos tão escabrosos envergonhe a humanidade.
Nesse aspecto, aliás, tanto o Vaticano quanto as lideranças judaicas estão de
acordo que a lembrança deve funcionar como um aviso de alerta para governos e
cidadãos. E para aqueles que têm o dom
ou a capacidade de perceber o Mal em todas as suas formas sutis e enganadoras,
vale a ressalva de que de nada servirá essa percepção se a omissão e o silêncio
forem as opções escolhidas. Citando Kant: “Só
as escolhas mais difíceis revelam liberdade absoluta”. Auschwitz que o
diga!
Em 15 de abril de 2012