Cartunista
introduziu temas judaicos nas histórias em quadrinhos
por
Sheila Sacks
Anualmente, no mês de março, os aficionados
de histórias em quadrinhos comemoram uma data muito especial: o nascimento de
um dos mais importantes cartunistas de todos os tempos, autor do justiceiro
mascarado The Spirit, herói das HQs
dos anos 1940. Novaiorquino do Brooklyn, o genial Will Eisner deu vida ao
investigador da polícia Denny Colt e à imaginária Central City, transportados de maneira magistral para as telas dos
cinemas, em 2008, pelo também desenhista e cineasta Frank Miller.
Neste 2012, a semana dedicada ao cartunista
– Will Eisner Week - tem sido celebrada em várias cidades
norte-americanas com exposições, palestras e painéis de discussões sobre os
trabalhos do artista. De Nova York a Los Angeles, Portland, Minneapolis,
Pittsburgh e São Francisco, para citar alguns centros conhecidos, eventos têm
sido organizados em universidades, bibliotecas e museus. Em outubro de 2011, o
trabalho de Eisner pôde ser apreciado pelos visitantes do Rio Comicon (Festival Internacional de Quadrinhos e Cultura Pop)
que trouxe, pela primeira vez ao Brasil, a exposição “O Espírito vivo de Will
Eisner”, com 106 obras originais do autor, materiais de trabalho e a estátua em
bronze do personagem The Spirit.
Inovação nas HQs
Com sua arte e força criativas, Eisner
tinha pouco mais de vinte anos quando embarcou nessa extraordinária aventura
onde o talento de desenhista e a imaginação literária se uniram para moldar um
dos personagens mais instigantes das HQs. Transitando pela lendária Central City, a cidade dos sonhos,
desilusões, dramas, crimes e situações bizarras, o estranho policial surge das
trevas da morte para combater o mal e não dar trégua aos bandidos. Em um
universo noir de jogos de sombras, ângulos insólitos e planos
incomuns, Denny Colt, julgado morto, renasce em sua fúria e revolta. De terno,
gravata, chapéu, luvas e máscara, ele se transforma em The Spirit, o mocinho
diferente, contraditório, sem superpoderes, roído pelas dúvidas e cingido
pelo imponderável.
À parte as histórias policiais nada
convencionais, The Spirit revolucionou os comics utilizando-se
de inventivos recursos narrativos, de enquadramentos inesperados de imagens, e
lançando mão de primeiros planos para destacar um detalhe. Essa nova linguagem
gráfica com perspectivas cênicas de cunho cinematográfico introduzida por
Eisner angariou um exército de 5 milhões de ávidos leitores semanais, somente
nos Estados Unidos. As tirinhas, iniciadas em 1940, foram publicadas até
1952, mas seus enredos e ilustrações, utilizando narrativas paralelas e
desenhos expressionistas, romperam com as técnicas tradicionais, marcando um
novo capítulo no desenvolvimento da arte do cartoon.
Considerado por especialistas do gênero o
mestre das histórias em quadrinhos de todos os tempos,
William Erwin Eisner nasceu em 1917, no bairro nova-iorquino do Brooklin. Era
filho de imigrantes judeus muito pobres, e quando criança trabalhava vendendo
jornais nas ruas para completar a renda familiar. Foi esse o seu primeiro
contato com as histórias em quadrinhos, cujas ilustrações o encantavam e com as
quais desenvolveu um profundo amor pelo desenho gráfico. Já aos oito anos
resolveu se dedicar ao desenho, apesar da oposição da mãe. Além do herói Spirit,
Eisner também foi o criador de Sheena, a Rainha da Selva, que virou
série de TV (1955) e filme (1984).
Personagens judeus de Nova York
Mas, apesar do enorme sucesso obtido com a
série The Spirit, Will Eisner resolve dar uma guinada em sua vida e em
sua arte, surpreendendo fãs e seguidores. Depois de realizar trabalhos de
propaganda e de publicidade, e também trabalhar na adaptação para as HQs de
obras clássicas, como Don Quixote e Moby Dick, ele edita, em 1978, uma
publicação ilustrada, com temas sérios e para leitores adultos,
classificada pelo próprio autor de graphic novel (histórias longas,
impressas em papel especial e publicadas em formato de álbum).
A novidade provoca uma reviravolta no mundo
dos comics. O trabalho “Contrato Com Deus e Outras Histórias” mostra
a vida de pessoas comuns e fala dos dramas do dia a dia de sua Nova York natal.
Sem limitação de páginas, com temática e desenho livres de qualquer formatação,
os romances gráficos se tornam populares e conquistam seguidores entusiastas.
As aventuras protagonizadas por heróis são deixadas para trás e os habitantes
anônimos da Big Apple – muitos deles imigrantes e judeus como os pais de
Eisner – assumem os papéis principais no pincel do artista.
Combinando ficção com histórias reais,
Eisner cria relatos intensos e dramáticos, com destaque para a temática
judaica. Os anos passados nos bairros do Brooklin e do Bronx são retratados em
uma série de trabalhos que incluem “O Sonhador”, “O Edifício” e
“No Coração da Tempestade”.. Este último mostra a sua infância e
adolescência. Segundo Eisner, a linha central dessa graphic novel é o
racismo. “O livro se inicia no trem, quando sou convocado para a guerra. Pela
janela visualizo cenas que me lembram as histórias pelas quais eu passei,
dentre elas minha primeira experiência com o racismo.”
Em 1983, para comemorar os 15 anos da publicação
de “Contrato com Deus”, é lançada uma edição especial da obra, em ídiche
(língua falada por muitos judeus
europeus, assemelhada ao alemão e escrita com caracteres hebraicos).
No Brasil, o universo de Eisner ganha a cena teatral, com as peças “New York”,
apresentada em Curitiba (1990), “Pessoas Invisíveis”, produzida no Rio
de Janeiro (2002) e “Avenida Dropsie”, exibida em São Paulo (2005).
Ainda no Brasil, a produtora Marisa Furtado realiza um documentário sobre
Eisner (1999), o primeiro sobre a carreira do artista.
Preconceito e Antissemitismo
Suas duas últimas obras, “Fagin,o Judeu”
e “The Plot” (O Complô) abordam
temas espinhosos. A primeira é uma revisão histórica de uma figura mal
retratada por Charles Dickens, em seu livro Oliver Twist. A visão
estereotipada do personagem serviu para disseminar o preconceito entre os
leitores do autor inglês e Eisner apresenta a sua visão sobre o assunto. A
segunda trata da verdadeira origem de um documento forjado por autoridades
russas, em 1903, conhecido como “Os Protocolos dos Sábios de Sião”. A
farsa foi descoberta em 1921 e revelou que o texto dos Protocolos foi
extraído de uma sátira política francesa escrita por Maurice Joly, em 1864,
intitulada “O Diálogo no Inferno”. O texto descrevia uma fictícia
discussão de Maquiavel e Montesquieu para um plano de conquista por Napoleão
III, cujo nome foi substituído por “os judeus”.
“The Plot” foi lançado nos Estados
Unidos em maio de 2005, alguns meses depois do falecimento de Eisner. No
Brasil, a editora paulista Companhia das Letras publicou a versão
brasileira da obra em novembro de 2006. Em entrevista ao “New York Times”,
em 2004, Eisner falou do trabalho: “Acabo de concluir e estou editando uma
novela gráfica de caráter polêmico. Trata-se da verdadeira história da origem
de uma das maiores e mais infames fraudes do mundo, os Protocolos de
Sião”. Justificando seu interesse pelo
tema, Eisner contou que buscou no passado uma forma de enfocar o antissemitismo
que continua sendo uma questão atual. “Eu estava na Internet e descobri uma
página promovendo “os Protocolos” para leitores do Oriente Médio. Fiquei
chocado em descobrir que muita gente ainda acredita que a história é real e
fiquei perturbado quando vi a quantidade de sites que divulgam essas mentiras
para os muçulmanos. Concluí que algo precisava ser feito.”
O Leonardo da Vinci dos
Quadrinhos
Will
Eisner tinha 87 anos quando faleceu em 3 de janeiro de 2005. Pioneiro dos comics de adultos
e criador do termo “arte seqüencial” que deu novo status ao
gênero, ele deixou seguidores respeitados, como o autor e desenhista Frank Miller,
que dirigiu os filmes “Batman, o Cavaleiro das Trevas” e “Sin City”, e Alan
Moore, criador de Watchmen, levado às telas em 2009. Considerado o Leonardo
da Vinci dos quadrinhos pela revista “Civilization”, editada
pelo Congresso americano, o artista emprestou o seu nome para o mais importante
prêmio de quadrinhos do mundo – o Eisner Award .
No
ano de sua morte, o jornal “The Washington Post”, ao descrever a
trajetória do cartunista, sublinhou que Eisner fez da luta contra a
intolerância uma forma de arte. Aqui
no Brasil, Maurício de Souza, criador dos personagens Mônica e Cebolinha,
também lamentou a perda de Eisner, que esteve várias vezes no Brasil : “Foi
como se eu tivesse perdido outro pai. Ele era o meu ídolo, o meu guru”, afirmou.
A
genialidade da arte de Eisner – que jamais excluiu a sua identidade judaica no
decorrer da vida profissional e que não a manteve restrita às fronteiras tribais
dos fãs dos comics - também foi devidamente reconhecida pela
prestigiada “Nacional
Foundation for Jewish Culture”, instituição americana fundada em 1960 para
promover e preservar a cultura judaica. Em 2002, a entidade outorgou ao artista
o prêmio máximo pelo conjunto de sua obra.
Em
tempo: A série de animação “Turma do Penadinho”, do nosso cartunista Maurício
de Souza, a ser exibida pela Cartoon Network, ainda em 2012, terá uma cena em
que o personagem Penadinho usa uma máscara preta similar a do detetive Colt, em
uma homenagem a Eisner e ao imortal The
Spirit.
Em
20 de março de 2012