Não é por acaso que se conta a história do
náufrago judeu que, após dez anos desaparecido, é encontrado numa ilha
deserta por um navio que por lá passava.
O capitão encantou-se com as estratégias de sobrevivência dele, que
incluíam a construção de uma casa bastante sólida, a confecção de redes
de pesca e arpões e, para sua surpresa, duas sinagogas.

Assim são os judeus religiosos: uns, ortodoxos, outros
conservadores, os terceiros liberais e ainda os reformistas, alem de
várias outras denominações. A convivência nem sempre é pacífica, mas a
ausência de um poder central e de uma função sagrada para os rabinos
(diferente dos padres católicos, rabinos não falam em nome de Deus, não
dão sacramentos, e qualquer ato religioso judaico pode ser realizado sem
a sua presença) faz com que as diferentes comunidades contratem
diferentes tipos de rabino. Há, inclusive, rabinos gays e "rabinas". Seu
papel mais importante é adaptar leis milenares às práticas de cada
grupo.
É por isso que uma comunidade tão pequena como a brasileira - menos
de 0,1% da população do país - tem tantas sinagogas, organizações e
porta-vozes. É muito cacique para pouco índio.
Mas limitar o judaísmo à identidade religiosa não responde todas as
situações. É possível dizer que Philip Roth não seja um escritor judeu,
que Woody Alen não é um cineasta judeu, que Marc Chagall não foi um
pintor judeu, que Sigmund Freud não tenha sido judeu?
O judaísmo está muito presente nas obras de todos esses gênios. Uma
parcela significativa da juventude israelense, como protesto pela
inexistência do casamento civil no Estado de Israel, recusa-se a se
casar na sinagoga e viaja até Chipre para oficializar sua união. Seriam
esses jovens não judeus?
Não há uma única forma de identificar os judeus. Eles não
permaneceram identificados como tais apesar da História, mas por causa
da História. Não fossem necessários, teriam desaparecido como povo. O
grande segredo da sua permanência é que não permaneceram, mudaram.
Nada mais distante de um judeu do gueto do que um outro que
transcenda a idéia da nação. Quando, depois de muitos séculos, os judeus
obteveram sua emancipação como cidadãos – isso tudo só após a Revolução
Francesa – muitos saíram da cidadezinha para o mundo, tocando música,
escrevendo, pintando, marcando, enfim, sua presença no mundo a partir do
início do século XX.
Isso, contudo, só ocorre para uma pequena fração de judeus. A
maioria continuava nas aldeias e nos bairros pobres das cidades da
Europa Oriental. E é nesses ambientes que surge o nacionalismo judaico.
Deve-se localizar as raízes da identidade nacional judaica no século
XIX, na Europa Centro Oriental e atribuí-la a três fatores
complementares: o esgotamento das formas de existência judaica nas
aldeias (shtetl) e nos guetos das cidades da Polônia e região; a
"primavera das nações", então em curso, que se apresentava como panacéia
universal, remédio destinado a superar pobreza e perseguições (não foi,
como sabemos); o profundo sentimento de identidade cultural.
A tese é de fácil demonstração. O próprio criador do assim chamado
"sionismo político" Theodor Herzl, era um jornalista austríaco bastante
incorporado à sociedade não judaica. Seu "retorno" ao judaísmo se deu
após ele ter sido designado por seu jornal para cobrir o julgamento do
Capitão Dreyfuss, em Paris, quando anti-semitas franceses acusaram o
militar judeu de traição.
A França se dividiu e proporcionou importantes manifestações
anti-judaicas. Herzl concluiu que, enquanto os judeus não tivessem uma
nação própria, eles não teriam dignidade e estariam sujeitos a todo tipo
de perseguições. Escreveu um livro "O Estado Judeu" que teve grande
impacto, mas não foi unanimidade entre os judeus.
Uns porque esperavam a manifestação do Messias, que era a quem,
segundo eles, caberia determinar o "retorno" à Terra Santa; outros
porque se sentiam apenas ingleses ou franceses de fé "mosaica" e não
queriam ser percebidos como alguém com dupla lealdade (ainda não
estávamos em nosso atual estágio de várias identidades nacionais
sobrepostas e aceitas); outros ainda porque apostavam na solidariedade
entre os oprimidos de todos os países e crenças, algo que só poderia
ocorrer por ocasião de uma revolução socialista de caráter
internacional, e não "por meio de soluções parciais e nacionais".
Embora a colonização moderna da Palestina pelos judeus tenha se
iniciado no final do século XIX e tenha ganhado força no início do XX,
com a fundação das primeiras colônias coletivas de caráter comunista
(kibutz) e cooperativas de trabalhadores rurais (moshav), ela não era
ainda muito significativa em termos quantitativos até a década de 1930.
A ascensão de Hitler ao poder, a "solução final", concebida e
executada pelos nazistas (com o assassinato sistemático da maioria da
população judaica européia) fez com que grande parte dos judeus não
percebessem outra solução que não a "reconstrução" de um estado que
pudesse funcionar como refúgio a todos os judeus do mundo que se
sentissem perseguidos. Essa é a história de Israel.
Isso faz com que todos os judeus sejam israelenses e que todos os
israelenses sejam judeus? Claro que não. Em Israel existe um importante
número de israelenses árabes, muçulmanos ou cristãos. E bem menos da
metade da população judaica do mundo vivem lá – qualquer que seja o
critério que utilizemos para definir esta identidade.
Há,
sempre, quem olhe o judeu de forma preconceituosa, francamente negativa
ou falsamente positiva, mas nem por isso menos discriminatória. Há quem
diga que existe um judaísmo gastronômico, outro ufanista (esgrimindo
com violinistas, escritores e cientistas judeus que ganharam o prêmio
Nobel).
Há mesmo quem ainda acredite que os judeus sejam o povo eleito.
Tenho, contudo, a convicção de que sua experiência como discriminados
habilitou os judeus a lutar contra qualquer discriminação, e o período
da vida na aldeia isolada ou nos guetos desenvolveu em muitos judeus o
ódio ao etnocentrismo, ao horizonte limitado.
Há um judaísmo universal e ele pode ser praticado.