por Bruno Fiuza
Eva: no auge dos seus 81 anos, ela conserva a esperanƧa e a vontade de viver que lhe deram forƧa para superar os maiores horrores do sƩculo XX
Ćramos como animais esperando pelo abate Ex-prisioneira de Auschwitz conta como sobreviveu Ć barbĆ”rie nazista e afirma: os alemĆ£es sabiam o que acontecia nos campos de concentraĆ§Ć£o, mas nĆ£o tiveram a coragem de dizer basta
Ela saiu com vida do mais terrĆvel campo de extermĆnio da Segunda Guerra Mundial. Capturada no dia do seu aniversĆ”rio de 15 anos pelos nazistas, Eva Schloss foi levada a Auschwitz junto com sua mĆ£e, Fritzi, em maio de 1944. Lutando diariamente contra a morte, as duas resistiram atĆ© janeiro de 1945, quando os russos libertaram o campo. De volta a AmsterdĆ£, onde haviam morado antes e durante a guerra, mĆ£e e filha descobriram que o resto da famĆlia – o pai e o irmĆ£o de Eva – havia morrido em Auschwitz. Foi entĆ£o que Fritzi se aproximou de um antigo vizinho chamado Otto Frank, que perdera a filha, Anne. Os dois acabaram se casando e Eva tornou-se, postumamente, meia-irmĆ£ de Anne Frank.
Ao contrĆ”rio da “parente” famosa, no entanto, Eva demorou mais de 40 anos para escrever suas memĆ³rias. Foi sĆ³ em 1988 que ela finalmente publicou o emocionante relato de sua vida durante a guerra. No fim de 2010, a autora esteve em SĆ£o Paulo para o lanƧamento da ediĆ§Ć£o brasileira do livro e recebeu a reportagem de ##HistĆ³ria Viva##. Leia abaixo os principais trechos do depoimento de uma garota que, no auge de seus 81 anos, conserva intacta a esperanƧa e a vontade de viver que lhe deram a forƧa necessĆ”ria para superar os maiores horrores do sĆ©culo XX.
HistĆ³ria Viva – Por que a senhora demorou tanto tempo para escrever suas memĆ³rias?
Eva Schloss – Logo depois da guerra eu sentia muita raiva, nĆ£o sĆ³ dos alemĆ£es, mas do mundo inteiro, por ninguĆ©m ter ajudado, pelas pessoas nĆ£o terem impedido aquela tragĆ©dia. Eu queria botar aquela raiva para fora, mas ninguĆ©m parecia interessado em saber o que realmente havia acontecido. Quando os americanos e russos libertaram os prisioneiros dos campos de concentraĆ§Ć£o eles filmaram o que encontraram, e esses filmes foram exibidos nos cinemas ingleses e em outros paĆses da Europa. As cenas eram horrĆveis, mostravam pilhas de esqueletos e cadĆ”veres. Tudo isso causou repulsa na populaĆ§Ć£o, e, durante muito tempo, as pessoas preferiram nĆ£o tocar no assunto.
Eva com a mĆ£e e o irmĆ£o em um lago austrĆaco em 1933 |
HV – E o que a levou a finalmente escrever o livro? Quando surgiu a ideia?
Eva – Foi em 1986, quando Ken Livingstone, que mais tarde se tornaria prefeito de Londres, levou Ć Inglaterra uma exposiĆ§Ć£o histĆ³rica que havia sido organizada originalmente na Casa de Anne Frank, em AmsterdĆ£. Ć claro que minha mĆ£e e eu fomos convidadas para o evento de abertura. Havia cerca de 200 ou 300 pessoas na plateia e uma mesa com seis ou sete palestrantes. Ken Livingstone me convidou para a mesa e, depois que todos falaram, ele disse: “Agora Eva quer contar uma coisa para vocĆŖs”. Na verdade, eu nĆ£o queria dizer nada. Eu nunca tinha falado sobre isso. Mas todos pareciam ansiosos, e entĆ£o eu comecei a falar. E eu falei, falei, falei e falei. Foi incrĆvel! Ao fim do evento, muitos jovens vieram falar comigo, e eles queriam saber mais, queriam autĆ³grafos e fizeram mais perguntas. Aquilo realmente foi uma mudanƧa completa para mim, porque eu senti que, pela primeira vez, as pessoas estavam realmente interessadas. Eu fui convidada a viajar com a exposiĆ§Ć£o e uma amiga me disse: “Ć importante que vocĆŖ escreva sua histĆ³ria”.
HV – Escrever suas memĆ³rias lhe fez bem?
Eva – Sim. AtĆ© entĆ£o, tudo estava preso na minha cabeƧa. Eu nunca havia falado sobre o assunto, mas estava lĆ”. E, ao pĆ“r no papel, eu consegui colocar um pouco disso tudo para fora.
HV – Como a senhora definiria um nazista?
Eva – Bem, esse Ć© o problema: eles nĆ£o pareciam maus, eram pessoas comuns. Foi por isso que na Holanda nĆ³s fomos traĆdos por uma enfermeira. Ela era nazista, mas vocĆŖ nunca suspeitaria disso. Muitos eram extremamente bem educados. Era o caso de [Joseph] Mengele, por exemplo, que realizava terrĆveis experimentos com seres humanos e decidia quem vivia e quem morria em Auschwitz: ele era muito bem educado, eu poderia quase dizer que era um cavalheiro. Estava sempre perfeitamente vestido, era um homem de meia idade, alto e bonito. VocĆŖ nunca suspeitaria que ele fosse capaz de fazer algo mau. E Ć© por isso que, na dĆ©cada de 1970, quando comecei a visitar a Alemanha, eu suspeitava de toda pessoa mais velha. Eu olhava para elas e pensava ‘O que vocĆŖ fez? VocĆŖ estava em um campo de concentraĆ§Ć£o?’, porque vocĆŖ nĆ£o conseguia distinguir um nazista pela aparĆŖncia.
Eva no dia de seu casamento, em AmsterdĆ£, em 1953, ao lado do marido (ao centro), e de Fritzi e Otto Frank (Ć esq.)
HV – Todo mundo podia ser nazista?
Eva – Todo mundo. E muitos deles eram, porque, quando os russos chegaram e evacuaram os campos de concentraĆ§Ć£o, muitos dos guardas comuns jogaram fora seus uniformes, vestiram uma roupa qualquer e voltaram para suas cidades e vilas de origem. NĆ£o aconteceu nada com a maioria deles.
HV – No livro, a senhora conta que as pessoas que viviam nos arredores dos campos de concentraĆ§Ć£o viam os prisioneiros circulando na regiĆ£o. A senhora acha que elas nĆ£o sabiam ou nĆ£o queriam saber o que estava acontecendo lĆ” dentro?
Eva – Elas sabiam. A maioria dos campos de concentraĆ§Ć£o na Alemanha e na PolĆ“nia foi construĆda bem ao lado de alguma cidade, como foi o caso de Aushwitz ou Dachau, e as pessoas do entorno viam o que acontecia naqueles lugares, elas sabiam. Elas viam os trens, as pessoas chegando e saindo. Em Auschwitz, muitos prisioneiros vestidos com o uniforme listrado saĆam do campo para trabalhar em fĆ”bricas prĆ³ximas. Esses detentos jĆ” estavam muito emaciados. Muitos nĆ£o podiam sequer andar, alguns morriam no caminho. E os moradores do entorno viam tudo isso.
Eva e a mĆ£e seguram um retrato de Anne Frank em 1986
HV – O que a senhora diria se tivesse de explicar, em poucas palavras, o que foram os campos de concentraĆ§Ć£o?
Eva – Bem, Ć© difĆcil explicar isso em poucas palavras, mas eu diria que Ć© um modo de tirar a liberdade das pessoas, torturĆ”-las, e, por fim, matĆ”-las. Os nazistas queriam acabar conosco, eles nĆ£o queriam que nenhum judeu sobrevivesse. Mas havia tantos, seis milhƵes, que nem com os eficientes mĆ©todos de envenenamento por gĆ”s que desenvolveram eles foram capazes de atingir essa meta com a rapidez desejada. Assim, milhƵes de pessoas foram mantidas em condiƧƵes terrĆveis: passando fome, cheias de doenƧas, submetidas a regimes durĆssimos de trabalho e tratados como animais atĆ© que chegasse a sua vez de morrer. Ćramos como animais esperando pelo abate.
HV – E quanto ao ExĆ©rcito Vermelho? Muito jĆ” se falou sobre a violĆŖncia de seus soldados. Que memĆ³ria a senhora guarda dos russos?
Eva – Para mim eles foram maravilhosos! Quando chegaram ao campo de concentraĆ§Ć£o, em pleno inverno, eles pareciam deuses. E realmente nos trataram como vĆtimas de um sistema terrĆvel. Eles nos respeitaram, nos alimentaram, nos vestiram, nos transportaram e foram extremamente bons. Ć claro, eu sei, e Ć© verdade, que, quando eles entraram na Alemanha, fizeram coisas horrĆveis. Eles estupraram, saquearam, mataram pessoas. Mas, apĆ³s a libertaĆ§Ć£o, como nĆ£o podĆamos voltar para a Holanda, viajamos por quatro meses pela RĆŗssia e vimos a inacreditĆ”vel devastaĆ§Ć£o que os alemĆ£es haviam causado no paĆs. NĆ£o havia uma cidade, uma vila, uma fazendo que nĆ£o tivesse sido completamente demolida e queimada. E muitos jovens entraram para o ExĆ©rcito Vermelho para se vingar dos alemĆ£es, porque nĆ£o tinham mais famĆlia nem lugar para ir. Os russos perderam 40 milhƵes de pessoas na guerra e, mesmo assim, eles nĆ£o se renderam. Eu realmente admiro os russos. Se nĆ£o fosse por eles, a guerra poderia ter durado muito mais.
HV – Quando a senhora vĆŖ notĆcias sobre grupos neonazistas e manifestaƧƵes de Ć³dio racial atualmente na Europa, acredita que seria possĆvel se repetir hoje o que aconteceu na Alemanha nazista?
Eva – NĆ£o, eu nĆ£o acho que uma coisa assim possa voltar a acontecer, porque aquilo foi tĆpico de um paĆs e de uma Ć©poca: os alemĆ£es estavam prontos para obedecer qualquer ordem que viesse de cima, prontos para fazer qualquer coisa que o lĆder lhes mandasse fazer. Se alguma coisa desse tipo voltasse a acontecer, eu acho que em algum momento as pessoas iriam parar para pensar e se recusariam a seguir as ordens.
HV – Foi isso que os alemĆ£es nĆ£o fizeram na dĆ©cada de 1930?
Eva – Exatamente
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